Sinal de Menos 7

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[-] Sumário # 7 EDITORIAL

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ARTIGOS MALTHUS RELOADED?

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A produção de alimentos na encruzilhada da história Daniel Cunha

DIALÉTICA DA NATUREZA E OBJETIVISMO

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Maurílio Lima Botelho

MARCUSE E A QUESTÃO DO TRABALHO

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Joelton Nascimento

SUJEITO E MODERNIDADE

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A revolução urbana e o maio de 68 na França Gláuber Lopes Xavier

GÊNERO E TRABALHO REVISITADOS

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O trabalho doméstico hoje sob as lentes de Helena Hirata e Roswitha Scholz Íris Nery do Carmo

O SPLEEN DA CIDADE SITIADA

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Esquema de “Tableaux Parisiens”, “Revolte” e “La Mort” Cláudio R. Duarte

TRADUÇÕES LITERÁRIAS ESBOÇO DE UM EPÍLOGO PARA A SEGUNDA EDIÇÃO DAS “FLORES DO MAL”

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Charles Baudelaire

EXPEDIENTE

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 3, n°7, 2011

Editorial Após um intervalo maior do que os anteriores, eis aqui o novo número de Sinal de Menos, com capa reproduzindo obra de Ludwig Meidner. Ao que tudo indica, a revista passará a ser semestral. Talvez a novidade desta edição seja o aparecimento de alguns temas ainda não abordados em nossas páginas. A crítica da mercadoria e do trabalho é aqui ampliada pela crítica da agricultura capitalista e da dita “ciência marxista” nos moldes do objetivismo da ciência positivista. Por outro lado, o Maio de 68 visto por um de seus principais interlocutores marxistas – Henri Lefebvre –, vem de par com a releitura crítica da obra de Herbert Marcuse, particularizada pelo foco na questão do trabalho. Eis os assuntos dos quatro primeiros artigos. Desde a Revolução Industrial, o capitalismo aparentemente superou os temores de escassez da produção de alimentos. Os “críticos” da agricultura então quase se restringiram à temática da distribuição. Entretanto, os métodos de produção capitalista de alimentos começam a esbarrar em seus limites ecológicos e em suas contradições internas, como já em seu tempo conceituou Karl Marx. Em seu artigo "Malthus reloaded?", Daniel Cunha mostra o conjunto de tendências que aponta para uma crise de produção de alimentos no século XXI, assim como busca indicar as potencialidades de alguns movimentos que vão em direção à reconfiguração do metabolismo social com a natureza. O artigo de Maurílio Lima Botelho, “Dialética da natureza e objetivismo”, retoma a crítica da dialética como “visão de mundo” a-histórica. Aquilo que em Marx se tornou uma concepção histórico-materialista e crítico-negativa da sociedade da mercadoria torna-se no marxismo vulgar uma teoria reificada, que se põe como a teoria e o método abstrato das “leis objetivas” da história em geral. O autor mostra a conexão histórica desse movimento de abstração epistemológica com a industrialização retardatária na Europa, especialmente na Alemanha. O texto de Joelton Nascimento, “Marcuse e a questão do trabalho”, retoma o percurso do filósofo alemão, da concepção ontológica do trabalho à crítica do “princípio de desempenho”, a partir de obras como Razão e Revolução, O marxismo soviético e Eros e Civilização, momentos sucessivos de uma ampliação da crítica da civilização moderna, no

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sentido de uma crítica integral do modo de vida regido pelo desempenho instrumental e produtivista. O texto aponta ainda quais seriam os limites e os pontos cegos dessa crítica. O artigo de Glauber L. Xavier – “Sujeito e modernidade – a revolução urbana e o maio de 68 na França” – repassa as discussões de Henri Lefebvre a respeito do maio de 68, principalmente com base no ensaio A irrupção, publicado logo após os eventos. A luta dos estudantes não pode ser dissociada da cidade como lugar da reunião e do uso e do conceito lefebvriano de “revolução urbana”. O segundo artigo de Íris N. do Carmo publicado na revista – “Gênero e trabalho revisitados” – revisita o conceito de “trabalho doméstico” por meio do confronto dos textos teóricos de Helena Hirata e Roswitha Scholz, promovendo o debate crítico e o esclarecimento das posições e dos conceitos produzidos pelas duas autoras. Por fim, o ensaio de Cláudio R. Duarte – “O spleen da cidade sitiada” – é uma leitura de partes fundamentais das Fleurs du Mal de Baudelaire, as seções “Tableaux Parisiens”, “Révolte” e “La mort”, sob a luz dos massacres de 1848 e do Segundo Império de Napoleão III. Além de revelar significados alegóricos insuspeitados em poemas canônicos como “Paysage”, “Crépuscule du soir”, “Rêve parisien” e “La mort des pauvres”, o interesse do texto é mostrar o movimento lógico do livro e de cada seção em particular, coisa em geral negligenciada pela crítica fragmentária de poemas isolados. A revista conclui com a seção de “traduções”, em que aparece uma tradução de um poema cortado das edições brasileiras de Fleurs du Mal, um esboço de epílogo para a segunda edição do livro. Os versos revelam claramente, quase em ritmo de síntese da obra, o contexto francês iniludível de 1848 e do Segundo Império. Agosto de 2011

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Malthus reloaded?

A produção de alimentos na encruzilhada da história

Daniel Cunha I. Malthus O paradigma malthusiano por séculos tem servido aos (pseudo)intelectuais conservadores para a justificação da miséria, da fome e das desigualdades, já que ...o poder da população é muito maior do que o poder da terra de produzir a subsistência do homem. A população, quando não controlada, cresce em proporção geométrica. A subsistência cresce somente em proporção aritmética. (...) Isto implica um controle populacional forte e constante devido à dificuldade de subsistência. Esta dificuldade deve recair em algum lugar e deve ser necessariamente sentida de forma severa por uma grande parte da humanidade1.

Assim, justifica-se a fome como uma força inelutável, uma lei natural. Sob muitas formas, variações e distorções, o argumento malthusiano, que confere “uma expressão brutal ao ponto de vista brutal do capital” (Marx), tem sido recuperado ao longo dos últimos dois séculos. Aqui ocuparemo-nos com o seu contexto original: o da produção de alimentos e sua capacidade de sustentar uma população do planeta que deve chegar a 9 ou 10 bilhões de pessoas em 2050.

II. Desmentido A esquerda sempre rejeitou o malthusianismo, vendo a fome e a miséria não como um problema de produção, mas de distribuição. A produção de alimento sempre foi (ou poderia ter sido) suficiente para alimentar a todos, mas as contradições internas do capitalismo manteriam a fome em meio à abundância – incluindo crises de superprodução. De fato, não foram poucas as refutações do problema malthusiano, desde a sua apresentação, que 1

MALTHUS, Thomas. An essay on the principle of population, as it affects the future improvement of society, Adelaide: eBooks@Adelaide, 2010 (livro eletrônico). Segundo Marx, Malthus era um plagiador: “esse trabalho (...) não passa de um plágio escolar, superficial, com tinturas sacerdotais, extraído de Defoe, Sir James Stewart, Townsend, Franklin, Wallace e outros, não contendo nenhuma proposição original. O grande sucesso alcançado por este panfleto decorreu unicamente de paixões políticas” (O capital). Mantemos a referência a ele por ser o representante clássico deste pensamento.

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destacavam o caráter social e histórico da produção humana. As forças produtivas sociais se desenvolvem ou, mais especificamente, a produtividade do solo pode ser aumentada pelo engenho humano. James Anderson, contemporâneo de Malthus, já chamou a atenção para o fato de que o simples manejo do esterco pelos camponeses aumentava a produtividade da terra2. O argumento malthusiano surgiu em um contexto crítico quanto ao fornecimento de alimentos na Europa, quando da existência de reais problemas de fornecimento de alimentos para o crescente proletariado inglês. Tais dificuldades acarretaram a abolição das corn laws (protecionismo do trigo), já que os preços do pão na Inglaterra eram excessivamente altos para a pobre força de trabalho, imprescindível para a extração de mais-valia, mas cuja rebelião era uma constante ameaça. Politicamente, isto significou a ascensão da burguesia, com o deslocamento dos landlords, refletindo, portanto, o que já acontecia no plano econômico. Com a expansão da Revolução Industrial para a Europa Continental, entretanto, a questão da produção de alimentos permaneceu. Ao longo da Idade Média, a terra era deixada ociosa entre os cultivos (pousio), período durante o qual era refertilizada através dos rebanhos que pastavam em locais próximos e fertilizavam a terra agricultável. A necessidade de produção ampliada de alimentos, entretanto, levou ao cultivo intensivo da terra, ou seja, sem pousio3. Isto se fez possível através da utilização de plantas forrageiras e leguminosas, que fixam nitrogênio (necessário para a fertilidade) da atmosfera, com gado pastando no próprio solo cultivado para melhorar as suas propriedades (teor de matéria orgânica) 4. A produção sem descanso do solo foi facilitada pelo sistema de arrendamento inglês, onde o arrendatário era cobrado não pela qualidade do que produzia, mas pela produtividade

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Ver FOSTER, John Bellamy. A ecologia de Marx: materialismo e natureza, Rio de Janeiro: Civlização Brasileira, 2005, p. 205-ss. “Para entender as diferenças existentes entre os sistemas de produção alimentar gerados pela Revolução Agrícola e os que prevaleceram – e ainda sobrevivem – em sociedades ou regiões não-industrializadas, é de fundamental importância conhecer o estratégico papel desempenhado por um personagem muito corriqueiro, mas estranhamente esquecido por muitos de nós. Chama-se de „pousio‟ e significa basicamente a interrupção do cultivo de uma área, por um ou mais anos, para que a fertilidade natural da terra posa se regenerar. A intensidade do uso da terra, extremamente variável, tanto no tempo quanto no espaço, pode ser aquilatada pela duração desse descanso da terra”. (VEIGA, José Eli da. O desenvolvimento agrícola, São Paulo: Edusp, 2ª. ed., 2007, p. 31). Para uma ótima descrição do desenvolvimento histórico dos agroecossistemas, ver MAZOYER, Marcel e ROUDART, Laurence. História das agriculturas do mundo: do neolítico à crise contemporânea, São Paulo: Unesp, 2010.

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abstrata da terra5: era o embrião do agribusiness. No modelo francês, o pequeno agricultor sobreviveu, mas o cultivo sem pousio também se impôs. A agricultura intensiva pôde, assim, alimentar o crescente proletariado industrial. O conjunto de condições sócio-econômicas e técnicas deste período deu origem à explosão populacional a partir da Revolução Industrial6. Enquanto nas sociedades tradicionais o excesso relativo de população era um transtorno, no capitalismo o contingente populacional excedente ou “exército industrial de reserva” (Marx) é funcional para o sistema: No capitalismo, pois, a superpopulação era determinada não simplesmente pela existência de uma população excedente relativa de trabalhadores em busca de emprego e portanto de meios de subsistência; mas, mais fundamentalmente, pelas relações de produção que tornavam a existência continuada dessa população excedente relativa necessária ao sistema7.

Como a necessidade é a mãe da invenção, a ciência do solo se desenvolveu. Seu maior expoente, Liebig, de quem Marx sofreu grande influência, conceituou as leis gerais dos nutrientes do solo, e a lei do mínimo: os solos necessitam ser suplementados com o nutriente limitante para que a sua produtividade aumente8. Questão de tempo em solos explorados intensivamente, as primeiras limitações de fertilidade a emergir foram dos macronutrientes

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“Aqui, a renda em dinheiro significa a renda fundiária resultante de simples metamorfose da renda em produtos, por sua vez oriunda da transformação da renda em trabalho. Com este significado distingue-se da renda comercial ou industrial baseada no modo capitalista de produção e que constitui apenas um excesso sobre o lucro médio. O produtor imediato em vez de entregar o produto ao proprietário da terra, que pode ser o Estado ou um particular, paga-lhe o correspondente preço. Assim, não basta mais o produto excedente na forma natural; é mister que ele deixe essa forma, assumindo a forma de dinheiro. O produtor direto, embora produza como dantes pelo menos a maior parte dos meios de subsistência, tem agora de converter parte do produto em mercadoria, de produzi-lo como tal. Em conseqüência, muda de caráter em maior ou menor grau o modo de produção”. MARX, Karl. O capital: crítica da economia política, Livro Terceiro, Parte Sexta, XLVII (Gênese da renda fundiária capitalista), Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 1052-1053. “A mudança para a safra anual na Europa Ocidental era descrita como o resultado de uma revolução técnica autônoma, ou seja, a alegada descoberta da possibilidade de cultivar a terra sem pousio através de rotações de cultura com plantas forrageiras, das quais algumas eram leguminosas. O rápido crescimento da população na Europa Ocidental foi considerado o resultado, e não causa, desta mudança. Entretanto, historiadores econômicos revisaram a explicação tradicional da revolução agrícola. Foi revelado que virtualmente todos os métodos introduzidos no período eram conhecidos anteriormente e que as rotações de cultura sem pousio e com leguminosas foram usadas no mundo antigo no Mediterrâneo e em outras regiões”. BOSERUP, Ester. The conditions of agricultural growth: the economics of agrarian change under population pressure, London: George Allen & Unwin Ltd, s. d. Disponível em http://www.biw.kuleuven.be/aee/clo/idessa_files/Boserup1965.pdf (acesso em 27.08.2011). Este e outros trechos de edições estrangeiras citados neste artigo têm tradução minha. FOSTER, John Bellamy, A ecologia de Marx: materialismo e natureza, op. cit. Ver esta obra para uma discussão exaustiva de Malthus e sua crítica marxista, com ênfase na teoria da falha metabólica de Marx. Em outros termos, para aumentar a produtividade do solo é preciso adicionar aquele nutriente do qual ele é relativamente mais pobre, de nada adiantando o aporte de outros nutrientes.

