Colonialismo Mia

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Ensaios

Navegações
v. 4, n. 2, p. 232-238, jul./dez. 2011

Amores marginais e hibridismo no conto de Mia Couto
Marginal love affair and hybridism in Mia Couto’s short-stories
José Luís Giovanoni Fornos
FURG

Resumo: O presente ensaio examina contos extraídos do livro Cada homem é uma raça (1990),
do escritor moçambicano Mia Couto, considerando os aspectos históricos que marcam tal
produção. Ao mesmo tempo, procura caracterizar as estratégias empregadas pelo autor ao
revisitar a situação colonial e pós-colonial do seu país. Enfatiza a tese do hibridismo cultural
como demarcação crítica às identidades localizadas a partir do nacionalismo étnico-racial.
Palavras-chave: Identidades híbridas; Literatura moçambicana; Mia Couto

Abstract: In this study, short-stories from the book Cada homem é uma raça (1990), by the
Mozambican writer Mia Couto, are analyzed based on the historical aspects underlying such
work. The strategies used by the author to revisit the postcolonial and colonial situation of his
country is sought to be characterized. Therefore, the theory of cultural hybridism is brought up
as a critical reading of identities located on the grounds of ethnic-racial nationalism.
Keywords: Hybrid identities; Mozambican literature; Mia Couto

A temática das relações entre o eu e o outro assinala
os contos de Mia couto. Tal assunto deve ser desdobrado
obrigatoriamente com base no entendimento da História
do colonialismo e pós-colonialismo europeu e português
na África. Durante longo percurso, a resistência política e literária dos africanos esteve presente como estratégia na constituição de um Estado nacional livre e
soberano que pusesse fim às leis e normas impostas pelos
impérios.
As literaturas africanas vêm refletindo múltiplos
episódios da dominação colonial, demonstrando o forte
compromisso dos intelectuais com a defesa de uma
identidade cultural, étnica e racial que barrasse preconceitos
e desigualdades sociais. Nas literaturas africanas de língua
portuguesa, são inúmeros os escritores que, através da
imprensa e da produção artística, desafiaram o regime
colonial, sofrendo com exílios e prisões. A busca pela
liberdade teve iniciativas importantes. Destas, destacase o Movimento da Négritude, criado a partir de 1930
por intelectuais caribenhos, inspirados no Renascimento
Negro (Black Renaissance) norte-americano.1 Também
o socialismo irradiou entusiasmos ideológicos, fornecendo estratégias e táticas para os movimentos de
libertação.
Em Angola e Moçambique2, a batalha pela independência alcança maior projeção em meados da

década de 1960, com o surgimento de organizações
políticas que reivindicavam a libertação nacional através
da “guerra de guerrilhas”, estimulados, entre outros
fatores, pela Revolução Cubana em 1959 e a Argelina
em 1961. Após treze anos de combate contra o exército
português e as forças salazaristas de repressão, obtidos
os objetivos com a assinatura de acordos em 1975, os
países africanos de língua portuguesa enfrentariam, a
seguir, o impacto de nova guerra, agora situada no seio da
nação.12
É sob as contingências de aproximadamente trinta
anos de guerra – colonial e civil – que os escritores
se debruçam. Num primeiro instante, desvendam as
arbitrariedades praticadas pelo império, utilizando a
literatura como ferramenta de combate e conscien1

Conforme José Luís Pires Laranjeira, tal movimento surge nos anos 20 e
30 do século passado, como agitação intelectual de negros “empenhados
em participar na crescente valorização do homem negro e na luta pela
igualdade de direitos com brancos, condição suficiente para ter inspirado
a Négritude de língua francesa e também a Negritude africana de língua
portuguesa. Na literatura, Claude Mckay, Countee Cullen, Langston
Hughes e Sterling Brown, entre outros, assumem a especificidade de
serem negros, no que toca à herança cultural africana e à condição social
de segregados, elaborando textos em que a raça e o continente africano
são recorrentes.” (PIRES, 1995, p. 26)
2 Para um aprofundamento das relações políticas e culturais em
Moçambique ver o livro, resultado de uma tese de doutoramento,
Moçambique: identidade, colonialismo e libertação (UNESP, 2009),
José Luís Cabaço.

