Conceitos de comunidade, local e região: inter-relações e diferenças

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Conceitos de comunidade, local e região: inter-relações inter-r elações e diferença

Cicilia M. Krohling Peruzzo Doutora em Ciências da Comunicação (ECA-USP) Professora de Pós-graduação da Umesp E-mail: [email protected] 

 Marcelo de Oliveira Volpato Volpato  Mestrando em Comunicação (Umesp)

Resumo: Este texto aborda os conceitos de comunidade, local

e região. Parte de algumas definições clássicas e de suas reelaborações, com o objetivo de explicitar as noções básicas que caracterizam tais fenômenos, além de ressaltar diferenças e proximidades que os mesmos contêm. Mais especificamente, procura-se discutir o que caracteriza o local e a região no mundo atual. Serve-se de pesquisa bibliográfica. Constata-se Constata-se que os conceitos estão intrinsecamente relacionados, principalmente no tocante ao local e regional, pois cada um se relaciona com outras dimensões espaciais e são constituídos por fatores comuns, os quais, ao mesmo tempo, são portadores de diferenças. Palavras-chave: comunidade, local, região, proximidade. Conceptos de comunidad, local y región: relaciones y diferencias Este artículo discute los conceptos de comunidad, lugar y región. Su punto de partida son algunos conceptos clásicos y sus re-elaboraciones, con el objetivo de explicar las ideas básicas que caracterizan estos fenómenos y así resaltar las diferencias y proximidades que contienen. Concretamente, se aborda lo que caracteriza lo local y lo regional en el mundo de hoy. Se hace uso de la investigación bibliográfica. Los conceptos están intrínsecamente relacionados, pues cada uno tiene que ver con las dimensiones del espacio y son constituidos por factores comunes que, al mismo tiempo, portan sus diferencias. Palabras clave: comunidad, local, región, proximidad. Resumen:

Concepts of community, local and region: interconnections and differences Abstract: This paper deals about the concepts of community, local and region. It starts from some classical definitions and their re-elaborations, aiming aiming to explaining the basic notions of these phenomena, and indicates their differences and interconnections. More specifically, discusses the characteristics of local and region today. The paper is based on bibliographical research and point out that these concepts are intrinsically linked, particularly between local and region, because as each one relates itself to other spatial dimensions and are made of common factors, which, at the same time, have their differences. Key words: community, local, region, proximity.

E-mail: [email protected]

Introdução  

Em meio à intensidade da globalização, eis que ressurge a tendência à valorização do local. Paradoxalmente, apesar do fascínio pela informação internacionalizada e pela aparente homogeneização de valores, revitaliza-se o apreço pelo local, pela comunidade, pelo familiar. Não se negam as vantagens do mundo globalizado, entretanto, o interesse pelas raízes insere-se nessa complexidade a ponto de fazer-nos ver o mundo por meio das relações e articulações entre global e local e não mais apenas pela globalização. Tratase da glocalização.1 É a dinâmica global que interage com o local, criando e re-criando identidades globais e locais. Alguns pesquisadores arriscam explicar esse processo social, como Manuel Castells (1999:85), para quem a revitalização do local é uma reação defensiva ao atual contexto social da globalização, da formação das redes e da flexibilidade de tempo e espaço:  Neologismo resultante das palavras “globalização” e “localização”.

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Quando o mundo se torna grande demais para ser controlado, os atores sociais passam a ter como objetivo fazê-lo retornar ao tamanho compatível com o que podem conceber. Quando as redes dissolvem o tempo e o espaço, as pessoas se agarram a espaços físicos, recorrendo à sua memória histórica.

O local, a comunidade, a família, por nos serem próximos, tendem a representar segurança e proteção em um mundo aparentemente instável, de proporções globais etc. Uma vez estruturados com base em harmonia e solidariedade, seriam espaços de abrigo e amparo em meio às turbulências da vida urbana. Analisamos neste texto, brevemente, aspectos dos conceitos de “comunidade”, “local” e “região”. Partimos de algumas abordagens clássicas e identificamos reelaborações com o objetivo de explicitar as noções básicas que caracterizam tais fenômenos, além de ressaltar as diferenças e proximidades que os mesmos contêm. Mais especificamente, procuramos discutir o que caracteriza região e local no mundo atual. Servimo-nos de pesquisa bibliográfica. Trata-se de trabalho em processo de construção e que, por lidar com temas complexos e  já altamente altamente trabalhad trabalhados os a partir de expre expressissivas e contraditórias concepções, está sujeito a complementações. Mas, mesmo sendo ainda aportes iniciais, talvez possam contribuir com pistas para o embasamento teórico-conceitual de estudos sobre processos comunicacionais na perspectiva comunitária, local e regional. 1. Comunidade: complexidade e   reelaborações