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nitrogênio e fósforo. O problema foi resolvido com a importação de guano – esterco de aves, ricos em nitrogênio, fósforo e potássio – do Peru, e nitratos do Chile, sem dispensar a importação de ossadas humanas das guerras napoleônicas. Mas foi no século XX que a suplementação dos solos degradados pelo capitalismo amadureceu, com o processo desenvolvido por Fritz Haber e levado a escala industrial por Bosch (processo Haber-Bosch). Trata-se de um processo de sintetização de amônia a partir do nitrogênio atmosférico e do metano presente no gás natural, processo energeticamente intensivo. O fósforo e o potássio, demais nutrientes da tríade NPK, são industrialmente explorados em minas. Junto a outras técnicas e aportes de insumos (irrigação, motomecanização, melhoramento genético de espécies...) a chamada “revolução verde” permitiu um vertiginoso crescimento de produtividade na produção de alimentos e o seu consequente barateamento. Do cultivo manual aos últimos estágios da motomecanização a quantidade de grão produzido por trabalhador passou de cerca de 10 toneladas para 20 mil toneladas, e a superfície por trabalhador subiu de 10 hectares para 150 hectares9. De fato, esta revolução agrícola pode ser considerada o outro lado da moeda do fordismo industrial: o barateamento dos alimentos foi parte essencial da estabilização do capitalismo pós-guerra10. Liebig e Marx, no entanto, já em seu tempo percebiam que a agricultura baseada na suplementação do solo possui um núcleo rapinador. Dizia o agrônomo: É possível que, após tantas investigações sobre a origem dos elementos dos animais e dos vegetais, o uso de álcalis, de cal e de fosfatos, ainda existir dúvida a respeito dos princípios dos quais depende uma agricultura racional? Pode a arte da agricultura basear-se em alguma outra coisa que não a restituição de um equilíbrio perturbado? É imaginável que um país qualquer, por mais rico e fértil, com um comércio próspero, que exporta seus produtos por séculos na forma de grãos e gado, mantenha a sua fertilidade, se o mesmo comércio não restaura, com alguma forma de estrume, aqueles elementos que foram removidos do solo, e que não podem ser repostos pela atmosfera? O destino do solo da Virgínia, certa vez prolífico, agora em muitos lugares incapaz de cultivar a sua produção anterior – trigo e tabaco –, não estará à espera de todos estes países? Em grandes cidades da Inglaterra o produto da agricultura tanto inglesa quanto estrangeira é largamente consumido; elementos do solo indispensáveis para as plantas não retornam aos campos11.

Ver MAZOYER, Marcel e ROUDART, Laurence. História das agriculturas no mundo: do neolítico à crise contemporânea, op. cit., fig. 10.1. 10 Sobre fordismo e agricultura, ver ABRAMOVAY, Ricardo. Paradigmas do capitalismo agrário em questão. São Paulo: Edusp, 2007. 11 LIEBIG, Justus. Familiar letters on chemistry, and its relation to commerce, physiology and agriculture. Project Gutenberg, 2009 (livro eletrônico). 9

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E Marx: A indústria moderna atua na agricultura mais revolucionariamente que em qualquer outro setor, ao destruir o baluarte da velha sociedade, o camponês, substituindo-o pelo trabalhador assalariado. As necessidades de transformação social e a oposição de classes no campo são, assim, equiparadas às da cidade. Os métodos rotineiros e irracionais da agricultura são substituídos pela aplicação consciente, tecnológica, da ciência. O modo de produção capitalista completa a ruptura dos laços primitivos que, no começo, uniam a agricultura e a manufatura. Mas, ao mesmo tempo, cria as condições materiais para uma síntese nova, superior, para a união da agricultura e da indústria, na base das estruturas que desenvolveram em mútua oposição. Com a preponderância cada vez maior da população urbana que se amontoa nos grandes centros, a produção capitalista, de um lado, concentra a força motriz histórica da socidade, e do outro, perturba o intercâmbio material entre o homem e a terra, isto é, a volta à terra dos elementos do solo consumidos pelo ser humano sob a forma de alimentos e de vestuário, violando assim a eterna condição natural de fertilidade permanente do solo. Com isso, destrói a saúde física do trabalhador urbano e a vida mental do trabalhador do campo. Mas, ao destruir as condições naturais que mantêm aquele intercâmbio, cria a necessidade de restaurá-lo sistematicamente, como lei reguladora da produção e em forma adequada ao desenvolvimento integral do homem. (...) Na agricultura moderna, como na indústria urbana, o aumento da força produtiva e a maior mobilização do trabalho obtêm-se com a devastação e a ruína física da força de trabalho. E todo o progresso da agricultura capitalista significa progresso na arte de despojar não só o trabalhador, mas também o solo; e todo aumento da fertilidade da terra num tempo dado significa esgotamento mais rápido das fontes duradouras dessa fertilidade. (...) A produção capitalista, portanto, só desenvolve a técnica e a combinação do processo social de produção, exaurindo as fontes originais de toda a riqueza: a terra e o trabalhador12.

Assim, Marx formulou o seu conceito de falha metabólica na relação do homem com a natureza: A grade propriedade fundiária reduz a população agrícola a um mínimo sempre declinante e a confronta com uma sempre crescente população industrial amontoada nas grandes cidades; deste modo, ela produz condições que provocam uma falha irreparável no processo interdependente do metabolismo social, um metabolismo prescrito pelas leis naturais da própria vida. Isto resulta num esbulho da vitalidade do solo, que o comércio transporta muitíssimo além das fronteiras de um único país (Liebig)13.

MARX, Karl, O capital: crítica da economia política, op. cit., Livro Primeiro, Parte Quarta, XIII, 10, (Indústria moderna e agricultura), p. 570-571. 13 Karl Marx, O capital: crítica da economia política, op. cit., Livro Terceiro, Parte Sexta, XLVII, (Gênese da renda fundiária capitalista), p. 1070-1071. 12

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III.

Limites Ma jeunesse ne fut qu’un ténébreux orage, Traversé ça et là par de brillants soleils; Le tonnerre et la pluie ont fait un tel ravage Qu’il reste en mon jardin bien peu de fruits vermeils. Voilà que j’ai touché l’automne des idées, Et qu’il faut employer la pelle et les râteaux Pour rassembler à neuf les terres inondées, Où l’eau creuse des trous grands comme des tombeaux. Et qui sait si les fleurs nouvelles que je rêve Trouveront dans ce sol lavé comme une grève Le mystique aliment qui ferait leur vigueur? - Ô douleur! ô douleur! Le Temps mange La vie, Et l’obscur Ennemi qui nous ronge le coer Du sang que nous perdons croît et se fortifie!14 Charles Baudelaire, L’Ennemi

Entretanto, deveria ser claro que uma agricultura baseada, por um lado, no aporte de insumos externos para a manutenção da fertilidade do solo, e de outro, que produz alimentos objetivando o lucro, como mercadoria, mais cedo ou mais tarde tenderia ao colapso. Nos dias atuais isto vem se fazendo sentir na medida de sua escassez, ou seja, no preço. Conforme dados da FAO, os preços atuais dos alimentos estão em seu máximo histórico (figura 1). Os limites a que nos referimos são tanto internos quanto externos, ou seja, são limites tanto ecológicos quanto contradições internas do capitalismo. Para os dois picos de preços – 2008 e atual – há explicações conjunturais: desvio de milho para a produção de agrocombustíveis em 2008 e recentemente quebras de safra na

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Tradução livre: “Minha juventude foi apenas uma tenebrosa tempestade, / cortada aqui e ali por sóis brilhantes; / Os trovões e a chuva causaram tal devastação / Que restam em meu jardim poucos frutos vermelhos // Eis que alcancei o outono das idéias / E que é preciso usar a pá e o ancinho / Para reunir novamente as terras inundadas / Onde a água cava buracos fundos como túmulos // E quem sabe se as novas flores com as quais sonhei / Acharão neste solo lavado como uma praia / O alimento místico que fará o seu vigor? // Ó dor! ó dor! O Tempo devora a vida, / E o obscuro Inimigo que nos rói o coração / Do sangue que perdemos cresce e se fortalece!”; – “Como vemos, a modernidade artística apreciada e cultivada por Baudelaire vem impressa sob o signo da morte e de vários temas correlatos, tais como o spleen, o luto, a perda da auréola e do ideal, o mal e o satanismo, a luta de morte, a idéia fixa, o abismo, a noite, a metempsicose, o misticismo etc.” DUARTE, Cláudio R. “O abismo do negativo: Baudelaire e a forma fúnebre da beleza moderna”. Sinal de Menos, no. 3, p. 106-150. Disponível em www.sinaldemenos.org (acesso em agosto/2011).

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Rússia, EUA e China por fatores climáticos15. O que muito pouco se fala é que há um aumento tendencial (e não apenas circunstancial) dos preços dos alimentos, e que a estes dois fatores já citados somam-se vários outros.

Fig. 1. Evolução do índice de preços dos alimentos da FAO, com inflação descontada16

Em 2008 é geralmente aceito que teve peso decisivo o desvio de milho para a produção de agrocombustível nos Estados Unidos e na Europa. As estimativas variam; o economista do Banco Mundial Donald Mitchell afirma que este foi o principal fator da elevação dos preços em 200817. De fato, a produção de agrocombustíveis tem pressionado de tal forma a produção de alimentos que agora há uma correlação entre o preço do petróleo e o uso das safras de Sobre o efeito da mudança climática nos recentes aumentos de preços dos alimentos, ver comentário de Paul Krugman: KRUGMAN, Paul. “Aumentos dos preços dos alimentos”. O Estado de São Paulo, 06.02.2011. Disponível em http://blogs.estadao.com.br/paul-krugman/2011/02/06/aumento-dos-precos-dos-alimentos (acesso em 27.08.2011). 16 Dados da FAO: http://www.fao.org/worldfoodsituation/wfs-home/foodpricesindex/en/ (acessado em 25.07.2011). 17 “O aumento dos preços dos alimentos comercializados internacionalmente entre janeiro de 2002 e junho de 2008 foi causado por uma confluência de fatores, mas o mais importante foi o grande aumento na produção de biocombustíveis a partir de grãos e óleos vegetais nos EUA e na União Europeia. Sem estes aumentos, os estoques globais de trigo e milho não teriam declinado apreciavelmente e os aumentos de preços devido a outros fatores teriam sido moderados”. MITCHELL, Donald. A note on rising food prices. The World Bank, Development Prospects Group, July 2008, disponível em http://wwwwds.worldbank.org/external/default/WDSContentServer/IW3P/IB/2008/07/28/000020439_20080728103 002/Rendered/PDF/WP4682.pdf (acesso em 25.08.2011). 15

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milho. Quando preço do petróleo sobe, torna-se economicamente atrativa a utilização do grão para a produção de combustíveis. Estima-se que a quantidade de milho usada na produção de agrocombustíveis nos EUA em 2010 seria suficiente para as necessidades alimentares de 240 milhões de pessoas (ou três anos de aumento populacional)18. A mudança climática é outro fator que pode e deve afetar a produção agrícola. As variedades cultivadas atualmente passaram por um longo processo de seleção e melhoramento, de acordo com as regiões nas quais eram cultivados. Mudanças climáticas tendem a diminuir o rendimento das safras, pois as condições afastam-se daquelas ótimas para as quais as plantas foram selecionadas19. Mesmo que por vezes as mudanças possam tornar áreas inóspitas em terras agricultáveis, e aparentemente o aumento da concentração de dióxido de carbono na atmosfera aumente a produtividade vegetal, a readaptação e relocalização de cultivos é sempre custosa. Com relação à fertilidade do solo propriamente dita, sabe-se da ciência agronômica que os principais nutrientes são nitrogênio, fósforo e potássio (NPK). Como já visto, na agricultura capitalista ou agronegócio o solo é explorado ao máximo, de forma que torna-se necessário o aporte externo destes nutrientes. Entretanto, pelo menos os dois primeiros – nitrogênio e fósforo – podem ter o seu fornecimento dificultado nos anos vindouros. O nitrogênio sintético é obtido pelo processo Haber-Bosch, que sintetiza amoníaco a partir do nitrogênio atmosférico e hidrogênio. O hidrogênio, por sua vez, provém da reação entre o gás natural e a água. O problema é que o processo é energeticamente intensivo: a síntese do amoníaco necessita de pressões de 250 atmosferas e temperaturas de 450 graus Celsius. Além disso, usa gás natural como matéria-prima para o hidrogênio. Com a tendência de aumento de preços da energia nos próximos anos20, o preço do nitrogênio sintético tende aumentar. O caso do fósforo é diferente do nitrogênio em um aspecto crucial. Enquanto a matéria-prima principal dos fertilizantes nitrogenados é abundante na atmosfera (78% da atmosfera é composta de nitrogênio), e o nitrogênio dos fertilizantes tende a voltar à CASSMAN, Kenneth G. “Not enough grain”. The New York Times, 15.02.2011. disponível em http://www.nytimes.com/roomfordebate/2011/02/15/is-the-world-producing-enough-food/why-the-worldis-not-producing-enough-grain, acessado em 29.08.2011. 19 Estima-se que para cada grau Celsius acima da temperatura ótima para um cultivo, espera-se uma queda de 10% na produção de grãos. BROWN, Lester R. “The new geopolitics of food”. Foreign Policy, May/June 2011. Disponível em http://www.foreignpolicy.com/articles/2011/04/25/the_new_geopolitics_of_food (acessado em 29.08.2011). 20 Alguns dos elementos para isto foram desenvolvidos em meu texto: CUNHA, Daniel. “Queimando o futuro? O pré-sal como ilusão tardia e alavanca emancipatória”, Sinal de Menos, no. 4, 2010, p. 82-94. Disponível em www.sinaldemenos.org (acesso em agosto/2011). 18

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atmosfera através de processos microbiológicos (ciclo do nitrogênio), o fósforo, na forma de fosfato, provem de minas (rochas) que não se renovam. Nas condições naturais, a lenta erosão das rochas fosfáticas fornece o fósforo necessário ao metabolismo vegetal e animal. Enquanto até 1800 todo o fósforo adicionado ao solo agrícola provinha de esterco e guano, a partir da década de 50 do século XX a utilização de fosfato fóssil aumentou exponencialmente, atingindo 85% do fósforo utilizado (figura 2). Estima-se que o pico de produção de fósforo pode ocorrer em 203321; apenas três países (EUA, Marrocos e China) possuem três quartos das reservas mundiais de rocha fosfática. Assim, a tendência é que o preço do fertilizante de fósforo aumente, tanto por escassez quanto pelo fato de que as novas reservas exploradas tendem a ter qualidade inferior, além do efeito de possíveis tensões geopolíticas22.