Amores marginais e hibridismo no conto de Mia Couto

tização.3 Em outro momento, abordam os conflitos
deflagrados pós-independência, período que se mostrou
tão atroz e violento quanto o anterior. Em comum, a
atenção do escritor com a História, configurada ainda pela
ancestralidade mítica e religiosa, pelas práticas populares,
extraídas do passado, como autênticos signos a serem
celebrados pela nacionalidade instituída. Como aponta
Rita Chaves:
Profundamente marcada pela História, a literatura dos
países africanos de língua portuguesa traz a dimensão
do passado como uma de suas matrizes de significado.
Depreende-se o intuito de valorização de elementos da
prática popular como um patrimônio identificado com
a resistência que era preciso alimentar. A dança como
elemento de integração e o alimento como explicação
de uma distinta energia ganham estatuto de signos de
uma identidade a ser preservada. (CHAVES, 2005,
p. 45-48)

A representação da História pode ser avaliada sob os
efeitos da condição étnica e racial. Conquanto examinadas
distintamente, tais aspectos atravessam tematicamente a
produção literária nas ex-colônias portuguesas. Em vista
disso, é sintomático o título escolhido por Mia Couto para
um de seus livros: Cada homem é uma raça, coletânea
de contos, publicada em 1990, cuja finalidade está em
problematizar o vínculo entre nacionalidade, etnia e raça,
figuras norteadoras das relações sociais no espaço africano.
Nos contos, evidenciam-se tal preocupação, uma vez que
as personagens caracterizam-se pelo elemento fenótipo
e pela comunidade étnica. Numa passagem, o escritor
moçambicano põe em xeque as armadilhas provocadas
pelas disputas raciais:
Inquirido sobre a sua raça, respondeu:
– A minha raça sou eu, João Passarinheiro
Convidado a explicar-se, acrescentou:
– Minha raça sou eu mesmo. A pessoa é uma humanidade individual. Cada homem é uma raça, senhor
polícia. (COUTO, 1998, p. 8)

Desta forma, Mia Couto procura discutir em seus
textos o que significa africanidade, questionando a busca
de uma raiz africana empreendida por alguns intelectuais,
“caçadores da virgindade étnica e racial” que, de acordo
com o escritor, são responsáveis por “uma visão restrita
3

Embora se refira ao processo de formação da literatura angolana moderna,
o trecho a seguir retirado dos documentos da União dos Escritores
Angolanos (UEA) representa adequadamente o papel desempenhado
pelos escritores africanos: “A história de nossa literatura é testemunho de
geração de escritores que souberam, na sua época, dinamizar o processo
de nossa libertação exprimindo os anseios profundos de nosso povo,
particularmente o das camadas mais exploradas. A literatura angolana
surge assim não como simples necessidade estética, mas como arma de
combate pela afirmação do homem angolano.” (CHAVES, 2005, p. 70)

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e restritiva do que é genuíno” e uma das causas para
“explicar a desconfiança com que é olhada a literatura
produzida em África.” (COUTO, 2005, p. 60)
Neste sentido, a ênfase ao hibridismo como
interrogação crítica aos absolutismos étnicos e raciais
torna-se destaque. Se num período os apelos à raça e
à ancestralidade serviram de baliza para a distinção de
valores genuínos da nação, num contexto, marcado pelo
pós-colonialismo e pela globalização, em que as relações
diaspóricas despontam cotidianamente, a hibridação
reaparece como categoria inovadora, ensejando políticas
públicas pelos órgãos governamentais. No entender de
Mia Couto, é difícil ao intelectual africano eliminar os
conflitos de sua identidade híbrida:
A Europa estava dentro do poeta africano e não podia
ser esquecida por imposição. Entre o convite ao
esquecimento da Europa e o sonho de ser americano
a saída só podia ser vista como um passo a frente. Os
intelectuais africanos não têm que se envergonhar de
sua apetência para a mestiçagem. Eles não necessitam
de corresponder á imagem que os mitos europeus
fizeram deles. Não carecem de artifícios nem de
fetiches para serem africanos. Eles são africanos assim
como são, urbanos de alma mista e mesclada, porque
África tem direito pleno à modernidade, tem direito a
assumir as mestiçagens que ela própria iniciou e que
tornam mais diversa e, por isso, mais rica. (COUTO,
2005, p. 61)