O termo “comunitário” vem sendo utilizado, nos últimos tempos, de forma desordenada, o que contribui para uma confusão conceitual que esvazia seu significado. Qualquer agrupamento tem sido chamado de comunidade, sejam bairros, vilas, cidades, segmentos religiosos, segmentos sociais, redes de relacionamentos na internet etc. Ultimamente, a formação de grupos e redes on-line

facilitada pela Comunicação Mediada por Computadores (CMC) tem contribuído ainda mais para desvios conceituais. Por essa razão, resgatamos brevemente, neste trabalho, os conceitos clássicos de “comunidade”, além de tentarmos apanhá-los em suas reelaborações e transformações. tr ansformações. Porém, parece-nos indicarmos que há relações com aspertinente questões local e regional. Muitos foram os pensadores a se debruçarem sobre o conceito “comunidade”. Poderíamos, a título de exemplo, citar alguns clássicos como Ferdinand Tönnies (1973, 1995), Max Weber (1973), Robert A. Nisbet (1953), Martin Buber (1987), T Talcott alcott Parsons (1969), além de contribuições mais recentes, como as de Zygmunt Bauman (2003), Gianni Vattimo Vattimo (2007), Roberto Espósito (2007), Davide Tarizzo (2007), Manuel Castells (1999), Marcos Palácios (2001), Raquel Recuero (2003), além de Cicilia Peruzzo (2002) e Raquel Paiva (2003), entre outros, que procuram relacionar os conceitos de “comunidade” à comunicação. Entretanto, parte-se de uma constatação de Palácios (2001:1) de que a “idéia ou conceito de Comunidade, tão central na Sociologia Clássica, é uma invenção da Modernidade”. Com essa nova forma de organização social, surgem teorizações que apresentam possíveis contraposições entre comunidade e sociedade. Mas o que não há como negar é que a palavra “comunidade” evoca sensações de solidariedade, vida em comum, independentemente de época ou de região. Atualmente, seria o lugar ideal onde se almejaria viver, um esconderijo dos perigos da sociedade moderna. Como nos mostra Bauman (2003:7), “‘comunidade’ produz uma sensação boa por causa dos significados que a palavra ‘comunidade’ ‘comunidade’ carrega carrega”: ”: é a segurança em meio à hostilidade. Para compreendermos os aspectos fundamentais e essenciais do conceito, resgatamos alguns breves aportes das contribuições teóricas de pensadores clássicos, como Max Weber (1973:140-143), para quem a comu-

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nidade é um conceito amplo que abrange situações heterogêneas, mas que, ao mesmo tempo, apóia-se em fundamentos afetivos, emotivos e tradicionais. O autor (1973:140) chama de comunidade “uma relação social quando a atitude na ação social – no caso particular, em termo médio ou no tipo puro –ouinspira-se no sentimento sent subjetivo (afetivo tradicional) dosimento partícipes da constituição de um todo”. Para Weber Weber (1973:141), assim como para Ferdinand Tönnies (1973), a “maioria das relações sociais participa em parte da comunidade e em parte da sociedade”. Weber (1973:140-143) aponta que, na comunidade, os fins são racionalmente sustentados por grande parte de seus participantes e que o sentido comunitário contrapõe-se à idéia de “luta”. Além disso, registra o autor, nem toda participação em determinadas qualidades, da situação ou da conduta, implica em comunidade. Tampouco, a idéia comunitária pode ser definida simplesmente pela partilha de situação homogênea, ou por um sentimento de situação comum, de suas conseqüências e por uma mesma linguagem. Em si, isso não implica uma comunidade. Comunidade só existe propriamente quando, sobre a base desse sentimento [da situação comum], a ação está reciprocamente referida – não bastando a ação de todos e de cada um deles frente à mesma circunstância – e na medida em que esta referência traduz o sentimento de formar um todo (Weber, 1973:142).

ao direito natural, à língua e à concórdia: “aonde quer que os seres humanos estejam ligados de forma orgânica pela vontade e se afirmem reciprocamente, encontra-se alguma espécie de comunidade” (1995:239), ou seja, a vida em comunidade baseia-se em relações sociais.

O estudo da alteridade cultural deve ser guiado pela semioética, livre da autoproteção e das culpas impostas às mídias por seu moralismo superficial 

A teoria da comunidade se deduz, segundo as determinações da unidade completa das vontades humanas, de um estado primitivo e natural que, apesar de uma separação empírica e que se conserva através desta, caracteriza-se diversamente segundo a natureza das relações necessárias e determinadas entre os diferentes indivíduos que dependem uns dos outros (Tönnies, 1973:98).

Ainda em Tönnies (1995:239) encontramos que a comunidade de sangue (unidade de existência) tende a se desenvolver como comunidade de lugar (fundamentada na habitação comum) que, conseqüentemen-

Ferdinand Tönnies (1973:104), além de trabalhar com as contraposições entre comunidade e sociedade, apóia-se nas relações entre mãe e filho, entre esposos e entre irmãos e irmãs que se reconhecem filhos da mesma mãe para explicar um tipo de comunidade. A existência de processos comunitários estaria ligada, em primeiro lugar, aos laços de sangue; em segundo lugar, à aproximação espacial e, em terceiro lugar, à aproximação espiritual. Tönnies ainda relaciona comuni-

te, desdobra-se em comunidade espírito (baseada em atividade comum). Adecomunidade de pensamento, que se expressa pelo conjunto coerente de vida mental, seria para o autor a mais elevada forma de comunidade. Em outras palavras, a base da vida comunitária estaria na comunhão de pensamento e de ideais. Tönnies (Idem:239) considera que as características da comunidade podem estar relacionadas a três gêneros de comunidades: a) parentesco; b) vizinhança e c) amizade. O parentesco relaciona-se aos laços de sangue

dade a uma vontade comum, à compreensão,

e à vida comum em uma mesma casa, mas

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podem não se limitar à proximidade física. Esse sentimento pode existir por si mesmo com o afastamento físico, entretanto entretanto,, as pessoas sempre estarão à procura da presença física e real da família, do parentesco. A vizinhança caracteriza-se pela vida em comum entre pessoas próximas da qual nasce um

liberta de limites e conceitos”. Para ele, “comunidade e Vida são uma só coisa”. Continuando, Buber (1987:34) acrescenta:

sentimento mútuo de favores etc. Dificilmente issodeseconfiança, mantém sem a proximidade física. A amizade está ligada aos laços criados nas condições de trabalho ou no modo de pensar. Nasce das preferências entre profissionais de uma mesma área ou daqueles que partilham da mesma fé, trabalham pela mesma causa e reconhecem-se entre si.