Fig. 2: evolução das fontes de fertilizantes fosfatados23

Algumas das regiões de maior produção de alimentos do mundo, como o Punjab (Índia), a planície do nordeste da China, a Califórnia e o Meio-Oeste estadunidense podem enfrentar outro tipo de limitação: trata-se da escassez de água. Nestas regiões a irrigação das

Em processo semelhante ao pico do petróleo, conforme discutido em meu artigo: CUNHA, Daniel. “Queimando o futuro? O pré-sal como ilusão tardia e alavanca emancipatória”, op. cit. 22 Ver CORDELL, Dana et al. “The story of phosphorous: global food security and food for thought”, Global Environmental Change 19 (2009) 292-305. 23 Fonte: CORDELL, Dana et al. “The story of phosphorous: global food security and food for thought”, op. cit. 21

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plantações é realizada através da exploração de águas subterrâneas. Ocorre que o nível dos lençóis freáticos vem caindo, ou seja, a quantidade de água extraível está diminuindo 24. Na China, estudo do International Water Management Institute concluiu que para fazer uso sustentável da água subterrânea a área agricultável no nordeste da China deve ser diminuída de 40 a 60%25. No Vale Central da Califórnia, estudo com imagens de satélite mostrou que em um período de 78 meses perdeu-se 20.3 km3 de água do aqüífero, e que esta situação pode não ser sustentável nas próximas décadas26. Além da ameaça de escassez, o rebaixamento dos níveis do freático acarreta maiores custos de extração da água remanescente, e pode ser causa de sua salinização, inviabilizando o seu uso para a irrigação de culturas.

Fig. 3: Áreas com diferentes níveis de lençol freático na zona central do Punjab (Índia)27

Para uma análise global, ver WADA, Yoshihida et al, “Global depletion of groundwater resources”, Geophysical Research Letters, Vol. 37, L20402, 2010. 25 Melhorias de eficiência de irrigação não surtiriam efeitos. Isto é decorrência do balança hídrico: da água extraída, parte retorna ao aqüífero e parte sofre evapotranspiração. A precipitação complementa a recarga do aqüífero. O aqüífero terá uso sustentável se a taxa de recarga for igual à taxa de extração; ou seja, se a precipitação for igual à evapotranspiração. Como a precipitação não é controlável, a única variável de controle que se tem é a evapotranspiração, que é função da área irrigada e outros fatores como o vegetal cultivado e técnicas de cultivo. Como a demonstração é genérica, esta conclusão pode ser generalizada: para um dado cultivo, o uso sustentável da água subterrânea para irrigação comporta uma área de irrigação máxima.. Ver International Water Management Institute (IWMI). Choosing appropriate responses to groundwater depletion. Colombo, Sri Lanka: International Water Management Institute (IWMI), 2006. Disponível em http://www.iwmi.cgiar.org/Publications/Water_Policy_Briefs/PDF/WPB19.pdf (acessado em 28.08.2011). 26 Ver FAMIGLIETTI, J. S. et al, “Satellites measure recent rates of groundwater depletion in California‟s Central Valley”. Geophysical Research Letters, Vol. 38, L03403, 2011. 27 Fonte: JEEVANDAS, A. et al, “Concerns of groundwater depletion and irrigation efficiency in Punjab agriculture: a micro-level study”, Agricultural Economics Research Review, Vol. 21, July-December 2008, p. 191-199. 24

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O próprio solo encontra-se sob pressão. O solo é um recurso valioso, formado através de lentos processos geológicos de erosão de rochas e processos microbiológicos de degradação de matéria orgânica. A erosão na maioria das vezes ocorre por má gestão do solo, tal como o cultivo em terrenos excessivamente inclinados, o que do ponto de vista da produção global de alimentos não seria necessário, mas apenas no contexto de sua produção capitalista. Nos anos 90, 900 milhões de hectares foram degradados devido à erosão, globalmente. Com a agricultura moderna a erosão de solo ocorre a taxas muito maiores do que a sua taxa de sua formação. Ainda que existam técnicas relativamente simples de se evitar a erosão do solo28, a produção baseada na produtividade muitas vezes sacrificará os investimentos que visam manter a produtividade dos valores de uso (conservação do solo para a produção de alimentos) no longo prazo em nome da produtividade do dinheiro no curto prazo (lucratividade)29. O principal insumo da agricultura moderna na verdade é o petróleo. O agribusiness é de tal forma dependente do petróleo que talvez se possa dizer que comemos óleo. A dependência vai dos fertilizantes ao maquinário agrícola, do transporte dos alimentos ao o bombeamento de água, passando pelos agrotóxicos. O caso da Coréia do Norte é emblemático. Após o colapso da União Soviética, aquele país viu-se repentinamente privado do óleo da URSS. Resultado: fome30. Sabe-se que as reservas de petróleo estão atingindo o seu máximo de produção, que tende a declinar nos próximos anos31. Portanto, este é um limite objetivo para a agricultura energeticamente intensiva baseada em combustíveis fósseis. Por outro lado, a transição dos hábitos alimentares das populações dos países emergentes em direção a um maior consumo de proteína animal intensifica a demanda de alimentos e os limites ecológicos relacionados. Isto porque a criação de intensiva de gado – isto é, criado em confinamento e alimentado com ração à base de grãos – é nutricionalmente (e ambientalmente) ineficiente. Caso os grãos usados para alimentar o gado fossem Como, por exemplo, o plantio direto, técnica de plantio sem revolvimento do solo, que, no entanto, exige maquinário adaptado. 29 Para mais sobre erosão, ver por exemplo BROWN, Lester R. Outgrowing the earth: the food security challenge in an age of falling water tables, and rising temperatures. New York: W. W. Norton & Co., 2005, capítulo 5; MONTGOMERY, David R. “Soil erosion and agricultural sustainability”. Procedures of the National Academy of Sciences, vol. 104, no. 33, 2007, p. 13268-13272; e PIMENTEL, David et al, “Environmental and economic costs of soil erosion and conservation benefits”, Science, vol. 267, 1995, 11701122. 30 PFEIFFER, Dale Allen. Eating fóssil fuels: oil, food and the coming crisis in agriculture, Gabriola Island (Canada): New Society Publishers, 2006 (livro eletrônico). 31 Ver meu texto: CUNHA, Daniel. Queimando o futuro? O pré-sal como ilusão tardia e alavanca emancipatória, op. cit. 28

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consumidos diretamente, o aporte à nutrição humana seria maior do que consumindo a quantidade de carne equivalente32. Por outro lado, a possível alternativa da pesca também enfrenta a possibilidade de colapso dos cardumes, como conseqüência da redução da biodiversidade e da estabilidade dos ecossistemas aquáticos33. O desenvolvimento das forças produtivas redunda, contraditoriamente, em degradação da alimentação, dos alimentos e dos produtores de alimentos. Ultimamente, os alimentos cada vez mais têm transmitido doenças. Da vaca louca à gripe aviária, os métodos de criação de animais, em ambientes confinados com alta densidade de animais tratados com antibióticos e alimentados artificialmente, funcionam como uma verdadeira incubadora global de vírus e bactérias altamente resistentes34. Paul Roberts narra como uma bactéria inofensiva tornou-se um problema de saúde pública: Até o final da década de 70, a E. coli era uma das centenas de bactérias relativamente inofensivas que se disseminavam nos intestinos das vacas e outros ruminantes e que às vezes passava para o abastecimento de alimentos humano por meio da contaminação fecal, mas oferecia pouca ameaça à saúde humana. No entanto, a certa altura, no final do século XX, a bactéria E. coli adquiriu várias características novas e perigosas. Em primeiro lugar, a bactéria interagia com outro germe, a shigella, conhecida pela toxicidade ao homem e, dessa união, adquiriu os códigos genéticos para fabricar as chamadas toxinas Shiga. Esses desagradáveis compostos interrompem a síntese das proteínas na parede intestinal da vítima; com a interrupção da produção de proteína, a parede sofre uma perfuração e as toxinas ingressam na corrente sanguínea, onde começam a matar os glóbulos vermelhos e, em cerca de 5% dos casos, destroem os rins. Normalmente, a recém-descoberta toxicidade da E. coli não teria relevância para o homem, pois o ácido do estômago humano mata a E. coli muito antes de chegar aos intestinos. Mas várias décadas de evolução do sistema alimentar produziram uma segunda adaptação da E. coli. Como o gado era alimentado cada vez mais com milho e como o milho contém muito mais açúcar do que a grama ou o feno, os intestinos bovinos foram gradativamente levados a um estado mais doce e ácido, e isso forçou a E. coli a tornar-se cada vez mais resistente ao ácido. Por fim, emergiu uma nova cepa – a O157:H7 – capaz de suportar o choque ácido do estômago humano e chegar aos intestinos intacta, onde as toxinas Shiga podiam dar vazão à sua crueldade35.

Entretanto, a criação extensiva de gado pode apresentar um quadro diverso, conforme será discutido posteriormente. Ainda assim, talvez a diminuição do consumo global de carne seja inevitável. 33 WORM, Boris et al. “Impacts of biodiversity loss on ocean ecosystem services”. Science 314 (2006), p. 787790. 34 Para uma descrição dos horrores do sistema de criação intensiva de porcos na França, ver SAPORTA, Isabelle, Le livre noir de l‟agriculture: comment on assassine nos paysans, notre santé et l‟environnement. Paris: Fayard, 2011 (livro eletrônico). 35 ROBERTS, Paul. O fim dos alimentos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, p. 182. 32

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Debord já mostrou que a mercantilização dos alimentos também produz a falsificação e a degradação geral do gosto36: Cada passo na marcha do progresso, derrubadas o que os especialistas no “enganar a fome” chamam nossas “barreiras mentais”, isto é, a antiga experiência de uma qualidade e de um gosto, permite avançar ainda mais na industrialização. E assim a congelação e a passagem rápida à descongelação serviram antes do mais para comercializar “coxas de aves”, por exemplo, compostas de matéria triturada e reconstituídas artificialmente. Neste estádio, a matéria em questão ainda tem relação com o seu nome, “ave”, o qual só é usado como evocação do que poderia ter sido realmente uma ave que tivesse escapado à indústria pecuária. Assim, uma vez aceite a forma, é possível alterar o conteúdo mais facilamente (...).

Da substituição dos ingredientes à falsificação pura e simples, tudo é sacrificado em nome da rentabilidade. Os exemplos abundam: a margarina como imitação barata de manteiga; a “bebida láctea” como imitação barata de iogurte; leite com soda cáustica; o latte fresco blu da Parmalat; todo o arsenal de pseudo-alimentos das cadeias de fast food; etc. A isso se junta a ciência da nutrição, que não avalia a qualidade dos alimentos, mas dos “nutrientes” isoladamente, apresentando-os em tabelas quantitativas, e a legislação que possibilita todo tipo de distorção37. Desta forma, a manipulação e falsificação dos alimentos adquirem o selo da ciência e do Estado, e a mistura que de alimento pouco ou nada tem pode ter um marketing de “nutritivo” oficialmente aceito38. Porém, o capital degrada não somente o gosto, mas até mesmo as propriedades nutritivas dos alimentos. O valor nutricional dos alimentos vem diminuindo. Isto é uma conseqüência do fato de que a quase totalidade dos esforços nos sistemas produtivos agrícolas é focado no aspecto quantitivo da produção. Entre as razões citadas estão o fato de que as plantas selecionadas para produzir mais não são tão eficientes em suas demais funções fisiológicas, incluindo a resistência a doenças e secas e o acúmulo de vitaminas e sais minerais, e que o crescimento acelerado dos vegetais prejudica o transporte de nutrientes. Adicionalmente, os métodos de nutrição vegetal da agricultura industrial equiparam-se à DEBORD, Guy (atribuído a). Enganar a fome [abat-faim]. Lisboa: Frenesi, 2000. Também na economia alimentar se evidencia a subsunção do direito à forma-mercadoria. Ver NASCIMENTO, Joelton. “O valor como fictio juris: forma-jurídica e forma-valor – apresentação de um problema”, Sinal de Menos, no. 1, p. 52-79. Disponível em www.sinaldemenos.org (acesso em agosto/2011). 38 Para uma crítica da dieta ocidental, ver POLLAN, Michael. Em defesa da comida: um manifesto. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2008. Pollan conceitualiza a industrialização da alimentação em cinco movimentos: dos alimentos integrais aos refinados; da complexidade à simplicidade; da qualidade à quantidade; das folhas às sementes; e da cultura do alimento à ciência do alimento; todos com resultados adversos para a qualidade da dieta. Sobre o late fresco blu, um “leite” de tal forma processado que a Parmalat podia colher leite de baixa qualidade na Polônia e distribuí-lo na Itália meses mais tarde como leite de primeira qualidade, ver PLOEG, Jan Douwe van der. Camponeses e impérios alimentares: lutas por autonomia e sustentabilidade na era da globalização. Porto Alegre: UFRGS, 2008, pp. 122-125. 36 37

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nossa fast food, ou seja, abundância dos nutrientes básicos (NPK), mas total desatenção com os micronutrientes. Também pesticidas parecem prejudicar a absorção e síntese de certos nutrientes39. A crise do fordismo e o fracasso dos projetos de modernização retardatária na periferia capitalista, por fim, romperam o pacto de alimentação barata alimentada por subsídios (fator fundamental para a consolidação do fordismo). Desde a Rodada do Uruguai do GATT (1986)40, programas de ajuste estrutural causaram a desestruturação de modos de vida camponeses ou semi-camponeses em países em desenvolvimento como Indonésia, México e Filipinas, contribuindo fortemente para a miséria no campo, êxodo rural e perda da soberania alimentar41 – a desarticulação social é tanta que chega ao ponto de causar ondas de suicídio entre camponeses42. Conjugado com o aumento dos preços, o retrato emblemático disto foram as manifestações dos mexicanos contra o aumento do preço do milho: o povo que trouxe a cultura do milho à humanidade não conseguia mais consumi-lo devido às reformas neoliberais. Conflitos relacionados aos preços dos alimentos devem aumentar nos próximos anos43. Importa destacar que o Brasil tem exercido papel de liderança no agronegócio globalizado do século XXI. O setor tem força suficiente inclusive para propor mudanças no