O depoimento acima nos remete ao pensamento de
Stuart Hall que vê no hibridismo uma lógica conceitual e
cultural capaz compreender os processos contemporâneos
de globalização. Para Hall:
Essa lógica se torna cada vez mais evidente nas diásporas
multiculturais e em outras comunidades minoritárias
e mistas do mundo pós-colonial. Antigas e recentes
diásporas governadas por essa posição ambivalente,
do tipo dentro/fora, podem ser encontradas em toda a
parte. Ela define a lógica cultural composta e irregular
pela qual a chamada modernidade ocidental tem
afetado o resto do mundo desde o início do projeto
globalizante da Europa. (HALL, 2003, p. 574)

Para o sociólogo português Boaventura de Sousa
Santos, o cosmopolitismo multicultural deve ser perseguido, uma vez que corrigiria as distorções econômicas
e culturais planetárias. Entendido como utopia possível,
tal ideia pode ser sintetizada no seguinte princípio: “temos
o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza;
temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos
descaracteriza” (SANTOS, 2003, p. 458).
Contudo, o sociólogo português adverte para os
riscos de se celebrar a condição híbrida diaspórica como
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Fornos, J. L. G.

situação que “permite uma infinita criatividade”, já que
a mesma tem sido utilizada “para ocultar as realidades
imediatas, econômicas, sociais, políticas e culturais dos
imigrantes ou das comunidades diaspóricas.” Segundo o
autor, “a aura pós-colonial, a celebração da diáspora e o
enaltecimento da estética da hibridez tendem a ocultar
os conflitos sociais reais em que os grupos imigrantes ou
diaspóricos estão envolvidos” (SANTOS, 2006, p. 240).
A advertência é seguida por Mia Couto quando
não minimiza as tensões e confrontos de personagens
originárias das sociedades metropolitanas europeias
e moçambicanas. De uma maneira geral, todas – de
diferentes formas – são atingidas pelos contatos, afetando
seus modos de pensar, falar, escrever e agir.
Tensionadas pela violência ou pelo descompasso
cultural e linguístico, os encontros produzem seres
dialógicos que repensam os valores da consciência, da
cultura e da linguagem. Os valores possuem uma dinâmica
variável, múltipla e flutuante cujas origens históricas são
os acidentes, as fricções, os erros e a dispersão. Como
enfatiza José Manuel Oliveira Mendes, o “o indivíduo
forma sua identidade não na reprodução pelo idêntico,
mas sim do ruído, dos conflitos entre os agentes e
lugares de socialização” (MENDES, 2002, p. 505). Tal
conformação encontra-se presente na obra de Mia Couto
em que as “fricções” do contato, expressos entre europeus
e africanos, encenam as diferenças social, econômica,
étnica, racial, religiosa, de gênero. As diferenças ampliamse quando o corpo marginalizado torna-se o local da
subversão e do preconceito. É o que ocorre no conto
Rosalinda, a nenhuma cuja metamorfose da personagem
serve de pretexto para se discutir a condição marginal
dos sujeitos:
Rosalinda era mulher retaguardada, fornecida de
assento. Senhora de muita polpa, carnes aquém e além
roupa. Sofria de tanto volume que se sentava no próprio
peso, superlativa. Já fora esbelta, dessas mulheres que
explicam o amor. (COUTO, 1998, p. 51)

Outro aspecto detonador da marginalidade social é o
amor. Este demarca, com profundidade, as modificações
da alma e da carne. Nos contos A princesa russa e A Rosa
Caramela, as consequências da experiência amorosa são
a alucinação, originária do mal-estar político e cultural.
Uma descaracterização brutal atinge a identidade das
personagens envolvidas, colocando-as à margem da
sociedade.
Tais contos apontam para um quadro em que
gestos e práticas discursivas oficiais desconsideram as
peculiaridades identitárias, tramadas na mistura étnica e
racial. Neste caso, a hibridez soa sempre como desvio que
rasura os preceitos raciais estabelecidos pela comunidade
nacional imaginada.
Navegações, Porto Alegre, v. 4, n. 2, p. 232-238, jul./dez. 2011

Os nacionalismos homogeneizantes asfixiam
encontros amorosos multiculturais, trazendo desoladores
efeitos às personagens. A intolerância ideológica e racial
está na base dos conflitos. Os trágicos resultados derivam
de preconceitos que convertem as promessas amorosas
em solidão e morte. A felicidade conjugal é recalcada por
uma ideologia que se infiltra nas escolhas individuais,
fazendo prevalecer a uniformidade racial da nação. Na
epígrafe que serve de abertura ao conto A rosa caramela,
lê-se:
Acendemos paixões no rastilho do próprio coração. O
que amamos é sempre chuva, entre o vôo da nuvem e
a prisão do charco. Afinal somos caçadores que a si
mesmo se azagaiam. No arremesso certeiro vai sempre
um pouco de quem dispara. (COUTO, 1998, p. 13)