A comunidade fim eosfonte Nossos sentimentos deévida, que de nosVida. mostram o parentesco e a comunidade de toda a vida do mundo, não podem ser exercitados totalmente a não ser em comunidade. E, em uma comunidade pura nada podemos criar que não intensifique o poder, o sentido e o valor da Vida. Vida e comunidade são os dois lados de um mesmo ser. E temos o privilégio de tomar e oferecer a ambos de modo claro: vida por anseio à vida, comunidade por anseio à comunidade.

Devido às inter-relações entre comunidade, local e região, há dificuldades em se estabelecer fronteiras entre esses espaços, o que pode criar confusões conceituais

A comunidade que imaginamos é somente uma expressão de transbordante anseio pela Vida em sua su a totalidade. totalidade . Toda Toda Vida nasce de comunidades e aspira a comunidades.

Importante registrar ainda que, para Buber (1987:39), a humanidade se originou de

uma comunidade primitiva, passou pelanova escravidão da sociedade e “chegará a uma comunidade que, diferentemente da primeira, não terá mais como base laços de sangue, mas laços de escolha”. Nesse sentido, o autor  já reconhe reconhecia cia e antecipa antecipava va que as noções de parentesco e de território não seriam condição essencial e obrigatória para se caracterizar Nessa perspectiva, o autor parece reco- uma comunidade. Sê-la-ia a comunhão de esnhecer a existência de comunidades na vida colhas, a vontade comum, a partilha de um urbana. Inclusive, para ele, a vida urbana mesmo ideal, noções atualmente primordiais pode ser representada pela comunidade de para se entender as comunidades virtuais.2 vizinhança. Trata-se da tendência de TönRobert E. Park e Ernest W. Burgess nies de apanhar a comunidade sempre em defendem aque umadacomunidade relação à vida em grupos coesos e unidos por (1973:148) deve ser considerada partir “distribuiinteresses em comum. ção geográfica dos indivíduos e instituições Tentando ir além da perspectiva de Fer- de que são compostos” comp ostos”.. Trabal Trabalhando hando na ppersersdinand Tönnies, Martin Buber (1987:34) pectiva de Tönnies, para os autores, “toda expressa uma visão de comunidade ide- comunidade é uma sociedade, mas nem toda al, em que “homens maduros, já possuídos sociedade é uma comunidade”. por uma serena plenitude, sintam que não Autores como R. M. MacIver e Charles podem crescer e viver de outro modo, ex- Page (1973:122-123) já disseram que a noção ceto entrando como membros” em fluxo de do territorial específico não é condição sine doação e entrega criativa em razão de uma liberdade maior. “A nova comunidade tem 2   Sobre comunidades virtuais, ver: “The virtual communipor finalidade a Vida. Não esta vida ou aque- ty”, de Howard Rheingold (versão eletrônica disponível em la, vidas dominadas, em última análise, por http:www.rheingold.com/vc/book/, acesso em 1º/10/09) e Radelimitações injustificáveis, mas a vida que quel Recuero (2003). Líbero – São Paulo – v. 12, n. 24, p. 139-152, dez. de 2009 Cicilia M. Krohling Peruzzo / Marcelo de Oliveira Volpato Volpato – Conceitos de comunidade, local e região...

 

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qua non para a existência de vida comunitá-

ria, mas sim a participação na vida comum da comunidade. E no mundo atual, o que pode ser considerado comunidade? Ao discutir as formas de organização social na sociedade contemporânea, Marcos Palácios (2001:4) defende que alguns elementos fundamentais caracterizam uma comunidade na atualidade: a) sentimento de pertencimento; b) sentimento de comunidade; c) permanência (em contraposição à efemeridade); d) territorialidade (real ou simbólica); e) forma própria de comunicação entre seus membros por meio de veículos específicos. Para ele, a questão da territorialidade assume novo sentido: O sentimento de pertencimento, elemento fundamental para a definição de uma Comunidade, desencaixa-se da localização: é possívelisso pertencer à distância. mente, não implica a pura Evidentee simples substituição de um tipo de relação (facea-face) por outro (a distância), mas possibilita a co-existência de ambas as formas, com o sentimento de pertencimento sendo comum às duas (Palácios, 2001:7).