Ver HALWEIL, Brian. Still no free lunch: nutrient levels in US food supply eroded by pursuit of high yields, The Organic Center, 2007. Disponível em http://organic.insightd.net/reportfiles/Yield_Nutrient_Density_Final.pdf (acesso em 27.08.2011). 40 Sobre a liberalização da agricultura, ver, por exemplo, MURPHY, Sophia. Free trade in agriculture: a bad Idea whose time is done, in: MAGDOFF, Fred e TOKAR, Brian (orgs.), Agriculture and food in crisis: conflict, resistance and renewal, New York: Monthly Review Press, 2010. 41 Para um estudo sobre os efeitos da liberalização na agricultura familiar e camponesa, ver BELLO, Walden. The food wars. London/New York: Verso, 2009. Especificamente sobre a África Sub-Sahariana (o grande fracasso da “revolução verde”), ver BRYCESON, Deborah Fahy. Sub-Saharan African vanishing peasantries and the specter of a global food crisis, in: MAGDOFF, Fred e TOKAR, Brian (orgs.), Agriculture and food in crisis: conflict, resistance and renewal, op. cit.. Sobre as formas de resistência dos camponeses, ver PLOEG, Jan Douwe van der. Camponeses e impérios alimentares: lutas por autonomia e sustentabilidade na era da globalização, op. cit. 42 Ver, por exemplo, SHIVA, Vandana. Seeds of suicide, disponível em http://pt.scribd.com/doc/18674636/Seeds-of-Suicide (acesso em 28.08.2011) e PATEL, Raj, Stuffed and starved: the hidden battle for the world food system. New Yourk: Melville House Publishing, 2007, cap. 2. Tornou-se emblemático o suicídio do sul-coreano Lee Kyung Hae, membro da Via Campesina, durante reunião da OMC em 2003. 43 Interessante lembrar que o preço do pão foi um dos detonadores da Revolução Francesa. Pesquisadores de Cambridge parecem ter encontrado uma correlação entre o índice de preços da FAO com a ocorrência de distúrbios da ordem social. Ver LAGI, Marco et al, The food crisis and political instability in North Africa and the Middle East, disponível em http://arxiv.org/PS_cache/arxiv/pdf/1108/1108.2455v1.pdf (acesso em 27.08.2011). Outros autores ressaltam a possível emergência de guerras e conflitos induzidos pela economia alimentar, como BROWN, Lester R. The new geopolitics of food, Foreign Policy, May/June 2011, e Could food shortages bring down civilization?, Scientific American, May 2009, e CRIBB, Julien, The coming famine: the 39

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código florestal nacional para aumentar os seus lucros escamoteando os requisitos de preservação ambiental e anistiando desmatadores (tendo um deputado “comunista” como porta-voz)44. A agroindústria brasileira é parte de um sistema maior de agricultura industrial global marcados por grandes conglomerados do agribusiness, empresas de distribuição monopolistas, transporte de longa distância e supermercados fornecendo majoritariamente para a elite global e a classe média alta. (...) O modelo brasileiro e o ajuste estrutural caminharam de mãos dadas. Ambos foram elementos centrais de uma transformação capitalista da agricultura que objetivou integrar sistemas locais de alimentos através da liberalização do comércio, em um sistema global marcado por uma divisão do trabalho que supostamente iria resultar em maior eficiência e maior prosperidade agregada45.

O resultado deste processo é um sistema onde primeiramente o processamento e após a distribuição de alimentos concentraram-se nas mãos de um punhado de multinacionais46, que estrangulam os produtores de alimentos: Após um século em que fabricantes de alimentos como a Nestlé e a Kraft basicamente empurraram calorias pelas cadeias de abastecimento, com produtos e preços que satisfaziam suas próprias exigências estratégicas, a economia alimentar atual é direcionada muito mais pela força da demanda. A demanda dos consumidores, que esperam que a comida que eles compram seja a cada ano melhor e mais barata mas, sobretudo, a demanda dos varejistas – grandes supermercados como Wal-Mart, a cadeia francesa Carrefour e a britânica Tesco, bem como gigantes dos serviços alimentícios como McDonald‟s, Burger King e Wendy‟s, empresas imensas que canalizam as expectativas do consumidor de modo que deixou os vendedores, e não os produtores de alimentos fortemente no controle da cadeia de alimentos. (...) Enquanto no passado os fabricantes e processadores lucravam ao cobrar ágio pela conveniência, prazer ou por outros valores agregados, atualmente os varejistas lucram ao oferecer mais valor – mais frescor, por exemplo, ou mais disponibilidade o ano todo ou simplesmente mais alimentos – enquanto cobram menos dos consumidores, uma proposição contraditória que os varejistas atingiram unicamente ao espremer as margens de lucro na cadeia de abastecimento global ao ponto da não-existência47. global food crisis and what we can do to avoid it. Berkeley/Los Angeles/London: University of California Press, 2010. 44 Diminuição das areas de reserve legal e áreas de proteção permanentes (APP‟s). A importância das funções ecológicas das áreas de preservação é atestada pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Ver GRUPO DE TRABALHO DO CÓDIGO FLORESTAL (SBPC e ABC), O código florestal e a ciência, SBPC, 2011. Disponível em http://www.abc.org.br/IMG/pdf/doc-547.pdf (acessado em 30.08.2011). 45 BELLO, Walden, The food wars, op. cit., p. 10-11. 46 83.5% do empacotamento de carne nos EUA está nas mãos de quatro corporações (Tyson, Cargill, Swift, National Beef Packing Co.); quatro companhias (WalMart, Kroger, Albertson‟s, Safehold e Ahold) controlam 48% do comércio varejista de alimentos nos EUA; 71% de todo o processamento de soja é feito por três companhias (ADM, Bunge e Cargill); três corporações controlam 90% do comércio internacional de grãos (ADM, Bunge e Cargill); Monsanto e Dupont juntas controlam 65% do mercado de sementes de milho e 44% do mercado de soja. (HOLT-GIMÉNEZ, Eric e PATEL, Raj, Food rebellions! Crisis and the hunger for justice. Oxford: Pambazuka Press, 2009, p. 18-19.) 47 ROBERTS, Paul, O fim dos alimentos, op. cit., p. 58. Para um discussão sobre o papel dos supermercados na economia alimentar, ver PATEL, Raj, Stuffed and starved: the hidden battle for the world food system, op. cit., cap. 8.

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O mercado globalizado de alimentos, em tempos de crise da economia real, também está sujeito a ataques especulativos. Especuladores que esperam alta dos preços investem em índices futuros, intensificando assim a sua subida, mesmo que não tenham interesse nenhum nos alimentos propriamente ditos, mas apenas nas variações de cotação. Tais ataques especulativos tendem a aumentar no futuro, dada a crise da valorização na economia real, aliada à perda de credibilidade dos títulos de dívidas estatais48. Fecha-se assim um ciclo perverso, no qual o agribusiness produz volumes cada vez maiores de alimentos (devido às baixas margens), com isso acelerando a crise ecológica gerada pela produção de alimentos capitalista – ao mesmo tempo que degrada a qualidade do alimento produzido – e especuladores intensificam o efeito nos preços. A falta de tempo devido às coerções do trabalho abstrato e a conformação da subjetividade pela indústria cultural49 acabam por convencer as massas de que o alimento degradado é bom, desde que possa ser preparado (e consumido) rapidamente e tenha alguns aditivos químicos que lhe confiram algum (falso) sabor. O desfecho lógico parece já estar a caminho: as melhores terras agricultáveis já estão sendo utilizadas, e o muito do que resta abriga ecossistemas importantes, como as florestas tropicais50. Corporações já começam a disputar o mercado globalizado de terras. A Daewoo Logistics fez um leasing da metade das terras de Madagascar51, e George Soros está “convencido de que as terras agricultáveis serão um dos melhores investimentos de nossos tempos”52. Diante de todo esse desastre, o discurso do capital para o futuro da produção de alimentos, seja por parte do Estado ou do mercado, é monótona: aumento de produtividade 53 e transgênicos. Certamente todos os insumos da agricultura moderna poderiam ser Ver HOLT-GIMÉNEZ, Eric e PATEL, Raj, Food rebellions! Crisis and the hunger for justice, op. cit., p. 16-18. Cfe. análise clássica de ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max. A dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. 50 Ver YOUNG, Anthony, “Is there really spare land?” Environmental Development and Sustainability 1, p. 318, 1999 e TILMAN, David et al, “Forecasting agriculturally driven global environmental change”, Science 292, 2001, p. 281-284. 51 Ver GRAIN, The new farm owners, in: Fred Magdoff et al (org.). Agriculture and food in crisis: conflict, resistance and renewal, op. cit. 52 Citado em GRAIN, The new farm owners, in: Fred Magdoff et al (org.). Agriculture and food in crisis: conflict, resistance and renewal, op. cit. 53 Sobre técnicas de aumento de produtividade mantendo as relações de produção atuais, ver SMIL, Vaclav. Feeding the world: a challenge for the twenty-first century. Cambridge: MIT Press, 2000. Para uma crítica do aumento de produtividade como solução ecológica imanente ao capitalismo (no contexto da produção industrial, que no entanto é generalizável para a produção de mercadorias em geral), ver meu texto: CUNHA, Daniel. “Yes! Nós somos verdes! Produção mais limpa ou sujeira sem fim?” Sinal de Menos, no. 3, p. 75-83. Disponível em www.sinaldemenos.org (acesso em agosto/2011). 48 49

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explorados com diferentes graus de eficiência, e a transgenia pode produzir variedades mais produtivas. O aumento de produtividade, no entanto, pode no máximo protelar o estouro dos limites ecológicos e econômicos, já que a lógica rapinadora subjacente permanece intacta e reforçada. No que se refere à própria transgenia, sabe-se que o princípio da precaução foi escamoteado com a consolidação do “princípio da equivalência substancial”, que estabelece que uma vez demonstrado que o novo organismo possui perfil químico de alguns parâmetros idêntico ao organismo original, testes mais aprofundados (como toxicidade e alergenicidade) ficam dispensados. A dispensa de tais testes representa grande economia para as corporações da transgenia, pois os testes de toxicidade exigem recursos financeiros e tempo. Mas, A equivalência substancial é um conceito pseudo-científico, porque é um julgamento comercial e político com máscara de científico. Entretanto, ele é inerentemente anticientífico, porque foi criado primordialmente para oferecer um pretexto para a não exigência de testes bioquímicos e toxicológicos. Portanto, ele serve para desencorajar e inibir a pesquisa científica potencialmente informativa54.

Além disso, a transgenia oferece o risco da poluição genética, podendo afetar ecossistemas naturais ou mesmo espécies cultivadas, como ocorreu com o milho no México – onde plantas contaminadas desenvolvem características anômalas. Para piorar, resta a questão da privatização das sementes e da perda de autonomia dos agricultores, como será discutido mais adiante. Não se trata de opor-se abstratamente à tecnologia transgênica55, mas a forma mercadoria que ela assume no capitalismo apresenta elevado potencial destrutivo, do ponto de vista social, ambiental e mesmo de saúde pública56. De outra parte, novos limites ecológicos estão surgindo, como a deficiência de micronutrientes negligenciados pelos programas de adubação massiva do solo (boro, zinco...) e toxicidades no solo57, de forma que muitas regiões de produção de alimentos têm a sua produtividade estagnada ou mesmo declinante58. Paralelamente, a poluição se expande na

MILLSTONE, Erik et al, “Beyond substantial equivalence”, Nature 401 (7) 1999. Disponível em http://www.greenpeace.org.br/transgenicos/pdf/beyond_substantial_equivalence.pdf (acessado em 29.08.2011). 55 O desenvolvimento de espécies capazes de fixar nitrogênio da atmosfera tal como as leguminosas (através de bactérias consorciadas em suas raízes), por exemplo, seria uma inovação técnica notável. 56 Para uma boa introdução à transgenia corporativa, ver o documentário O mundo segundo a Monsanto (Marie-Monique Robin, 2008). 57 Ver CONWAY, Gordon. Produção de alimentos no século XXI: biotecnologia e meio ambiente. São Paulo: Estação Liberdade, 2003, p. 152-ss. 58 Ver CONWAY, Gordon. Produção de alimentos no século XXI: biotecnologia e meio ambiente., op. cit., capítulo 7. 54

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forma de águas contaminadas com nitrato (resultado da aplicação de fertilizantes nitrogenados que, se ingeridas por crianças pequenas, causam a “doença do bebê azul”) e da eutrofização de corpos d‟água, que pode reduzir significativamente a biodiversidade e levar ao florescimento de algas que produzem toxinas59, para não falar nos pesticidas e agrotóxicos, como denunciou Rachel Carson60. A criação intensiva de animais é causa de sérios problemas ambientais, devido ao lançamento de poluentes em grande quantidade e altamente concentrados61. Diante destas tendências, torna-se claro que o desmentido (relativo, visto que a fome nunca foi superada, ainda que sempre restasse a esperança de uma melhor distribuição) da tese malthusiana pela agricultura capitalista foi uma resposta provisória, e que não pode manter-se indefinidamente. De fato, o gráfico da figura 2, se considerado qualitativamente, poderia retratar a agricultura capitalista em sua totalidade: a alta produtividade dos solos somente se manteve com um aporte massivo e insustentável de insumos externos. O conceito de falha metabólica desenvolvido por Marx no século XIX, no século seguinte não somente mostrou-se acertado, como ainda mais generalizado do que podia ser constatado em seu tempo. Já nos anos 70 do século XX era claro que O agribusiness é eficiente segundo somente um critério econômico – a razão de entrada e saída monetária bruta. Todas as outras considerações, inclusive a produtividade, são secundárias (...). Portanto, falar em tornar nossas fazendas mais eficientes para dar conta da crescente demanda de alimentos é pura mistificação. A eficiência do agribiz não produz mais comida automaticamente, nem é a medida do seu sucesso. Ela produz trabalho mais eficiente, capital mais eficiente, e se produz mais comida, melhor, mas esta é uma consideração secundária. O impulso para o aumento da eficiência técnica do processo de produção de alimentos é de fato um impulso para maximizar a criação de mais-valia, ou lucro62.