Numa observação inicial, a lança – azagaia – arremessada refere-se à personagem Juca que se contamina
pelo próprio gesto. Ao ferir o outro, acaba por ferir-se,
corroendo parte de sua existência. Sua lassidão, vivida
na cadeira instalada na varanda, é fruto do remorso. A
doença preconizada igualmente é resultado do pesar
imposto ao outro. A ruptura do noivado conduz Juca à
paralisia, ao mesmo tempo, enlouquecendo a noiva Rosa.
A loucura da moça ecoa continuamente sobre a mente
do noivo que, embora tendo construído uma família, não
apaga o passado, enlaçando-se outra vez nas amarras da
paixão ao seguir os passos da louca.
Desde o abandono da moça no altar da igreja, Juca
não esquece o ato ferino que o imobiliza e o aflige. O
leitor, como o narrador, compartilha da mesma pergunta:
o que motivara a personagem a tal comportamento. O
corpo defeituoso de Rosa é uma das respostas plausíveis,
porém simplificada.
A perda do noivo gera em Rosa uma depressão
profunda, conduzindo-a à loucura. Família e nação igualmente a rejeitam, categorias singulares na constituição
do indivíduo. Sem o aconchego do lar e da pátria, Rosa
perambula à noite pelas ruas e praças da cidade, dedicando carinho pleno às estátuas. Esse circular solitário
alegoriza a dolorosa e violenta história do pós-colonial
em Moçambique. As consequências das guerras e das
diferenças ideológicas são a loucura, a imobilidade e a
solidão. O amor em tempos de cólera étnica e racial tornase inviável, impossibilitando as mestiçagens. Acuado pela
História oficial, Juca recusa Rosa, figura híbrida que se
marginaliza diante do autoritarismo nacionalista.
Teoricamente, trata-se de questionar ritos ideológicos,
assinalados pelo relativismo ou por verdades absolutos
que acabam por contrariar o motor das negociações,
entendendo que “não há comunidade ou massa de
pessoas cuja historicidade inerente, radical, emita os
sinais corretos” (BHABHA, 1998, p. 53). Em termos

Amores marginais e hibridismo no conto de Mia Couto

de identidade comunitária, a recusa de uma “lógica
essencialista e um referente mimético à representação
política é um argumento forte contra o separatismo
político de qualquer coloração, eliminando o moralismo
que acompanha tais reivindicações” (BHABHA, 1998,
p. 53). A opção de Bhabha reflete a crise do sujeito
histórico e do movimento socialista internacional, ao
mesmo tempo, ataca os fundamentalismos que se apossam
do estado, instaurando práticas culturais baseadas na
tradição religiosa, étnico-racial.
No conto A princesa russa, também a impossibilidade
amorosa resulta em loucura, solidão e remorso. Duarte
Fortin, um negro cristão, ama a patroa, uma emigrada
russa. Acossado pela culpa, Fortin busca na confissão ao
padre da comunidade a absolvição do pecado cometido.
O defeito físico da personagem parece comandar os atos
do mesmo que, em vista de sua condição, maltrata e pune
colegas de trabalho, agindo de forma autoritária. O uso
da delação faz com que o negro Fortin seja renegado
pelos companheiros de raça e classe. Na tentativa de
compreender as atitudes empregadas no passado quando
exercia a função de “encarregado geral da casa” da
princesa, a personagem faz a seguinte confissão:
Os criados me odiavam, senhor padre. Eu sentia aquela
raiva deles quando lhes roubava os feriados. Não me
importava até que gostava de não ser gostado. Aquela
raiva deles me engordava, eu me sentia quase-quase
patrão. Me disseram que este gosto de mandar é um
pecado. Mas eu acho é essa minha perna que me
aconselha maldades. Tenho duas pernas; uma de santo,
outra de diabo. Como posso seguir um só caminho?
(COUTO, 1998, p.78)