Nesse sentido, a territorialidade pode assumir caráter físico ou simbólico. A localidade geográfica passa a não ser considerada característica intrínseca de uma comunidade porque, mesmo à distância, pode-se se sentir parte. Não é que o território não possua mais valor para a comunidade. Ocorre que agora esse território pode ser físico-geográfico ou simbólico. Assim, adquire adquire relevância o sentimento de pertença, já que se pode pertencer à distância. O que está em jogo é a vontade e os interesses dos membros. Para José Marques de Melo (1981:58), comunidade é um fenômeno social inexistente no Brasil, ao menos em áreas urbanizadas e alfabetizadas, já que A nossa estrutura política, autoritária e desmobilizante, não tem permitido a disseminação dos ideais democráticos, indispensáveis a qualquer aglutinação comunitária. Talvez as experiências propriamente

comunitárias no Brasil (além das sociedades tribais, isoladas da sociedade nacional) sejam aquelas que encontram na miséria um fator de aglutinação: nas favelas das grandes cidades e nos povoados das áreas rurais, constituídas respectivamente por migrantes e imigrantes potenciais.

Essas reflexões de Marques de Melo datam do início da década de 1980, época do regime militar no Brasil, contexto social de repressão política e social. Atualmente, vive-se outra conjuntura, marcada por globalização e democracia, mas as condições apontadas em parte persistem – como o acirramento de tendências individualistas, por exemplo –, embora outras sejam agregadas, haja vista o aumento da violência. E, ao mesmo tempo, surgem sinais agregadores e de revitalização das identidades locais e de laços comunitários os mais diferentes. Segundo Manuel Castells (1999:79), é  justamente nas condições globalizantes do mundo que “as pessoas resistem ao processo de individualização e atomização, tendendo a agrupar-se em organizações comunitárias que, ao longo do tempo, geram um sentimento de pertença e, em última análise, em muitos casos, uma identidade cultural, comunal”. A hipótese do autor é a de que, por meio de um processo de mobilização social, as pessoas participem de movimentos urbanos defendendo interesses em comum. Trata-se de uma dinâmica de fortal fortalecimento ecimento de identidades, como mostrou Stuart Hall (2006:85): “O fortalecimento de identidades locais pode ser visto na forte reação defensiva daqueles membros dos grupos étnicos dominantes que se sentem ameaçados pela presença de outras culturas”. São movimentos de construção de identidades, como ressalta Castells (1999:24): a) identidade legitimadora: representada pelas instituições dominantes interessadas em expandir sua dominação; b) identidade de resistência: representada pelas pessoas em condições desvalorizadas e resistentes à dominação; c) identidade de projeto: ocorre quando as pessoas se mobilizam, criando

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Nesse mesmo sentido parecem caminhar as idéias de Milton Santos (2006:38) quando chama o espaço de Um conjunto de fixos e fluxos. Os elementos fixos, fixados em cada lugar, permitem ações que modificam o próprio lugar, fluxos novos ou renovados que recriam as condições ambientais e as condições sociais, e redefinem cada lugar. Os fluxos são um resultado direto ou indireto das ações e atravessam ou se instalam nos fixos, modificando a sua significação e o seu valor, ao mesmo tempo em que também se modificam.

Pode-se perceber que o local é um espaço que apresenta certa unidade, certa especificidade, mas que pode se modificar, como também se modificam seus fluxos, ou seja, eles possuem características que podem ser transitórias: em dado momento, apresentam uma unicidade, em outro momento, não mais. Na prática, a América Latina pode ser tomada como uma comunidade, localidade, região, continente. Nessa perspectiva, pode-se compreender o local pelos contrastes entre o aqui e o alhures, o próximo e o distante, o concidadão e o estrangeiro, o autêntico e o apócrifo. E ainda, apanhá-lo nas relações dicotômicas entre o local e a comunidade, o local e o regional, o local e o nacional, o local e o global. Para Ortiz (1999:60-61), basta entender as inter-relações entre cada entidade espacial, uma vez que, nas palavras de Milton Santos (2006:218), “a localidade se opõe à globalidade, mas também se confunde com ela. O Mundo, todavia, é nosso estranho. Entretanto, se, pela sua essência, ele pode esconder-se, não pode fazêlo pela sua existência, que se dá nos lugares”, ou seja, o global e o local fazem parte de um mesmo processo social, com características sinérgicas, no qual cada dimensão espacial é transformada uma pelas outras. Torna-se evidente que o local implica também um espaço com características peculiares, que evoca sentimentos de familiaridade e vizinhança, congrega certa identidade e história, hábitos e linguagem comuns, como demonstrou de modo exageradamente implacável Renato Ortiz (1999:59):

Um espaço restrito, bem delimitado, no interior do qual se desenrola a vida de um grupo ou de um conjunto de pessoas. Ele possui um contorno preciso, a ponto de se tornar baliza territorial para os hábitos cotidianos. O ‘local’ se confunde, assim, com o que nos circunda, está ‘realmente ‘realmente presente’ em nossas vidas. Ele nos reconforta com sua proximidade, nos acolhe com sua familiaridade. Talvez, por isso, pelo contraste em relação ao distante, ao que se encontra à parte, o associemos quase que naturalmente à idéia de ‘autêntico’.

O local implica um espaço com características peculiares, que evoca sentimentos de familiaridade e vizinhança, congrega identidade e história Importa dizer que, devido às relações sociais, econômicas e políticas, às configurações midiáticas, às novas tecnologias e aos processos comunicativos delas decorrentes, contornos físico-geográficos precisos não se prestam como regra universal para caracterização de uma localidade ou região (ver Peruzzo, 2006). Talvez possam ter validade para situações específicas, entretanto, não é o caso de abandonar as fronteiras físicas, nem tampouco limitar-se a elas. Bourdin (2001:25), ao discutir o lugar da dimensão local na sociedade contemporânea por meio de um paradigma do local, propõe pensar que A localidade às vezes não passa de uma circunscrição projetada por uma autoridade, em razão de princípios que vão desde a história a critérios puramente técnicos. Em outros casos, ela exprime a proximidade, o encontro diário, em outro ainda, a existência de um conjunto de especificidades sociais, culturais bem partilhadas...