Estas cianotoxinas devem ser removidas no tratamento da água para consumo humano, e em uma ocasião foram causa de diversas mortes em clínica de hemodiálise no nordeste do Brasil. 60 CARSON, Rachel. Primavera silenciosa. São Paulo: Gaia Editora, 2010. 61 Não apenas nos países pobres. As praias da Bretanha (França) vêm sendo afetadas pela chamada “maré verde”: explosões de algas que ocorrem na água poluída, que quando se decompõe geram gases tóxicos. Ver DURUPT, Vincent. “Algues vertes: la découverte de 18 sangliers morts relance la polemique”. Le Monde, 27.07.2011. Disponível em http://www.lemonde.fr/planete/article/2011/07/27/algues-vertes-la-decouvertede-18-sangliers-morts-relance-la-polemique_1553211_3244.html (acessado em 30.08.2011). 59

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IV.

Novas sementes Não devemos alarmar-nos com a palavra “arcaico”. Karl Marx, Carta a Vera Zasulich Conduz teu carro e tu arado sobre a ossada dos mortos William Blake, Provérbios do Inferno

Do “saco de batatas” à “idiotia da vida rural” (Marx), na tradição marxista o campesinato

sempre

foi

considerado

um

resíduo

social

arcaico,

destinado

ao

desaparecimento à medida que a agricultura capitalista encampasse toda a produção agrícola. Marx, porém, foi capaz de reformular a sua posição inicial. Na carta a Vera Zasulich 63, sustenta que as comunas rurais russas poderiam passar diretamente a um estágio social superior (comunismo), fazendo uso das forças produtivas desenvolvidas na Europa Ocidental capitalista. Já os bolcheviques mantiveram a posição clássica de Lênin, segundo a qual toda a agricultura deveria ser industrializada (e os camponeses proletarizados) para o aumento da produtividade64. Na verdade, porém, a agricultura familiar ou mesmo (semi)camponesa permanece até os dias atuais, sendo até hoje responsável por grande parte da produção de alimentos. Na agricultura familiar e camponesa prevalece a inserção parcial em mercados parciais: ...a racionalidade econômica do campesinato é necessariamente incompleta porque seu ambiente social permite que outros critérios de relações humanas (que não os econômicos) sejam organizadores da vida. (...) Vida em comunidade, vínculos personalizados não só entre indivíduos em geral, mas entre agentes sociais com lugares antagônicos na hierarquia social, regras coletivas determinantes do uso dos fatores produtivos e do consumo; mais que um tipo econômico, o camponês representa, antes de tudo, um modo de vida. Nas sociedades camponesas, a economia não existe como esfera institucional autônoma da vida social (...). Isso se traduz na ausência de uma contabilidade racional (...) Trabalho e vida não são duas dimensões cindidas: as crianças, as mulheres, enfim, um organismo único produz com base no objetivo de gerar não só os meios de vida, mas, sobretudo, um modo de vida. (...) a terra não é um

CLUTTERBUCK, Charlie. Agribusiness, In: BOYLE, Godfrey e HARPER, Peter (orgs). Radical Technology. Ringwood (Austrália): Penguin Books, 1976. 63 Disponível em inglês em http://www.marxists.org/archive/marx/works/1881/03/zasulich1.htm (acesso em 26.08.2011). 64Ver LÊNIN, Vladimir. The development of capitalism in Russia, disponível em http://www.marxists.org/archive/lenin/works/1899/devel/index.htm (acesso em 26.08.2011). Também neste campo, como mostram os comunistas de conselhos, o leninismo se aproxima do jacobinismo burguês. Ver BRENDEL, Cajo, A interpretação do marxismo por Lênin, Sinal de Menos #3, p. 135-151. Disponível em www.sinaldemenos.org (acesso em agosto/2011). 62

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simples fator de produção, as outras unidades não são apenas concorrentes e os comerciantes não são só sanguessugas65.

Para isto contribui o fato de que a agricultura “conserva-se fundamentalmente uma atividade tributária da natureza e dependente de elementos biológicos sobre cujo ritmo e sequência o controle humano é limitado”66. O camponês e o agricultor são resíduos não apenas pelos seus elementos de arcaísmo, mas também, para usar um conceito adorniano67, porque são um não-idêntico: porque o seu modo de vida escapa à racionalidade capitalista de modo mais evidente do que em outras classes sociais. Shanin, em seu clássico estudo sobre os camponeses, qualificou-os de awkward class. Por apresentar elementos que escapam aos conceitos tradicionais tanto burgueses quanto marxistas, awkward talvez seja um adjetivo adequado para situar o campesinato na modernidade68. As figuras 4 e 5, propostas por van der Ploeg a partir de uma pesquisa comparativa entre os métodos de produção dos contadini e dos imprenditori (camponeses e agricultores empresariais italianos, respectivamente), ilustram bem o que aqui se comenta. Os camponeses, apesar de em certa medida inseridos nas relações capitalistas (“rendimento”) incorporam em sua relação com a terra alguns elementos que escapam à pura lógica capitalista, como a autonomia e a valorização da liberdade e da dimensão estética da fazenda. Isto contrasta com o agribiz, onde tudo o que importa é a lucratividade do capital. autoabastecimento renda proveitosa

insumos de trabalho elevados artesanalidade paixão

bom rendimento uma fazenda bela e livre

conhecimento

Fig. 4: a lógica dos contadini69

ABRAMOVAY, Ricardo. Paradigmas do capitalismo agrário em questão, op. ci.. O pioneiro na caracterização da economia camponesa como divergente em relação à racionalidade empresarial foi o russo Chayanov; assim como Pashukanis na área do direito, foi moído pela máquina estalinista. 66 ABRAMOVAY, Ricardo. Paradigmas do capitalismo agrário em questão, op. cit. 67 ADORNO, Theodor. Dialética negativa. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. 68 “O campesinato não se encaixa bem em nenhum dos nossos conceitos sobre a sociedade contemporânea”. SHANIN, Teodor. “Peasantry as a political factor”. Sociological Review, Vol. 14, 1966, no. 1, pp. 5-27. 69 Fonte: PLOEG, Jan Douwe van der. Camponeses e impérios alimentares: lutas por autonomia e sustentabilidade na era da globalização, op. cit. 65

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margem

x

escala

=

renda

Fig. 5: a lógica dos imprenditori70

O recente avanço dos transgênicos e dos programas de ajuste estrutural neoliberais trouxe outros elementos à awkward class. Em toda a sua existência histórica, o campesinato sempre teve acesso ao seu meio de produção básico: a semente. Os transgênicos, no entanto, tornam o agricultor ou camponês dependente de um pacote tecnológico71: o acesso à semente não é mais livre. Ele perde o controle sobre o seu próprio cultivo72. De outro lado, os programas de ajuste destroem o que resta de seu modo de vida comunal. O camponês perde todo o controle sobre o seu processo de produção, tendendo a proletarizar-se no seu próprio meio (e não como proletário urbano)73; portanto, passa a ter necessidades radicais. Neste contexto se articula a federação de camponeses e pequenos agricultures, a Vía Campesina74, que articula as suas lutas e confere voz ao movimento. De outro lado, também nas cidades florescem novas experiências. “Cultivar o nosso próprio alimento é talvez a forma mais direta e transparente de criar um sistema de distribuição de alimentos que se baseie nas necessidades humanas, e não nos lucros corporativos”75. Detroit, a Meca do fordismo, nos fornece talvez o exemplo mais emblemático. Com a bancarrota da indústria automobilística, a cidade entrou em depressão econômica. A população passou a viver no que se chama de food desert, ou seja, para os habitantes de seu centro passou a ser difícil ter acesso a alimentos, salvo processados e fast food. Lá se desenvolveu então um intenso movimento de agricultura urbana, com o cultivo de alimentos

Idem. O caso típico é a soja roundup ready. Trata-se de espécie geneticamente modificada de soja que é resistente ao agrotóxico roundup. Desta forma, a corporação (Monsanto) vende a semente e o agrotóxico em um pacote único. 72 Para uma posição contrária à privatização das sementes, ver THE INTERNATIONAL COMISSION ON THE FUTURE OF FOOD AND THE AGRICULTURE. Manifesto on the future of seeds, 2006. Disponível em http://vandanashiva.org/wp-content/manifesto.pdf (acessado em 29.08.2011). 73 Ver LEWONTIN, R. C., The maturing of capitalist agriculture: farmer as proletarian, in: Fred Magdoff et al (orgs.). Hungry for profit: the agribusiness threat to farmers, food, and the environment. New York: Monthly Review Press, 2000. 74 Ver DESMARAIS, Annette Aurélie. La via campesina: globalization and the power of peasants. Balck Point (Canada): Fernwood Publishing, 2007. 75 HOLT-GIMÈNEZ, Eric e PATEL, Raj. Food rebellions! Crisis and the hunger for justice, op. cit., p. 166. 70 71

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nos terrenos abandonados pelo capital76. Em Chicago, o projeto The Plant, está transformando uma antiga fábrica abandonada de 8.500 m2 em uma fazenda vertical urbana, integrando produção de alimentos hidropônicos com piscicultura (aquaponia) e produção de cerveja, com toda a energia utilizada gerada em um biodigestor que recicla os resíduos gerados no próprio local e nas proximidades77. Fazenda vertical seria um prédio urbano onde se produz alimentos através de cultivo hidropônico, com máximo reaproveitamento de todos os insumos utilizados. Nos países pobres, o outro lado da moeda da fome na Coréia do Norte induzida pela escassez de petróleo é Cuba. Lá, sob as mesmas condições do pós-colapso soviético, desenvolveu-se programa de agricultura ecológica, em grande parte urbana e descentralizada. A crise foi superada, mostrando que é possível produzir alimentos sem insumos petrolíferos78. Em Porto Alegre, uma ocupação urbana em prédio federal abandonado, em pleno centro da cidade, desenvolveu em seu terraço uma fazenda hidropônica79 (figura 6). Em Madrid, o coletivo Bajo el asfalto está la huerta80 cultiva hortas urbanas em uma cooperativa onde a horizontalidade na tomada de decisões coletivas e a independência do mercado e do Estado são primordiais na experiência do grupo. Dos escombros do capitalismo, brota o novo.

76Ver,

por exemplo, DOWIE, Mark, Food among the ruins, disponível em http://www.guernicamag.com/spotlight/1182/food_among_the_ruins (acessado em 27.08.2011); WHITE, Monica M. D-Town: African Amercian farmers, food security and Detroit, disponível em http://www.blackagendareport.com/content/d-town-african-american-farmers-food-security-and-detroit (acessado em 27.08.2011); PHILPOTT, Tom. From Motown to Growtown: the greening of Detroit, disponível em http://www.grist.org/article/food-from-motown-to-growtown-the-greening-of-detroit (acesado em 27.08.2011) e Three projects that are watering Detroits’ food desert, disponível em http://www.grist.org/article/food-from-motown-to-growtown-the-greening-of-detroit (acessado em 27.08.2011); o website da Black Community Food Security Network, em http://www.detroitblackfoodsecurity.org; sobre a ascensão e declínio do capitalismo em Detroit, ver o documentário Requiem for Detroit (Julien Temple, 2010), disponível em http://rutube.ru/tracks/3971045.html (acessado em 27.08.2011). 77 Cfe. o diretor da planta John Edel (comunicação pessoal). Ver também www.plantchicago.com (acessado em 29.08.2011). 78 Ver ROSSET, Peter M. Cuba: a successful case study of sustainable agriculture, in: Fred Magdoff et al (orgs.), Hungry for profit: the agribusiness threat to farmers, food, and the environment, op. cit.; também PFEIFFER, Dale Allen, Eating fossil fuels: oil, food and the coming crisis in agriculture, op. cit. Para um curta-metragem sobre os organopônicos (sistemas de agricultura urbana de Havana) ver Organopónico: an agricultural revolution (Lara Boglione e Lucy Loveday, s. d. ), disponível em http://www.youtube.com/watch?v=JIWsxo5nNgg (acessado em 29.08.2011). 79 O que também é uma boa experiência em relação à capacidade dos movimentos sociais de arrancar recursos do Estado mantendo a sua autonomia, já que o projeto foi financiado por edital da multinacional do petróleo Petrobras (com todas as contradições aí envolvidas). O custo inicial do projeto foi de cerca de 18 mil reais, e após este investimento o projeto tende a ser auto-sustentável (Cfe. Guilherme Schröder, coordenador da horta, comunicação pessoal). Estão sendo oferecidas oficinas gratuitas de hidroponia no local. Ver http://utopia-eluta.blogspot.com/ (acesso em 27.08.2011). 80 http://bah.ourproject.org/ (acessado em 27.08.2011)

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Fig. 6: horta hidropônica urbana em Porto Alegre

A estas experiências e lutas no campo e na cidade se junta o uso de técnicas alternativas de produção de alimentos, como a agroecologia e a hidroponia. A agroecologia fornece uma estrutura metodológica de trabalho para a compreensão mais profunda tanto da natureza dos agroecossistemas como dos princípios segundo os quais eles funcionam. Trata-se de uma nova abordagem que integra os princípios agronômicos, ecológicos e socioeconômicos à compreensão e avaliação do efeito das tecnologias sobre os sistemas agrícolas e a sociedade como um todo. Ela utiliza os agroecossistemas como unidade de estudo, ultrapassando a visão unidimensional – genética, agronomia, edafologia – incluindo as dimensões ecológicas, sociais e culturais. Uma abordagem agroecológica incentiva os pesquisadores a penetrar no conhecimento e nas técnicas dos agricultores e a desenvolver agroecossistemas com uma dependência mínima de insumos agroquímicos e energéticos externos. O objetivo é trabalhar com e alimentar sistemas agrícolas complexos onde as interações ecológicas e sinergismos entre os componentes biológicos criem, eles próprios, a fertilidade do solo, a produtividade e a proteção das culturas. A produção sustentável em um agroecossistema deriva do equilíbrio entre plantas, solos, nutrientes, luz solar, umidade e outros organismos coexistentes. O agroecossistema é produtivo e saudável quando essas condições de crescimento ricas e equilibradas prevalecem, e quando as plantas permanecem resilientes de modo a tolerar estresses e adversidades81.