Se em A Rosa Caramela é a corcova nas costas que
limita a beleza da personagem, refletida na zombaria
enfrentada nas ruas, em A princesa russa é a perna
esquálida de Fortin que lhe serve de justificativa para
reagir com crueldade, segundo a própria personagem.
Fortin é um homem dividido entre dois mundos que se
cruzam e se confrontam. Pelo amor à patroa, procura
assimilar-se, seguindo as diretrizes impostas pela “casa
grande”, sem, todavia, alcançar êxito. Por amor adere
ao branco estrangeiro. Igualmente é contaminada pelo
humanismo da patroa Nádia que, na ausência do marido,
visita as precárias moradias dos empregados.
Por sua vez, a amizade de Nádia a Fortin gera inveja
nos demais empregados. A confiabilidade que Nádia
confere a Fortin produz no empregado sentimentos
dúbios que, aos poucos, vai se transformando em amor
pela emigrada russa. Todavia, diante da impossibilidade
de ver seu amor concretizado por uma mulher branca e de
classe social superior, o negro trai a patroa, não enviando,
a pedido dela, cartas à Rússia a um amante ao qual ainda

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se encontra enamorada. Ao perceber que a patroa está a
enlouquecer, uma vez que não recebe respostas, Fortin
elabora uma carta, simulando respostas do distante
amado.
A estratégia não resulta em sucesso, culminando na
morte da russa e na descoberta da carta pelo marido que
expulsa o empregado de suas terras. O exílio na própria
terra, somado à morte da patroa e a rejeição dos colegas
de trabalho, desencadeia em Fortin uma desestabilização
identitária cruel, levando-o a alucinações. No entanto,
as confissões amenizam o sofrimento, impedindo-o de
mergulhar num delírio irrecuperável. Numa passagem
significativa, o negro “mergulha” mãos e braços na terra,
numa alusão simbólica de retorno ao lugar de origem.
Embora manifeste em suas confissões que tenha sido a
escavação do solo a sua salvação, o gesto não apazigua
seus conflitos. Ao utilizar-se dos ritos católicos, dispõese a compreender as marcas da maldade, concluindo que
será sempre um homem dividido. No entanto, tem voltado
à região com freqüência para visitar o túmulo da amada e
mina abandonado, chegando à única conclusão:
A única alegria que me aquece, sabe qual é? É quando
saio do cemitério e vou passear nas poeiras e cinzas de
antiga mina dos russos. Aquela mina já fechou, faleceu
junto com a senhora. Eu caminho-me lá sozinho.
Depois sento num tronco e olho para trás, para esses
caminhos onde pisei. E sabe o que vejo, então? Vejo
duas pegadas, diferentes, mas ambas saídas do meu
corpo. Umas de pé grande, pé masculino. Outras são
marcas de pé pequeno, de mulher. Esse é o pé da
princesa, dessas que caminha ao meu lado. São pegadas
dela, padre. Não há certeza maior que eu tenho. Nem
Deus me pode corrigir desta certeza. Deus pode não
me perdoar nenhum pecado e eu arriscar o destino dos
infernos; Mas eu nem me importo: lá, nas cinzas desse
inferno, eu hei-de ver a marca desses passos dela,
caminhando sempre a meu lado esquerdo. (COUTO,
1998, p. 92)

As observações sobre as violências provocadas pelo
colonialismo português e os desdobramentos políticos
pós-independência em Moçambique cercam todos os
contos de Cada homem é uma raça. Mia Couto põe sob
juízo crítico o império português e o aparato ideológico
após a descolonização, apresentando personagens que
desafiam as práticas culturais na sociedade colonial e
pós-colonial.
As personagens Rosa e Fortin simbolizam a contínua dissolução das identidades. Aleijadas na razão
após sofreram os ferimentos provocados pelo amor não
concretizado, tais figuras buscam recursos distintos para
salvaguardar a desordem emocional.
Rosa, internada para tratamento, enamora-se das
paredes e pedras do hospital. Ao receber alta, cultiva o
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Fornos, J. L. G.