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A noção de local engloba desde aspectos técnicos, como os limites físicos – rios, oceanos, lagos, montanhas, diferenças climáticas, características de solo, aspectos político-econômicos –, até diversidade sócio-cultural, histórica, de identidade, lingüística, de tradições e valores etc., ou seja, estão em jogo as várias singularidades as práticas sociais. nas quais se constroem

Com o avanço da tecnologia e das redes de comunicação, é possível existir proximidade além da “pro “proximidade ximidade de identidades” 

Em Molina Argandoña e Soleto Selum (2002:7), encontramos que, em geral, “o local se associa à proximidade física, quase cotidiana, entre pessoas e grupos, e destes com processos, organizações, instituições e um território concreto”.3 Os autores (2002:8) também definem o local a partir do encontro permanente entre os indivíduos e da possibilidade de estes assistirem, com a “própria carne”,, cara a cara, às decisões políticas. carne” A nosso ver, como já discutimos, proximidade física e territórios concretos não são encarados como característica universal do local, pois, com o avanço da tecnologia e das redes de comunicação, é possível existir proximidade, mesmo com as distâncias físicas, além da “proximidade de identida i dentidades” des”,, já que os sentimentos de pertença e proximidade independem de recortes físico-geográficos. Na perspectiva de Peruzzo (2006:144), O local se caracteriza como um espaço determinado, um lugar específico de uma 3

 Tradução dos autores: “lo local se asocia con la cercanía física, casi cotidiana, entre personas o grupos, y de estos con procesos, organizaciones, instituciones y un territorio concreto”.

região, no qual a pessoa se sente inserida e partilha sentidos. É o espaço que lhe é familiar, que lhe diz respeito mais diretamente, muito embora as demarcações territoriais não lhe sejam sej am determinantes.

Bourdin (2001:25-57), por sua vez, acredita que a vulgata localista pode ser apanhada em dimensões: o local necessário; b) o localtrês herdado; c) o a) local construído. O local necessário é caracterizado pelo sentimento de pertença a um grupo comunitário, que poderia ser caracterizado pelos vínculos de sangue, da língua língu a e do territó território. rio. Para o autor, esse vínculo comunitário estaria apoiado em uma antropologia localista que é composta por fatores históricos, etnológicos e pelo que o autor chamou de ““evidência evidência de falta” falta”.. A evidência da falta nos é oferecida pelas diásporas contemporâneas: ainda quando a situação de uma minoria emigrada é satisfatória, exílio, a nostalgia, o desejoodesentimento encontrar de novamente sua terra, de estar na própria casa muitas mui tas vezes se afirmam. Eles se exprimem facilmente numa reivindicação nacional, particularmente entre as minorias em perigo, mas também na dolorosa ausência de um “em-casa”, no lar, no bairro, na aldeia (Bourdin, 2001:32).

Em última instância, é a busca pelas raízes, por satisfazer o sentimento de pertença que existe no âmago dos indivíduos, de viver-junto,, da vida em família, do pertencer viver-junto a um “nó “nós” s”.. O local herdado relaciona-se aos aspectos históricos e representa o peso que o passado pode ter sobre o presente – portanto, por tanto, leva em conta a genealogia e suas relações familiares: “o “o local é, pois, um lugar privilegiado de manifestação delas, se admitirmos que as estruturas antropológicas são principalmente um conjunto de representações e de códigos transmitidos pela prática, como os mitos se exprimem nos ritos” (Bourdin, 2001:43). São locais herdados de fatores históricos e de identidade local que podem estar manifestados nos bens culturais e no conjunto de regras comuns vividas por seus membros e expressos na religião, na cultura, na etnia

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etc. Como bem disse Castells (1999), são refúgios de identidade construídos como reação defensiva contra a desordem e a inconstância global. Por fim, o local construído é visto como Uma forma social que constitui um nível de integração das ações e dos atores, dos grupos e das trocas. Essa forma é caracterizada pela relação privilegiada com um lugar, que varia em sua intensidade e em seu conteúdo. A questão se desloca então da definição substancial do local à articulação dos diferentes lugares de integração, à sua importância, à riqueza de seu conteúdo... (Bourdin, 2001:56).

Carlos Camponez (2002:35) defende que, por mais que se fale que a globalização trouxe o fim das fronteiras e a abolição dos limites geográficos, o local ainda possui a sua geometria: o principal efeito da globalização é o de criar uma nova “gramática do espaço”, já que tal globalização tende ser uma idéia um tanto metafísica. É essa gramática do espaço que dá novos significados ao local, ao espaço. Para Camponez (Idem:50), “a “a noção de marco geodésico fica profundamente perturbada: o centro está aqui e está es tá em todo o llado. ado.”” Nesse sentido, as distâncias espaciais podem desaparecer, tornando possível uma proximidade por confluência de identidades, independentemente de uma proximidade física. Ou seja, o “local não é mais o pólo oposto ao global porque o que se opõe à globalização não é o território, territór io, é a exclusão” (Camponez, Idem, ibidem): os “info-excluídos”, aqueles que estão à margem do acesso à informação e os que estão à margem da informação de qualidade. Convém ainda abordar dois erros que, segundo Camponez (Idem:59), devem ser evitados na abordagem da questão global-local. O primeiro seria entender a globalização como um processo capaz de promover a homogeneização cultural de forma global. O segundo seria limitar o local às relações de face a face, em um território específico. Essa falsa antinomia teria a função ideológica de conter as tensões contraditórias do sistema mundial.