Assim, no lugar da monocultura entra o policultivo (diversidade de espécies animais e vegetais integradas), inclusive temporal (rotação de culturas); no lugar dos agrotóxicos, a criação de nichos para os predadores naturais; no lugar da fertilização química, a reciclagem dos nutrientes; no lugar da uniformidade, o respeito ao terroir e à cultura local; etc82. A já mencionada hidroponia consiste no cultivo de vegetais em meio líquido, ou seja, em solo. Seu interesse está no fato de que pode ser levada a cabo em espaços reduzidos e onde

ALTIERI, Miguel. Agroecologia: a dinâmica produtiva da agricultura sustentável. Porto Alegre: UFRGS, 5ª. Ed., 2009. 82 O MST adota oficialmente a agroecologia em seus princípios. Para um discussão sobre a possibilidade de alimentar a população mundial com métodos agroecológicos, ver PRETTY, Jules. Can ecological agriculture feed nine billion people?, in: Fred Magdoff e Brian Tokar (orgs.), Agriculture and food in crisis: conflict, resistance and renewal, op. cit. 81

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há raridade de solos. Além disso, caso utilizada nas cidades, pode contribuir para a diminuição da distância entre a produção e o consumo, e utiliza uma pequena parte dos nutrientes necessários para o cultivo em solo, já que opera em sistemas fechados onde não há perdas por erosão, lixiviação, etc.83. Ou seja, a hidroponia é especialmente útil para a agricultura urbana, podendo ser utilizada por grupos e comunidades que querem estabelecer outro tipo de relação com alimento de forma relativamente autônoma84. Ainda mais interessante é a aquaponia, que combina a hidroponia com a aquacultura (criação de peixes). Neste sistema, os nutrientes adicionados à hidroponia são substituídos pela comida para os peixes, e a água fertilizada por estes serve então de nutriente para as plantas. Têm-se assim um sistema de policultivo de vegetais e proteína animal 85. A proposta mais avançada é a da construção de fazendas verticais, arranha-céus urbanos destinados à produção de alimentos, com produção hidropônica e reciclagem máxima de nutrientes e insumos86 (figura 7). O preço dos terrenos e estruturas urbanas torna este método impeditivo para movimentos sociais alternativos, mas a recuperação de prédios abandonados pelo capital pode ser viável, como está mostrando o projeto The Plant87 (figura 8). Prédios e fábricas abandonados nas grandes cidades poderiam ser usados por movimentos organizados para a produção de alimentos, utilizando materiais ociosos e recicláveis. Finalmente, ainda que raro, há agroecossistemas que já se encontram quase prontos para uma sociedade emancipada. É o caso da produção de carne no sul do Brasil, onde a produção extensiva de gado no pampa, ao longo de séculos de coevolução, representa um agroecossistema produtivo e sustentável que contrasta fortemente com os métodos intensivos

Ver DOUGLAS, James Sholto. Hydroponics: the answer lies in solution, in: BOYLE, Godfrey e HARPER, Peter (orgs.), Radical technology, op. cit. Discordamos aqui de Gervásio Paulus, membro da Associação Brasileira de Agroecologia e diretor técnico da EMATER-RS, que coloca “o hidropônico junto à agricultura tradicional, no sentido químico”, pois “há um risco, como os nutrientes são solúveis, de que ocorram desequilíbrios, que haja concentração excessiva deles” (Jornal Zero Hora, caderno Nosso Mundo Sustentável, 01.08.2011, p. 5). Este risco não pode e não deve ser desprezado, mas é ínfimo se comparado ao conjunto de riscos representado pela agricultura convencional. 84 Assim como pode ser usada para a implementação de negócios capitalistas, como é bastante provável que aconteça com o aumento dos preços dos alimentos, petróleo, fertilizantes, água, etc. 85 Para uma descrição técnica do sistema, ver RAKOCY, James et al. Recirculating aquaculture tank production systems: aquaponics – integrating fish and plant culture, SRAC Publication No. 454, disponível em https://srac.tamu.edu/index.cfm/event/getFactSheet/whichfactsheet/105/ (acessado em 26.08.2011). 86 Ver DESPOMMIER, Dickson. The vertical farm: feeding the world in the 21 st century. New York: Thomas Dunne Books, 2010. 87 É instigador pensar na incorporação das fazendas verticais no projeto New Babylon de Constant. Ver CUNHA, Daniel e ALVARENGA, Rafael F. (orgs.) “Dossiê „Constant‟”, Sinal de Menos, no. 5, p. 26-71. Disponível em www.sinaldemenos.org (acesso em agosto/2011). 83

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de criação88 (ver figura 9). É preciso neste caso a coragem e a criatividade histórica para mudar a estratégia tradicional: ao invés da reforma agrária tradicional (com parcelização do solo e desarticulação do agroecossistema) passar diretamente à luta pela comunalização do rebanho, com a remoção das relações de produção arcaicas.

Fig. 7: fazenda vertical - futuro da agricultura urbana?89

Deve-se observar aqui que é notável que o velho ponto do programa do Manifesto Comunista – abolição da separação entre cidade e campo – torna-se de um lado cada vez mais necessário, e de outro, cada vez mais viável tecnicamente. O campo penetra a cidade com a agricultura urbana, e a cidade penetra o campo com o uso das forças produtivas desenvolvidas (maquinário, telecomunicações...). A socialização e uso alternativo das forças produtivas desenvolvidas podem trazer tanto a produção de alimentos frescos e saudáveis às cidades quanto abolir qualquer traço de “idiotia da vida rural” do campo, bem como abolir a labuta e o sofrimento do trabalho pesado. Lembre-se também que crucial na origem do capitalismo foi o cercamento dos campos – a acumulação primitiva, o “pecado original” do capital (Marx) – determinante para a expropriação dos camponeses e surgimento do

Ver BORBA, Marcos e TRINDADE, José Pedro P. Desafios para a conservação e a valorização da pecuária sustentável, in: PILLAR, Valério de Patta et AL. Campos sulinos. Brasília: Ministério do Meio Ambiente, 2009. (Agradeço a Leandro K. Denardin pela indicação desta bibliografia). O ecologista José Lutzenberger envolveuse em fortes polêmicas ao mostrar-se contrário à reforma agrária nas estâncias do pampa a fim de preservar o agroecossistema. Para uma descrição dos horrores da criação intensiva de animais (suinocultura), ver SAPORTA, Isabelle. Le livre noir de l’agriculture: comment on assassine nos paysans, notre santé et l’environnement, op. cit. 89 Fonte: www.verticalfarm.com (acessado em 27.08.2011) 88

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proletariado, para a separação de campo e cidade e, por conseqüência, para a separação dos homens da terra90. A reconciliação com a terra, portanto, depende de sua comunalização: Quando a sociedade atingir formação econômica superior, a propriedade privada de certos indivíduos sobre parcelas do globo terrestre parecerá tão monstruosa como a propriedade privada de um ser humano sobre outro. Mesmo uma sociedade inteira não é proprietária da terra, nem uma nação, nem todas as sociedades de uma época reunidas. São apenas possuidoras, usufrutárias dela, e como bonipatres familias [bons pais de família] têm de legá-la melhorada às gerações vindouras91.

Fig. 8: uma fábrica abandonada sendo transformada em uma fazenda vertical92

“Não é a unidade dos homens vivos e ativos com as condições naturais e inorgânicas de seu metabolismo com a natureza o que necessitaria de uma explicação ou seria o resultado de um processo histórico; pelo contrário, é a separação entre essas condições inorgânicas da existência humana e sua atividade que precisa ser explicada, separação que só é total na relação entre o trabalho assalariado e o capital” (MARX, Karl. Grundrisse). 91 MARX, Karl. O capital, Livro Terceiro, Parte Sexta, capítulo XLVI, op. cit., p. 1028-1029. Uma definição avant la lettre de sustentabilidade, no século XIX. Mas à diferença da maior parte dos proponentes da “sustentabilidade” no século XXI, Marx vai à raiz. 92 Fonte: www.plantchicago.com e www.flickr.com/photos/plantchicago (acesso em 05.08.2011) 90

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Todas as experiências aqui comentadas podem ser recuperadas pelo mercado, tornando-se assim empreendimentos empresariais como qualquer outro93. Isto é especialmente válido para a hidroponia e as fazendas verticais 94. Estas irão provavelmente estabelecer-se como alternativa de mercado viável nos próximos anos à medida que os custos de alimentos, petróleo, fertilizantes, água, etc. aumentam – de fato, já é possível encontrar com facilidade hortaliças hidropônicas em supermercados. Também o selo “orgânico” pode ser usado de forma rentável, nem que seja como “lavagem verde”. Entretanto, são linhas de fuga que, se potencializadas, podem ser um impulso em direção a outro tipo de relação com o alimento e para além do capitalismo95. A reconfiguração do metabolismo com a natureza é tarefa primordial de qualquer projeto emancipatório para o século XXI. Aquele que maltrata a terra não mais poderá dela retirar os seus frutos; portanto, à clássica e necessária luta pela reforma agrária é preciso agregar novas e radicais dimensões. Os (neo)camponeses do campo e da cidade terão um papel central neste processo. O Brasil deverá estar na linha de frente desta luta global, tanto por ser um centro mundial do agronegócio quanto por contar com o seu talvez maior e mais consequente opositor: o MST.

Fig. 9: superar e comunalizar

A mídia corporativa parece saber bem a diferença. Em reportagens sobre fazendas verticais e hidroponia, o jornal Zero Hora de Porto Alegre não mencionou a experiência mais avançada neste sentido do estado do RS (e possivelmente uma das mais importantes no mundo), a horta hidropônica do movimento Utopia e Luta. Ver jornal Zero Hora, caderno Nosso Mundo Sustentável, 16.05.2011 e 01.08.2011. 94 O embrião desta tendência é a produção em estufas. Na região de Westland (Holanda), por exemplo, há um impressionante complexo de estufas, que pode ser visualizado no Google Earth (no entorno das coordenadas geográficas 51°59'57.03"N 4°13'2.85"L). 95 Isto inclui o movimento slow food, que apesar de poder ser facilmente qualificado de pequeno-burguês, tem o mérito de resgatar o respeito pela história e cultura dos alimentos, e educar o gosto. 93

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Dialética da natureza e objetivismo Maurilio Lima Botelho O ambiente social de construção do marxismo, no final do século XIX, é marcado por uma série de características específicas de uma Alemanha que passou por um forte processo de crescimento econômico, que se urbanizou rapidamente e cujos efeitos da industrialização começam a ser vistos em quase todos os cantos, principalmente como uma transformação da vida material e da vida cotidiana no sentido de uma maior tecnificação dos meios de existência. Esse clima de forte pressão “material”, tanto do ponto de vista das novidades produtivas trazidas pela indústria quanto pela maior subordinação do tempo social aos imperativos do mercado, cria necessariamente uma espécie de predisposição subjetiva para a adoção das técnicas e instrumentos modernos, assim como de aceitação dos principais pressupostos da ciência moderna. Não se pode esquecer que os direitos sociais obtidos pela organização

partidária ou

pelas

tentativas oficiais de

combate aos movimentos

revolucionários (as leis sociais que sucederam/complementaram as leis anti-socialistas de Bismarck), demonstraram a presença inelutável da atividade operária, principalmente de suas atividades sindicais, mesmo que ainda divididas numa série de facções, grupos e correntes que reivindicavam teorias e interpretações de mundo diversas. É esse ambiente fracionado de grupos e movimentos teóricos que torna a busca por explicações abrangentes um distintivo da atividade intelectual desse período, o que não deixa de causar estranheza frente ao avanço científico, tanto nas ciências naturais quanto sociais, marcado pela especialização crescente através da institucionalização acadêmica. Não há dúvidas de que a grande alteração cotidiana promovida pela subordinação a uma nova forma de vida − urbana, industrial, proletária −, exige uma espécie de contraponto subjetivo, que precisa determinar detalhadamente cada aspecto dessa nova vida que não é mais abarcada pelas visões de mundo religiosas e comunitárias, caracterizadas pelo tradicionalismo.

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Não é fortuito, portanto, que as contribuições de Marx, uma teoria crítica da filosofia, do Estado e da economia, da estrutura social burguesa como tal, tenha se transformado nesse período também numa visão de mundo abrangente, numa teoria com capacidade de explicar detalhes e aspectos absolutamente díspares da sociedade − e não apenas da sociedade moderna −, além de ter se constituído pouco a pouco em filosofia, em ciência e em prática política. Isto é, os elementos que em Marx e Engels eram inicialmente críticos e negativos são revirados para assumirem conotações positivas, de forma a contribuírem para a formação subjetiva, para a “consciência” e “cultura proletária”. Essa estratégia não é alheia à obra de Marx e Engels, visto principalmente que este último terá o papel destacado na configuração de uma ortodoxia − trabalho finalizado e coroado por Kautsky. O marxismo é constituído como uma visão de mundo, no final do século XIX, capaz não apenas de orientar a ação operária na esfera política e nas lutas econômicas, mas, principalmente, como uma ideologia capaz de explicar o mundo para o operário − ou pelo menos parcela desse grupo social. Torna-se uma ideologia de síntese e descrição, em um pequeno conjunto de agregados teórico-conceituais, da realidade que se abateu objetivamente sobre os trabalhadores, de um processo de mudança radical de vida em uma única geração. Frente à objetividade desse abrupto processo de mudança de hábitos, práticas, atividades e comportamentos numa sociedade crescentemente industrial, o marxismo assinalará, positivamente, um objetivismo na própria ação operária. Frente a uma realidade de força coativa surpreendente, nada mais natural do que a afirmação de um objetivismo no próprio movimento operário. Nas palavras precisas de Oskar Negt, De fato, o objetivismo tem um sentido histórico muito mais preciso exatamente na sua função afirmativa, pois indica a inevitabilidade do nascimento do proletariado e de seu constante crescimento, devido à proletarização de outras camadas dependentes do capital. Nisso, a consciência desempenha um papel que, na realidade, não é insignificante, queiramos ou não, essas camadas são absorvidas; mas a preponderância da objetividade, da violência do trabalho morto sobre o trabalho vivo, é mediatizada por uma dinâmica histórica da destruição visível de velhas situações existenciais, às quais se ligam experiências individuais completamente diversas daquelas que são proporcionadas ao trabalhador em sua existência proletária1.