hábito de cuidar das estátuas da cidade, travando, em sua
loucura, diálogos com as mesmas. O jovem narrador filho
de Juca informa que a estátua preferida era um monumento de português dos tempos coloniais. O desfecho da
demonstração afetiva é a prisão da personagem. Diante
da veneração a um explorador colonialista português, o
governo moçambicano acusa a moça de saudosismo ao
passado colonial. Para o comandante militar, a loucura
de Rosa escondia razões políticas, senão, por que se opor,
com violência, a destruição da estátua pelas tropas da
independência? Em respeito à pátria encarceram Rosa e
derrubam o monumento.
O episódio ironiza o autoritarismo ideológico
nacionalista, sublinhando um dos componentes assinalado
por Pires Laranjeira (1995) como fundamentais da escrita
de Mia Couto: o humor que acaba por desdramatizar
episódios trágicos da nação. Contudo, não significa que a
crítica não seja efetuada, mas quase sempre vem suavizada
pelo tom humorado, na visão do estudioso. No entanto,
é preciso examinar com precisão se tal característica se
estende de fato ao conjunto da obra. No conto examinado,
ainda que o humor seja uma nota a ser constatada, tristeza
e desconsolo se sobrepõem ao final. Outro aspecto que
vem em auxílio à característica anterior é a criatividade e
inventividade lingüística. Para tanto, a oralidade assume
importância capital ao ser reelaborada no contexto
narrativo, alcançando equações poéticas singulares,
instaurando um projeto de definição de estatuto nacional.
Segundo Fonseca e Cury, essa estratégia de valorização
da oralidade, construída no espaço da escrita:
Faz com que o romance africano se insira de modo
original no cânone, ao mesmo tempo em que, por essa
mesma originalidade, ponha em xeque o cânone na
sua feição tradicional e a visão da oralidade como um
não-saber ou como um saber menor. Pode-se dizer,
até, que esse colocar em xeque se configura como uma
estratégia de afirmação da produção literária nacional.
(FONSECA e CURY, 2008, p. 13)

A crítica aos governantes pós-independência alicerçados na ideologia do marxismo-leninismo, imposta
arbitrariamente, não respeitando o indivíduo, é uma
tônica recorrente. Tomados pela cegueira do estado e do
partido únicos, empregam a força como forma de controle
social. Tal posição parece apenas inverter os pólos da
representação política, já que os métodos escalados
pelo regime após a independência se assemelham aos
praticados pelo colonialismo português autoritário.
No conto Sidney Poitier na barbearia de Firipe
Beruberu, predomina o destronamento paródico da repressão salazarista nas colônias, contrariando a propaganda oficial do estado português. É a face patética, repugnante e, ao mesmo tempo, cômica, do autoritarismo.
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Em sua atividade de barbeiro, o negro Firipe, para
atrair fregueses, mente aos seus clientes, contando que o
ator norte-americano, igualmente negro, Sidney Poitier
esteve em seu estabelecimento que se reduz ao abrigo
de uma frondosa árvore, onde mantêm os instrumentos
necessários ao exercício de sua atividade. Embora seja
uma mentira que não aleija ninguém, no dizer do próprio
barbeiro, a invenção criada num determinado contexto de
repressão política traz conseqüências funestas ao autor
da mentira. Ao ser interrogado pelos agentes da PIDE,
o barbeiro Firipe não consegue se desvencilhar das
armadilhas impostas pela própria invenção. Quanto mais
se esforça para se desfazer do mal-entendido, mais cai
em contradições, resultado da ignorância e perversidade
policial. Na tentativa de solucionar a situação, mostra
aos agentes a foto do ator, recebendo em contrapartida os
seguintes argumentos:
Mas esse nunca este aqui, juro. Fé-de-Cristo, senhor
agente. Essa foto é do artista do cinema. Nunca viu nos
filmes, desses dos americanos?
- Americanos, então? Está visto. Deve ser companheiro
do outro, o tal Mondlane4 que veio da América. Então,
este também veio de lá?
- Mas esse não veio de nenhuma parte. Isso tudo é
mentira, propaganda.
- Propaganda? Então deve ser tu o responsável da
propaganda da organização. (COUTO, 1998, p.160161)

A personagem Gaspar Vivito, ajudante do barbeiro,
sofre com a repressão em virtude da deficiência física. A
voz do rapaz, falada numa língua que, segundo o narrador,
era somente dele, traz igualmente novos mal entendidos.
Ao ser inquirido, Vivito é visto como um subversivo
estrangeiro ou expressando-se numa língua africana
esconde no uso convicções e confissões importantes.
Resultam dos episódios indignação, impotência e tristeza
em vista da truculência do regime repressivo colonial.
Para o compromisso com uma teoria e linguagem
críticas eficientes, o equívoco está em recusar a função
da ideologia na configuração das estruturas sociais e
dos sujeitos que as compõem. O engano igualmente
pode ocorrer quando do menosprezo da heterogeneidade
cultural promovida pelo hibridismo em tal teoria. O
hibridismo como dinâmica política e social está associado
aos fenômenos globais das identidades em trânsito que se
refugiam nas margens e centros do poder metropolitanos.
4