Sobre a questão da homogeneização cultural, há que se recorrer a Hall (2006:77), para quem essa visão parece exageradamente simplista. Ele propõe pensar a partir das novas articulações entre o global e o local e não a partir do eclipse do local pelo global, o que implica o fortalecimento das identidades locais e a produção de identidades híbridas, originadas do processo de “tradução cultu4 ral”:   pertence-se a mais de uma identidade, fala-se mais de uma linguagem cultural (Hall, 2006:89). Faz-se oportuna uma reflexão sobre a comunidade, já que esta tangencia algumas características do local, local , pois, como dissemos, o local relaciona-se com outras dimensões espaciais. Contudo, didaticamente, pode-se dizer que a comunidade está inserida em um espaço local, assim como o local faz parte de um espaço regional. Na comunidade, os laços são e apresentam maior coesão entremais seusfortes membros quando comparados ao local – enquanto que o espaço local, por sua vez, apresenta características mais uniformes se colocado em contraste com a região (ver Peruzzo, 2006:146). Tal relação é apenas um recurso didático, pois as delimitações desses espaços são múltiplas e flexíveis. Na opinião de Milton Santos (2006:108-9), A distinção entre lugar e região passa a ser menos relevante do que antes, quando se trabalhava com uma concepção hierárquica e geométrica o lugar devia ocupar uma extensão doonde espaço geográfico menor que a região. Na realidade, a região pode ser considerada como um lugar, desde que a regra da unidade, e da continuidade do acontecer histórico se verifique. E os luga4

  Sobre esse processo de tradução cultural, o autor ressalta: “Este conceito descreve aquelas formações de identidade que atravessam e intersectam as fronteiras naturais, compostas por pessoas que foram dispersadas para sempre de sua terra natal. Essas pessoas retêm fortes vínculos com seus lugares de origem e suas tradições, mas sem a ilusão de um retorno ao passado. Elas são obrigadas a negociar com as novas culturas em que vivem, sem simplesmente serem assimiladas por elas e sem perder completamente suas identidades” (Hall, 2006:88). Nesse caso, a palavra “tradução” deve ser encarada como “transferir”, “transportar entre fronteiras”.

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res – veja-se o exemplo das cidades grandes – também podem ser regiões.

Essa complexidade das interconexões entre dimensões espaciais foi também por nós discutida (Peruzzo, 2006:145) 2006:145) na tentativa de compreender sua forma relacional: Qualquer uma dimensões de de espaço só se realiza, sobdas o ponto de vista suas fronteiras, ou melhor, das pseudo-fronteiras, se colocada em contraposição com o seu contrário. O local só existe enquanto tal, se tomado em relação ao regional, ao nacional ou ao universal. Na outra ponta, o global, como parâmetro de referência, precisa se tornar local para se realizar. Afinal, o ato de consumir é local. A indústria de tênis da marca “x” só aumenta seu faturamento se o calçado for consumido aqui e ali, ou seja, em localidades l ocalidades concretas. 3. A Região  

A mesma complexidade advinda da impossibilidade possibili dade de se delimitar o local ocorre na questão regional, haja vista sua relatividade e a efemeridade de suas demarcações. Além disso, os termos “região” e “regional”, assim como “comunidade”, “comunitário” e “local” têm sido usados, pelo senso comum, com significados dos mais variados, o que contribui para um esvaziamento conceitual, ou seja, faz com que os tais conceitos percam sua força explicativa e seus significados essenciais. Poderíamos tomar como ponto de partida as idéias trazidas pela Enciclopédia Einaudi (1986:161), que, de início, afirma que a noção de “região” é imprecisa: “é uma palavra [...] usada para designar um dos níveis (por vezes vários), dentro duma taxonomia. O inconveniente está no fato de a posição hierárquica poder variar de disciplina para disciplina”. A complexidade e relatividade do termo ficam também evidentes no seguinte conceito: “Pode ser aplicada a uma fração de um estado ou de uma nação, como a um agrupamento de estados ou de nações, próximos pelas características econômicas, políticas ou