1

NEGT, Oskar. O marxismo e a teoria da revolução no último Engels. In: HOBSBOWN, Eric J. (org.). História domarxismo, vol. 2 ─ O marxismo na época da Segunda Internacional (primeira parte). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p. 137.

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O problema primordial nessa assunção da objetividade do processo social mercantil − inicial e inevitável para qualquer teoria crítica −, é a sua transformação, como dito, em objetivismo. A marca nascente do marxismo, que será herdada por suas diversas frações e divisões intestinas, é um determinismo objetivista que tem sua razão de ser na própria objetividade acachapante da sociedade burguesa em ascensão, mas que é convertida em qualidade do próprio movimento. Para quem acompanha com cuidadoso empenho teórico o nascimento e expansão da classe operária e a identifica como resultado inevitável do processo de industrialização e expansão da economia burguesa, a própria objetividade do processo in totum se transforma em predicado necessário e contribuinte do movimento operário. Não é por acaso que, para Engels, Kautsky ou mesmo os revisionistas da Segunda Internacional, o movimento socialista caminha inevitavelmente para a vitória comunista, ainda que conjunturalmente seja vítima de derrotas desonrosas ou que sua mobilização sofra as agruras da própria objetividade mercantil, encarada como uma virtude da inexorabilidade do percurso histórico. Para explicar como um atributo da maquinaria mercantil, que supera constantemente seus próprios limites, se transformou em dote da teoria e da prática marxista, é preciso entender esse quadro histórico de afirmação do capitalismo – a Alemanha como campo privilegiado dada sua modernização tardia mas ligeira. É necessário ainda compreender o marxismo não como teoria alheia e divergente a essa afirmação, mas como parte integrante e com papel positivo na modernização. É preciso ainda entender o modo específico como o marxismo absorve o objetivismo real da forma social como objetivismo metodológico e como confiança político-organizacional. A compreensão da dialética da natureza presente no pensamento de Engels, em seu último período teórico, é uma forma de iniciar a investigação sobre esse nexo entre objetividade mercantil e determinismo emancipatório. É o que propomos esboçar nos parágrafos a seguir. Indústria e natureza Boa parte dos textos que compõem o que hoje conhecemos como A dialética da natureza foram escritos entre 1873-1883, mas há razões para acreditar que o trabalho de redação começou bem antes, já que desde pelo menos o início da década de 1860 Friedrich Engels lia regularmente livros e revistas de divulgação das ciências naturais. Pelo modo como 34

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alguns textos se apresentavam mais “limpos” que outros nos originais deixados por Engels ─ isto é, haviam sido revisados e estavam com redação mais fluente ─, é provável que o companheiro de Marx já estivesse por um longo período debruçado sobre as questões relativas à conexão entre natureza, dialética e ciência.2 No período em que Engels escrevia, os povos alemães conheciam pela primeira vez uma nação unificada. Ainda que obtida através de “sangue e aço”, a unificação dos povos germânicos sob o jugo de Bismarck é o resultado de um trabalho econômico e político extremamente complexo, que ultrapassa a realpolitik do chanceler prussiano. Desde a dissolução do Sacro Império Romano-Germânico, a burguesia alemã, os políticos conservadores nacionalistas e os próprios políticos liberais e progressistas sonhavam com uma unificação ─ contudo, como cada classe possuía uma visão específica da unidade alemã a ser realizada, inclusive sobre os métodos da unificação, foram preciso diversas etapas para se conseguir um Estado central organizando as várias cidades, províncias, regiões e nações. O primeiro passo ─ e fundamental do ponto de vista da modernização econômica ─ foi a criação de uma união aduaneira entre as nações de língua germânica (exceção da Áustria), que tornou possível romper as barreiras e as limitações locais herdadas do regime feudal. A liberdade de comércio, a isenção de tarifas e pedágios no interior do Zollverein (1834), permitiu a criação de um mercado nacional, elemento fundamental para a formação do Estado moderno, seu pressuposto econômico, por assim dizer. A unidade econômica, já esboçada através da união de tarifas, criava agora as condições para a unificação política. Todos se debatiam de algum modo pela construção de um Estado-nação unido; mas, dado que a parcela conservadora da sociedade germânica não queria perder seus privilégios ligados à propriedade da terra (junker), não havia unidade política entre as aspirações liberais, nacionalistas, conservadoras ou mesmo socialistas. É preciso lembrar que em 1848 também Marx e Engels lutavam por uma república única: o primeiro o fazia através das páginas do jornal Nova Gazeta Renana; já Engels, além da colaboração no periódico, pegaria em armas em 1849. O famoso documento intitulado Reivindicações do Partido Comunista da Alemanha, publicado em março de 1848 e assinado

2

Lembremos que o livro só foi publicado pela primeira vez em 1927 numa edição organizada por Riazanov. Como ocorreu com outras obras (o caso mais grave é o de A Ideologia Alemã), os guardiões soviéticos da ciência dialética não ficaram satisfeitos com o texto, que respeitava a fragmentação original. Em 1935 uma nova edição, organizada por Adoratski, foi publicada, momento em “que várias passagens que careciam de sentido, na primeira edição, foram então esclarecidas”. HALDANE, J. B. S. Prólogo. In: ENGELS, Friedrich. A dialética da natureza. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 12.

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pelos redatores da Nova Gazeta, além de exigir uma “república una e indivisível” no primeiro parágrafo, reclamava a abolição de todos os encargos feudais no parágrafo 6, entre outras reinvidicações tipicamente democrático-burguesas, além de uma ou outra mais radical que daria ferramentas para a consolidação futura do poder operário3. Diferente da revolução que ocorria na França e que já enfrentava um poder burguês consolidado ─ e que seria surrupiado por Luis Napoleão, sintoma por sua vez do avanço da moderna configuração de classes naquele país ─, a revolução do outro lado do Reno ainda lutava contra os poderes feudais e contra a dominação pessoal dos proprietários fundiários. Fracassada e reprimida, a revolução alemã de 1848-1849 viu ruir mesmo o sonho burguês de uma democracia parlamentar ─ a Assembléia Nacional alemã foi fechada em junho de 1849. Ainda que excluída do primeiro escalão político, a burguesia alemã não seria preterida no novo horizonte econômico na Europa Central ─ aliás, a nova configuração econômica em regiões como a Prússia, a Bavária ou no vale do Reno, entre outras, seria criada pela ascensão da burguesia aliada aos junkers. A política implementada por Bismarck, uma crescente centralização política, militarização e enfrentamento diplomático, só poderia alcançar seu objetivo maior ─ a unificação alemã ─ através de uma aliança entre a burguesia e a classe de proprietários de terra. O ano de 1871 coroa essa modernização alemã levada a cabo pelos poderes políticos conservadores e que agrada também aos grandes capitalistas. A industrialização dos Estados alemães no período anterior e no período imediatamente posterior à unificação é realmente impressionante. Em 1860 a produção manufatureira dos Estados alemães correspondia a 4,9 % da produção mundial, ficando muito atrás da produção inglesa (19,9 %), francesa (7,9 %) e perdendo mesmo para a Rússia (7,0 %). Em 1880 já correspondia a 8,5 % da produção mundial, tornando-se a segunda mais importante da Europa. Entre 1840 e 1870 a marinha mercante alemã triplicou o seu volume de cargas, passando a movimentar mais de um milhão de toneladas às vésperas da Guerra Franco-Prussiana. Em 1870 a Alemanha possuía 19.500 km de ferrovias, mas vinte anos depois já possuía 43.000 km, ultrapassando todos os países europeus.

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É de significativa importância assinalar que as “revindicações” do Partido Comunista da Alemanha eram de caráter democrático-modernizantes: “Para mostrar quão moderadas eram essas „Exigências do Partido Comunista‟, basta assinalarmos que muitas delas – inclusive o sufrágio universal dos adultos, o pagamento de salários aos representantes parlamentares e a transformação da Alemanha numa „república una e indivisível‟ – foram posteriormente aceitos por governos de credenciais capitalistas incontestáveis” (WHEEN, Francis. Karl Marx. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 124).

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A revolução provocada pela indústria representava uma grande mudança na vida do povo alemão, que passava rapidamente a ver seu país bucólico, tradicional e ligado à vida no campo ─ que tanto encantou os poetas românticos ─, violentamente transformado pelas potências produtivas do carvão, do ferro e do aço. Em 1882 um censo populacional indicava que 42,5 % dos alemães estavam ainda ocupados na agricultura, 35,5 % já possuíam ocupações industriais e 10 % estavam trabalhando no setor de comércio e transportes. Em 1895, apenas 13 anos depois, a maioria da população já estava ligada à atividade industrial (39 %), ultrapassando a agricultura (35,7 %) e puxando as atividades comerciais e de transporte (11,5 %). É como se a palavra de ordem fosse concentração: concentração política, concentração populacional (nas cidades) e, por fim, concentração econômica. Se a concentração política e a força militar tiveram um papel preponderante na unificação territorial, não é menor o papel do Estado na economia: a manutenção das tarifas comuns, antes da unificação, e a forte proteção ao produto nacional, após a formação do Reich, são estratégias para tornar a retardatária economia alemã digna de concorrência com os capitais ingleses e franceses. O caminho seguido para viabilizar um enfrentamento entre potências é o incentivo à monopolização: sob forte consumo patrocinado pelo Estado (forças armadas, administração, serviço público etc.), grandes cartéis se constituem, contando também com a colaboração de um sistema financeiro oligopolizado e controlado pelo Reichsbank: Krupp (aço, materiais bélicos), Daimler-Benz (motores, veículos), I. G. Farben (produtos químicos) e Siemens (materiais elétricos) são algumas das corporações que passam a aliar os seus interesses ao de um Estado beligerante, autoritário e imperialista. Enfim, a modernização alemã, capitaneada pela política bismarckiana, criara no seio da Europa um império com o mais poderoso exército do mundo, a segunda maior força de trabalho européia (atrás apenas da Rússia, cuja população era ainda de esmagadora maioria rural) e o segundo maior parque industrial europeu (já ombreando com a Inglaterra).4 A produção teórica de Engels em torno das ciências naturais só pode ser entendida nesse contexto histórico das últimas décadas do século XIX: o desenraizamento social provocado pela acelerada urbanização produziu uma mudança na vida da maior parte da 4

As informações e dados econômicos foram obtidos em NIVEAU, Maurice. História dos fatos econômicos contemporâneos. São Paulo: Difel, 1969; RICHARD, Lionel. A vida quotidiana na República de Weimar. São Paulo: Cia. das Letras, 1988; REZENDE, Cyro. História Econômica Geral. São Paulo: Contexto, 1991 e KENNEDY, Paul. Ascensão e queda das grandes potências. Rio de Janeiro: Campus, 1989.

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população alemã, resultando numa perda dos significados tradicionais ligados à autoridade senhorial, à terra e à religião. A mudança de vida tornava os indivíduos suscetíveis a novas teorias capazes de oferecer uma explicação integrada da realidade nascente, ou pelo menos que serviam como reconforto perante um mundo aparentemente estável que havia sido solapado. Diversas formas de socialismos surgiam nesse momento, assim como religiões multifacetadas, ideologias políticas que uniam valores germânicos tradicionais à realidade industrial ou formulações pretensamente científicas que uniam as novas descobertas da ciência às superstições populares. Nas palavras do próprio Engels, em texto que passou a compor A dialética da natureza, o senhor Duhring, como “criador de sistema”, não é um fenômeno isolado na Alemanha atual. Há algum tempo na Alemanha brotam às dúzias, como cogumelos depois da chuva, da noite para o dia, sistemas filosóficos e principalmente sistemas de filosofia da natureza, para não falar dos inumeráveis sistemas novos de política, economia política etc. E assim parece que na ciência também se pode aplicar o postulado do Estado moderno que permite a todo cidadão julgar por si mesmo todos os problemas acerca dos quais se pede o seu voto, ou o postulado da economia política segundo a qual todo consumidor sabe perfeitamente as mercadorias que necessita para o sustento de sua vida. Todo mundo pode escrever sobre tudo ─ e consiste precisamente nisto a “liberdade da ciência”: escrever com especial desembaraço sobre coisas que não se tem estudado, fazendo-se passar como o único método rigorosamente científico. O senhor Duhring é, sem dúvida, uma das figuras mais representativas dessa estrondosa pseudociência que, por todas as partes se coloca hoje na Alemanha, à força de cotoveladas, na primeira fila e que ressoa pelo espaço como seu estrepitoso e sublime absurdo.5

Frente a um conjunto tão amplo de cosmologias (subjetivamente necessárias frente a um mundo fraturado e cada vez mais desencantado), a única maneira da teoria de Marx e Engels se afirmar e se desenvolver junto à grande massa operária seria competindo com as tentativas de envolver o universo natural e social num mesmo fio condutor explicativo. A proliferação de revistas de divulgação científica ao lado da popularidade obtida por seitas espíritas exigiam um enfrentamento teórico duplo, de um lado enfocando os processos naturais e, de outro, discutindo o papel da subjetividade e da relação entre consciência e materialidade. A grande questão teórica nesse momento, como que requentando uma polêmica já realizada na década de 1840, se tornava a compreensão adequada da relação 5

ENGELS, Friedrich. Dialéctica de la naturaleza. Disponível em: http://www.marxists.org/espanol/me/1880s/dianatura/index.htm. Acesso em janeiro de 2010 (edição em .doc), p. 21-22. Intitulado pelo editores soviéticos como Antigo prólogo para O Anti-Duhring, trata-se de um manuscrito que foi incluído por Riazanov na primeira edição de A dialética da natureza, mas foi posteriormente excluído, aparecendo nas obras selecionadas de Marx e Engels ou em versões que respeitam a fragmentação dos manuscritos.