Um dos principais dirigentes e líder da FRELIMO (Frente de Libertação
de Moçambique) que havia sido encorajado pelo Padre Henry Junod
a fazer estudos numa escola secundária suíça, na África do Sul.
Assassinado em Dar-es-Salam, em 3 de fevereiro de 1969, segundo
um plano elaborado pela PIDE, Eduardo Mondlane aparece, em vários
textos literários escritos como um símbolo do destino coletivo do povo
moçambicano. (AFONSO, 2004, p.26)

Amores marginais e hibridismo no conto de Mia Couto

O hibridismo, como defende Bhabha, postula múltiplas
formas de ação e intervenções analíticas, sem a perda da
sistematização ideológica nos confrontos das políticas
globais e nacionais. No caso específico de África, a
violação colonial resultou em anos de contatos em que uma
complexa relação de poder e subversão se desenvolveram,
criando largas potencialidades culturais em torno da
multiculturalidade. Dessa feita, é significativa a descrição
do narrador em torno da personagem Rosa Caramela:
Dela se sabia quase pouco. Se conhecia assim,
corcunda-marreca, desde menina. Lhe chamávamos
Rosa Caramela. Era dessas que se põe outro nome.
Aquele que tinha, de seu natural, não servia. Rebatizada, parecia mais a jeito de ser do mundo. Dela
nem queríamos aceitar parecenças. A corcunda era a
mistura das raças todas, seu corpo cruzava os muitos
continentes. (COUTO, 1998, p. 15)

Na descrição, Rosa agrega ao nome original outra
nomeação. Ao ser rebatizado, passa a adequar-se melhor
ao mundo. Ainda que reconstituída no nome, não há
vontade de assemelhar-se a ela, pois Rosa é a mistura de
todas as raças, sendo seu corpo o cruzamento de vários
continentes. As razões do abandono, assinalado em outro
momento do texto, aparecem com nitidez quando da
constituição identitária da personagem. Figura híbrida,
resultado de múltiplas conexões, desautoriza o caráter
nacional dos sujeitos assinalados pela homogeneidade
étnica e racial.
Se os contos de Mia Couto podem ser lidos sob a
categoria do hibridismo, retoma-se outra vez a voz de
Homi Bhabha a fim de situar o conceito do estudioso.
Assim, na emergência dos entre-lugares, ocorrem
experiências intersubjetivas e coletivas de nação que,
combinadas com o valor da comunidade, precisam ser
analisadas.
É a partir da transnacionalidade e da emergência
do conceito de tradução cultural,5 provocado pelo
deslocamento, que se deve compreender tal projeto
histórico e literário. Em consequência, Bhabha propõe
uma teoria em que despontam sujeitos assinalados pela
coabitação assimétrica de culturas num contexto internacional, exigindo uma mudança paradigmática acerca
das categorias de nacionalidade, de raça e de classe.
Com efeito, sabe-se que a retórica do universalismo
liberal não é suficiente para a construção de cidadanias
plenas. No concerto internacional das nações, a busca de
5

Para Bhabha, a ideia de tradução não é a de “transportar fatias suculentas
de sentido de um lado da barreira de uma língua para a outra”. A cultura
como estratégia de sobrevivência é tanto transnacional como tradutória.
“A cultura é tradutória porque as histórias espaciais de deslocamento
tornam a questão de como a cultura significa, ou o que é significado por
cultura.” (BHABHA, 1998, p. 248.)