culturais e, geralmente, pela situação geográfica” (Enciclopédia Einaudi, 1986:161). Na Enciclopédia Einaudi (1986:163-175), ( 1986:163-175), encontra-se uma classificação do conceito em: a) região natural; b) região homogênea; c) região polarizada ou funcional. A região natural seria aquela que considera a paisagem suas características comofísica, topografia, vegetação, etc.geográficas Entretanto, é a “idéia mais forte, a mais consistente e resistente às críticas e à erosão das teorias” (1986:163). Já a região homogênea é aquela que leva em conta o grupo humano como organização regional, e depende das especificidades “humanas”. Por fim, a região polarizada ou funcional é caracterizada pela uniformidade de trocas e fluxos que unem os vários elementos do mercado. Nessa perspectiva, evidencia-se o caráter abstrato e incerto dos princípios de uma região,especificidades principalmente se tomados apenas pelas geográfico-territoriais. Deve-se apanhá-la, sobretudo, como um espaço contraditório e incerto que se relaciona com outras dimensões espaciais, mas que possui certa contigüidade histórica de fluxos (de informações, econômicos etc.), de fixos (elementos físicos), sócio-cultural, e demais singularidades simbólicas (como a proximidade simbólica e não só a territorial, ligada ao sentimento de pertença à questão dos interesses), uma vez que “a região e o lugar n não ão 5 têm existência própria.  Nada mais são que uma abstração, se os considerarmos à parte da totalidade” (Santos, 2006:108). Recorre-se ainda a Richardson (1975:221222), para quem o conceito está envolto em ambigüidades: o tamanho de uma região pode variar desde um pequeno centro populacional e seus arredores até uma grande sub-região dentro de um continente, dependendo da escala e tipo t ipo de questões estudadas. Ou ainda, pode decorrer da contigüidade, uma vez que, ao dividir a economia nacional  Fala-se até na existência do não-lugar e da negação da idéia de região (Santos, 2006:165), entretanto, é por meio da região e do

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lugar que o mundo se dá empiricamente (Santos, 2006:108).

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em regiões, toda a área do país tem que ser incluída dentro de uma ou outra região. O autor aborda a região sob três aspectos (1975:224-227): a) regiões uniformes ou homogêneas: fundamenta-se na idéia de que unidades espaciais separadas podem ser aglutinadas por apresentarem certa unifor-

to que, se for apanhado de forma descontextualizada, pode não representar nenhum significado. Como no caso da localidade, a região deve ser apanhada dentro de um contexto relacional, isto é, da região com o global, da região com o local, em suma, do regional com outras dimensões espaciais.

midade características, possui estruturas e, de como produção semelhantes, padrões homogêneos de consumo, fatores geográficos, atitudes sociais semelhantes, identidade, concepção política etc.; b) regiões nodais ou polarizadas: leva em conta a interdependência dos componentes dentro da região e não de suas relações com outras regiões. Leva em conta os fluxos de população, bens, serviços, comunicações, tráfego etc.; c) região de planejamento ou de programação: é definida em relação à unidade dos processos de tomada de decisões. Segundo o autor

a regionalização pode ser Assim, uma reação ao processo detambém globalização, como a criação de regiões – ou “comunidades regionais” – de livre comércio entre países

(1975:227), estas devem coincidir com as regiões nodais.  Há que se considerar também a efemeridade e a contínua transformação das regiões. Ao mesmo tempo que uma dada região se apresenta com determinados contornos, ela pode ter seus limites alterados e uma nova região pode ser formada. Veja-se o caso do continente Americano, que pode, conforme as circunstâncias e os interesses, assumir os contornos continentais e/ou sul-americanos, norte-americanos, latino-americanos, mesoamericano, hispano-americano, ibero-americanos, além da região do Mercosul, da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) etc. Nos dizeres de Santos (2006:165-166), As condições atuais fazem com que as regiões se transformem continuamente, legando, portanto, uma menor duração ao edifício regional. Mas isso não suprime a região, apenas ela muda de conteúdo. conteúdo. A espessura do acontecer é aumentada, diante do maior volume de eventos por unidade de espaço e por unidade de tempo. A região continua a existir, mas com nível de complexidade jamais visto pelo homem.

Devido a essa instabilidade de conteúdos e contornos, “região” adquire caráter abstra-

 Apesa  Ap esarr d dee eestar star env envolt oltoo em ambigüidades e subjetividades, o conceito de “região “região”” não se baseia apenas na  geogra  geo grafia, fia, mas na int inter er-secção entre as ciências vizinhos, a exemplo do já citado Mercosul, ou da União Européia, que institucionalizou uma moeda própria. São novas organizações – ou reorganizações – resultantes das atuais necessidades econômicas. Nesse caso, para a criação dessa região, o que está em jogo são os interesses mercadológicos e políticos, e não a proximidade físico-geográfica. A Suíça, por exemplo, é um país com proximidade territorial que não integra a União Europ Européia. éia. Esses agrupamentos podem ocorrer em diversos níveis, sejam internacionais, interestaduais, intermunicipais e até inter-regionais. As regiões não são apenas resultantes de interesses econômicos. Questões de toda sorte, como, por exemplo, processos históricos, tradições e costumes, dependência de serviços públicos, semelhanças culturais e lingüísticas etc. são consideradas nesse processo complexo de agrupamentos e reagrupamentos espaciais. A região hispanoamericana, por exemplo, refere-se a países que falam a língua espanhola; já a região latino-americana não congrega países com

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singularidade lingüística, mas aqueles que apresentam certa contigüidade históricosocial e cultural. Entretanto, há que se dizer que essas regiões não são homogêneas. Ao mesmo tempo que apresentam proximidade em alguns aspectos, em outros podem ser totalmente diferentes. Isso, todavia,

No caso brasileiro, por extensão, poderse-ia dizer que as regiões resultam de processos históricos tão remotos quanto a colonização do continente americano e do Brasil. No entanto, talvez não faça sentido afirmar a existência de precisos contornos regionais tendo por base as regiões geográficas for-

não exclui regiões. Elas continuam existir, masessas de forma bastante complexa ae abstrata. As regiões se definem, então, por um jogo de oposições e contraposições de inúmeros fatores.