237
democracia econômica, política e cultural é um dos eixos
centrais para a emancipação dos povos, sendo as reformas
nas estruturas do atual modo de produção necessárias.
Nesse sentido, os contos chamam a atenção para o
quanto se está distante de tais mudanças, ainda que muito se
tenha refletido e escrito sobre desigualdades e diferenças.
Os textos informam acerca do desequilíbrio global que
continua a causar guerras, martirizando comunidades
em diferentes lugares do mundo. Neste caso, os contos
de Mia Couto enfatizam, em especial, para a condição
dos marginalizados absolutos que vítimas das políticas
internacionais e nacionais se encontram em situações
permanentes de risco. São os refugiados da guerra e da
fome cujas fórmulas ideológicas oficiais promovidas pelo
Estado e pelo capital global estão longe de alcançá-los em
suas necessidades mais urgentes.
A pergunta é qual o compromisso com esse contingente humano que, entregue a toda espécie de miséria,
se dispersa, buscando a redenção da terra. As personagens
de Mia Couto problematizam a natureza e a função do
intelectual hoje, evidenciando uma lacuna entre projetos
teóricos revolucionários com os humilhados pela
opressão econômica e cultural globais. Atento à crise
de representação do sujeito da revolução, Homi Bhabha
interroga-se:
Poderão esses sujeitos divididos e esses movimentos
sociais diferenciados, que se mostram formas
ambivalentes e divididas de identificação, serem
representados em uma vontade coletiva em que ecoa
claramente a herança iluminista de Gramsci e seu
racionalismo? De que forma a linguagem de vontade
coletiva concilia as vicissitudes de sua representação,
sua construção através da maioridade simbólica onde
os despossuídos se identificam a partir da posição
das pessoas de posses? Como construir uma política
baseada nesse deslocamento do afeto ou na elaboração
estratégia em que o posicionamento político é, de modo
ambivalente, fundado em uma encenação das fantasias
que requerem passagens repetidas pelas fronteiras
diferenciais entre o bloco simbólico e um outro e as
posições disponíveis para cada um? (BHABHA, 1998,
p.57)

De outro modo, os contos analisam o trabalho da
cultura como paradigma importante para a compreensão
das comunidades e dos indivíduos. Se os universalismos
– liberalismo, marxismos – trouxeram dificuldades,
igualmente o chamado multiculturalismo pode obliterar
as potencialidades do indivíduo e da nação. Para alguns,
o desenvolvimento do individualismo não é somente
fator positivo, mas condição para a realização da
democracia. Nesta perspectiva, tende-se a considerar as
manifestações das comunidades multiculturais como algo
problemático.
Navegações, Porto Alegre, v. 4, n. 2, p. 232-238, jul./dez. 2011

238
Em Cada homem é uma raça, Mia Couto ironiza os
poderes institucionalizados que põem limites ao heterogêneo. Nesse sentido, o hibridismo forjado no trânsito
internacional das diferentes raças e etnias compõe-se de
um capital simbólico expressivo. Uma sociedade mundial
livre das injustiças econômicas e culturais é a utopia
pregada pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos.
Nessa direção que se entende a proposta em torno
do terceiro espaço de que fala Homi Bhabha. Ainda que
seja irrepresentável em si, o terceiro espaço garante que
o significado e os símbolos da cultura não sejam tomados
como unidade ou fixidez primordial, liberando uma
produtiva instabilidade revolucionária, não na visão do
multiculturalismo exótico veiculado pelas grandes redes
midiáticas de comunicação, mas na articulação e defesa
da diferença cultural, assinalada pelo hibridismo. É sob
tal condição que a escrita poética de Mia Couto se detém e
se dispersa, ampliando as possibilidades de conhecimento
para além do contexto moçambicano e africano.

Referências
AFONSO, Maria Fernanda. O conto moçambicano: escritas
pós-coloniais Lisboa: Caminho, 2004.
BHABHA, Homi. K. O local da cultura. Belo Horizonte:
UFMG, 1998.

Navegações, Porto Alegre, v. 4, n. 2, p. 232-238, jul./dez. 2011

Fornos, J. L. G.

COUTO, Mia. Cada homem é uma raça. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1998.
COUTO, Mia. Pensatempos. Lisboa: Caminho, 2005.
CHAVES, Rita. Angola e Moçambique: experiência colonial e
territórios literários. São Paulo: Ateliê, 2005.
FONSECA, Maria Nazaré Soares; CURY, Maria Zilda
Ferreira. Mia Couto: espaços ficcionais. São Paulo: Autêntica,
2008.
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais.
Belo Horizonte: UFMG, 2003.
LARANJEIRA, José Luís Pires. A negritude africana de língua
portuguesa. Porto: Afrontamento, 1995.
LARANJEIRA, José Luís Pires. Literaturas africanas de
expressão portuguesa. Lisboa: Universidade Aberta, 1995.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: São
Paulo: Cortez, 2006.
SANTOS, Boaventura de Sousa. (Org.) A globalização e as
ciências sociais. São Paulo: Cortez, 2002.
SANTOS, Boaventura de Sousa. (Org.) Reconhecer para
libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
Recebido: 02 de junho de 2011
Aprovado: 30 de junho de 2011
Contato: [email protected]

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