malmente estabelecidasSul), (Norte, Nordeste, Sudeste, Centro-Oeste, uma vez que as peculiaridades e os recortes territoriais não são determinantes das relações entre elas, nem suas configurações são inconfundíveis. Além de que “a proximidade já não se mede em metros” (Camponez, 2002:129), as interrelações econômicas, comunicacionais, as apropriações culturais e as interdependências políticas, de segurança etc. contribuem para diluir fronteiras. Sobre essa questão, recorremos a Pierre Bourdieu (2004:114-115), que afirma:

 As delimitações físico geográficas não se  prestam a entender os espaços em questão no mundo contemporâneo, ao menos não como critérios únicos

Na concepção de Pedro Coelho (2002:36), “a região, um território definido, possui determinados traços identificadores – a língua, a história, a cultura, a economia, um mesmo projeto para o futuro – em suma, uma identidade6 própria. Esse território é dominado pelas relações que se geram en entre tre as pesso pessoas” as”.. Miguel de Moragas Spá (apud Coelho, 2002:36) pontua que as regiões na Europa são fruto apenas de definições geográficas ou administrativas – elas “são o resultado de grandes processos históricos de herança de estruturas de origem feudal, e até de épocas anteriores à romanização, tudo isso determinou profundas diferenças e traços de identidade entre as regiões do continente”. 6

 Para o autor (2002:35), identidade pode ser entendida pelo “conjunto de fatores intrínsecos da comunidade, como a raça, a língua, a história e, principalmente, a cultura”. Segundo ele, as regiões com identidade comunitária sólida “sabem quem são”. São elas que, por várias razões, adquirem um forte poder reivindicativo, ou seja, de mobilização em prol de um mesmo objetivo.

A fronteira nunca é mais do que o produto de uma divisão a que se atribuirá maior ou menor fundamento na ‘realidade’, segundo os elementos que ela reúne tenham entre si semelhanças mais ou menos numerosas e mais ou menos fortes. [...] Cada um está de acordo em notar que as ‘regiões’ delimitadas em função de diferentes critérios concebíveis (língua, habitat , tamanho da terra etc.) nunca coincidem perfeitamente. Mas não é tudo: a ‘realidade’, neste caso, é social de parte a parte par te e as classificações mais ‘naturais’ apóiam-se apóiam-se em características que nada têm de natural e que são, em grande parte, produto de uma imposição arbitrária, quer dizer, de um estado anterior da relação de forças no campo das lutas pela delimitação legítima.

Apesar de estar envolto em ambigüidades e subjetividades, o conceito de “região” não se baseia apenas na geografia, mas na intersecção entre as ciências, pois está ligado, basicamente, à noção de diferenciação de áreas. Além disso, há que se considerar a importância dos espaços, sejam aqueles com contornos comunitários, locais ou regionais, afinal, “ place counts” (Santos, 2006:10) parece ser a expressão da ordem – ou seja, o lugar tem importância.

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Considerações  

À guisa de conclusão poder-se-ia considerar que as dimensões espaciais, seja a comunidade, o local e a região, relacionam-se entre si e, por isso, para compreendê-las, há que se levar em conta as relações e as interdependências históricas, econômicas, políticas, comunicacionais, sociais entre elas, sem menosprezar,, é claro, as especificidades. Em ounosprezar tras palavras, as delimitações físico-geográficas não se prestam a entender os espaços em questão no mundo contemporâneo, ao menos não como critérios cr itérios únicos. Comunidade e região estão inseridas numa complexidade social que não abandona as delimitações físicas, mas também não se limita a elas. Na era da sociedade em rede, e também em outros tempos, além de a proximidade física compartilhar do seu ambiente com a afinidade de identidades, outros fatores históricos, naturais, econômicos, comunicacionais, culturais etc. conferem a elas peculiaridades, ao mesmo tempo que as diluem. Os meios de comunicação, como suportes tecnológicos e de informação, acompanham os processos sociológicos em um movimento sinérgico no qual interagem com as dimensões sócio-espaciais, influenciando-as, ao mesmo tempo que são influenciados por elas. A tendência social de valorização do espaço local e comunitário como uma pos-

sível resposta a algumas características da globalização, tais como o individualismo e a homogeneização, é, por extensão, observada nos meios de comunicação por meio de um interesse da população por informações de proximidade, veiculada, principalmente, pela mídia local e comunitária. As mídiassocietárias acompanham características no quetambém tange à sua programação e conteúdos. As comunitárias tendem a se relacionar com os agentes sociais em laços mais fortes, nos quais o sentimento de pertença aparece como elemento fundamental na sua formação. Não trazem a perfeição das concepções clássicas de comunidade, mas apresentam características comunitaristas inovadoras, como se buscou traçar. As mídias locais e regionais, por sua vez, evocam sentimentos peculiares e incorporam certa identidade, mas não de forma intensa como no caso das comunitárias. Entretanto, é importante resgatar a idéia de que esses elos ocorrem muito mais pelas relações de interesse e sentimento de pertencimento e de identidades do que por razões geográfico-territoriais. Pelo que foi demonstrado, infere-se que as identidades são construídas numa íntima relação com as condições em que as pessoas vivem. Portanto, Portanto, são históricas e transitórias, permanecem e se renovam no contexto das inter-relações estabelecidas no local e na conectividade estabelecida no mundo.

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