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entre espírito e matéria. Contudo, diferente do embate travado contra a ideologia alemã na “pessoa de seus diferentes profetas”, onde se podia recorrer simplesmente à filosofia ─ mesmo que reclamando à sua realização/superação ─, agora a mediação entre espírito e matéria não poderia ser feita, na Alemanha industrial, sem o apoio do aparato científico.6 A primeira frente de discussão exigia uma integração das descobertas das ciências naturais numa teoria materialista, o que significava a apreensão desse processo de avançada síntese natural nos mesmos marcos da indústria moderna, isto é, como resultado do desenvolvimento das forças produtivas em sua etapa mais avançada, a tecnologia burguesa. Já o segundo foco duelava tanto com o charlatanismo espírita que se alastrava pelos encontros, círculos e reuniões sociais quanto com as tendências filosóficas kantianas e neokantianas, ou seja, principalmente com a persistência do idealismo nas ciências do espírito. Deriva daí uma primeira observação a ser feita sobre a dialética da natureza de Engels – a partir daqui tomada como uma compreensão global do universo e da natureza, nos termos do que será futuramente encarada como uma compreensão filosófica do mundo, como as leis de movimentos da história, da natureza e do pensamento. Ao contrário do que estava em vigor nesse momento na filosofia de origem kantiana, a proposta de Engels unificava os dois campos de conhecimento, as ciências naturais e as ciências do espírito. Embora o termo só tenha sido criado por Plekanov, o materialismo dialético aparece como uma teoria universal capaz de abarcar todos os planos cognitivos − e a própria cognição – ao tomar a dialética “como ciência da concatenação total”.7 A proposta de Engels é, a princípio, extremamente crítica ao pretender tomar como resultado de um único processo histórico-social os desdobramentos sociais e naturais das ciências, isto é, tanto as descobertas envolvendo a natureza quanto os resultados dos estudos sociais, tanto as inovações técnicas e metodológicas das ciências naturais quanto das ciências do espírito. Diferente, portanto, dos neokantianos, que partem de um posicionamento diverso 6

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O que demonstra a importância do discurso científico é a sua auto-legitimação procurada por todos os cantos: as diversas teorias espíritas tinham que se passar por ciência cristã, o positivismo importado de Paris fazia do critério da cientificidade o seu monopólio e o marxismo tinha que se transformar em socialismo científico através dos textos de Engels. ENGELS, Friedrich. Dialéctica de la naturaleza, op. cit. Nas palavras de um admirador dessa empreitada engelsiana que resulta tanto no Anti-Duhring, publicado em 1878, quanto na obra inacabada A dialética da natureza, “o marxismo, pela primeira vez, confronta-se explicitamente com vários temas científico-filosóficos, entre os quais, o problema do estatuto ontológico do real”. BAGAROLO, Tiziano. Engels: a dialética materialista na história e na natureza. In: COGGIOLA, Osvaldo (org.). Marx e Engels na História. São Paulo: Xamã, 1996, p. 372.

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do sujeito do conhecimento em relação ao objeto de investigação, seja ele a natureza ou a história,8 Engels insere a própria ciência natural no quadro do avanço técnico e produtivo da história burguesa. Em um dos textos introdutórios de A dialética da natureza, o companheiro de Marx fará uma espécie de historicização dos grandes avanços metodológicos das ciências naturais, localizando-a no contexto do progresso burguês. A moderna investigação da natureza é a única que conseguiu um desenvolvimento científico, sistemático e múltiplo, em contraste com as geniais intuições filosóficonaturalistas dos antigos e com as descobertas, muito importantes, mas esporádicas e em sua maior parte carentes de resultados, realizadas pelos árabes. A moderna investigação da Natureza data, como toda a história moderna, dessa época poderosa a que nós, os alemães, denominamos a Reforma, depois da desgraça nacional que, por sua causa, nos aconteceu, a que os franceses chamam de Renascença e os italianos de Cinquecento, época que nenhum desses nomes explica exatamente. Ela se inicia na segunda metade do século XV.9

Contudo, por mais surpreendente que tenha sido a proposta de Engels de juntar o universo geral do conhecimento humano numa perspectiva histórica, a sua proposta permaneceu apenas intencionalmente crítica, obtendo resultados metafísicos ou, em casos menos graves, meramente formalizadores. É o que já foi apontado por uma série de autores que se debateram com o problema de uma dialética da natureza: a retradução de descobertas e conclusões das ciências naturais através de fórmulas e conceitos dialéticos ou fixa este universo categorial numa dimensão ontológica válida para todo o sempre − e portanto tão absurda quanto as propostas espíritas em voga naquele período −, ou então desqualifica a própria dialética numa mera roupagem teórico-interpretativa, isto é, transforma a tensão contraditória própria da dialética num

Coerente com o fato de que somente o que o “espírito cria é compreendido por ele”, Dilthey assim distingue o mundo espiritual do natural: “O mundo espiritual, como sistema de efeitos [recíprocos], distingue-se da ordem causal da natureza pelo fato de que, conforme à estrutura da vida espiritual, cria valores e realiza propósitos (...) A vida história é criativa; ela constantemente produz bens e valores e todos os conceitos disso são reflexos da sua atividade” (DILTHEY apud CONHN, Gabril. Crítica e resignação: fundamentos da sociologia de Max Weber. São Paulo: T. A. Queiroz, p. 19). 9 ENGELS, Friedrich. A dialética da natureza. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 15. 8

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formalismo que representa externamente conteúdos que lhe são propriamente alheios. 10 Aqui se verifica o problema da elucidação tardia de temas pela metodologia teórica do marxismo − caso que faz com que, se a singularidade do marxismo ortodoxo é o método, então Engels é o primeiro marxista, pois é o primeiro a transformar a dialética num método isolado dos objetos, num método que é previamente esmerilhado, externamente sintetizado. O potencial de um método não abstrato, que produz teoria e não apenas enforma seus objetos teóricos, é esterilizado: (...) se o marxismo não deve ser uma simples Weltanschauung que necessita de uma contínua confirmação do seu conteúdo de realidade e precisa da permanente legitimação da produtividade das suas sugestões metodológicas, mas deve ser entendido como fio condutor para a pesquisa, como encaminhamento para a ação, com um lugar de produção de conhecimento, experiência e atividade, então sua pretensão de verdade não pode ser realizada pela interpretação retrospectiva de ações e resultados científicos; já que nenhum movimento do conhecimento deixa inalterado o objeto do próprio conhecimento, a dialética materialista precisa penetrar no processo de produção das teorias naturalistas, tecnológicas e sociológicas, tornando-se um fator produtivo essencial da gênese delas.11

A questão principal da proposta da dialética da natureza de Engels, relativo à integração do universo natural e social, está na exteriorização das categorias e na emancipação do método − o problema que se pode verificar a partir daí é a transformação da dialética em método formal, lógica contrária a sua própria natureza de encarar conceitos e

Resumindo toda a polêmica inaugurada pela crítica de Lukács à dialética da natureza de Engels (dirigida ao Anti-Duhring, pois quando foi publicado História e Consciência de Classe ainda não havia saído A dialética da natureza), Lubomir Sochor assim define essa formalização: “A Dialética da natureza de Engels (...) é uma enciclopédica interpretação dialética das descobertas efetuadas e das teorias elaboradas pelas ciências naturais do século XIX, em parte já plenamente superadas pela pesquisa científica posterior: a dialética é aí afirmada post festum, como método de interpretação, não como método heurísitco. Todas as descobertas que são interpretadas dialeticamente já haviam sido realizadas na ausência de uma aplicação consciente do método dialético, e do mesmo modo – ou seja, sem uma contribuição metodológica da dialética – haviam sido formuladas as teorias científicas de que Engels se ocupa em seu livro” SOCHOR, Lubomir. Lukács e Korsch: a discussão filosófica dos anos 20. In: HOBSBAWM, Eric J. (org.). História do marxismo, vol. 9 ─ O marxismo na época da Segunda Internacional: problemas da cultura e da ideologia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 35. 11 NEGT, Oskar. O marxismo e a teoria da revolução no último Engels. In: Hobsbawm, Eric J. (org.). História do marxismo, vol. 2 ─ O marxismo na época da Segunda Internacional (primeira parte). op. cit., p. 142-143. A mesma crítica poderia ser feita à Filosofia da Natureza de Hegel, parte integrante do movimento da idéia no seu processo de autoconstituição como conceito. A relação entre dialética e natureza não parece tampouco resolvida de modo satisfatório, pois se Hegel encara a natureza de modo indireto – “a natureza constitui uma base e uma pré-história muda, não intencional, da sociedade.” (LUKÁCS, Goerg. Ontologia do ser social – A Falsa e a Verdadeira Ontologia de Hegel. São Paulo: Livraria Ciências Humanas, 1979, p. 16) –, não fica claro como a dialética se “desdialetiza” para se tornar natureza (SCHMIDT, Alfred. El concepto de naturaleza en Marx. Marid: Siglo venitiuno, 1983, p. 19). Na tentativa de transformação de seu método em sistema, Hegel confirma a dialética do esclarecimento: pensar a natureza com intenção de submetê-la é alienar-se nela. 10

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objetos como momentos integrantes de um mesmo processo em constante e mútua síntese. Ao invés de apenas historicizar os métodos das ciências naturais − e deixar incólume o universo categorial de origem hegeliana como capa universal −, o fundamental seria determinar a natureza da forma social que produz essas ciências naturais, suas teorias, suas categorias, seus métodos e, portanto, seus resultados práticos e objetivos.12 Ao identificar as categorias formais desta sociedade, seria possível determinar as categorias estruturantes do pensamento, da consciência e, assim, encarar historicamente as próprias categorias formalizadoras, não tomando-as como previamente dadas. Ao contrário da dialética ser vista como uma ciência das leis do movimento, da natureza e do pensamento, deveria ser identificada como expressão categorial do movimento social moderno, como expressão das formas sociais de pensamento que se debruçam sobre o universo natural. Mas é o contrário que ocorre na dialética da natureza de Engels: o insight crítico inicial de contemplar num mesmo movimento as ciências da natureza e do espírito se perde em virtude da transformação deste último num mero derivado daquela, isto é, o espírito se torna um elemento subordinado à força e à dinâmica natural, tomada como a própria fonte das categorias dialéticas: Os seres humanos são, em primeiro lugar, seres naturais; a espécie humana surgiu pela evolução da natureza e permanece indissoluvelmente ligada a esta relação; inclusive se a dependência da sociedade em relação à natureza é modificada pelo desenvolvimento das forças produtivas, aquela jamais pode ser suprimida. Pois bem, esta prioridade da natureza ─ enquanto natureza que é objeto, ao menos em parte, da ação transformadora do homem ─ equivale, em termos ontológicos, a uma concepção materialista da natureza e do ser. Seja o que for que tenham escritos os teóricos do “marxismo ocidental” em nosso século, não há nenhuma dúvida de que esta era a convicção não apenas de Engels, mas também de Marx (Bagarolo, 1996: 372-373).13

Um momento em que Engels se aproxima disso é quando discute a teoria da evolução de Darwin e a trata como transferência da luta de classes para o domínio natural, servindo-se de Hobbes e Malthus para estabelecer leis naturais (ENGELS, Friedrich. A dialética da natureza. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 163. 13 BAGAROLO, Tiziano. Engels: a dialética materialista na história e na natureza. In: COGGIOLA, Osvaldo (org.). Marx e Engels na História. op. cit., p. 372-373. Através da “inversão materialista” a prioridade social da concepção dialética se perde. Ocorre uma transferência para a natureza das singularidades do próprio espírito – em sua figuração histórica, enfatizemos: “Desta forma, a dialética, para o materialismo dialético, deixa de ser baseada em princípios abstratos da lógica hegeliana, para virem a ser evidenciados empiricamente. O caráter dialético do processo da Idéia passa a ser entendido como da própria realidade e, conseqüentemente, uma propriedade inerente à matéria. O que só pode ser entendido ao se conceber a matéria não como substância inerte, mas como dotada de um caráter muito próximo do espírito” (VARGAS, Milton. Engels e a dialética da natureza. In: COGGIOLA, Osvaldo (org.). Marx e Engels na História. op. cit., p. 385). 12

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Não se pode de modo algum atribuir esse problema, nesta dimensão, ao caráter inacabado da obra ou da proposta de Engels ─ e a persistência da seita “materialista dialética” até hoje demonstra que não se trata de um deslize interpretativo. É o próprio determinismo objetivista, presente em sua concepção teórica, que transforma mesmo os momentos propícios à reflexão sobre o enquadramento social das ciências em apologia do domínio objetivista da sociedade burguesa através das potências científicas. É assim que o problema da incognoscibilidade da coisa-em-si é “resolvido” em Do socialismo utópico ao socialismo científico: Já Hegel, há muito tempo, respondeu a isso: desde o momento em que conhecemos todas as propriedades de uma coisa, conhecemos também a própria coisa; fica somente de pé o fato de que essa coisa existe fora de nós, e enquanto os nossos sentidos nos fornecerem esse fato, apreendemos até ao último resíduo da „coisa-em-si‟, a famosa incognoscível Ding an sich de Kant. Hoje, só podemos acrescentar a isso que, na época de Kant, o conhecimento que se tinha das coisas naturais era suficientemente fragmentado para se poder suspeitar, por trás de cada uma delas, uma misteriosa „coisa-em-si‟. Mas, de lá para cá, essas coisas inapreensíveis foram apreendidas, analisadas e, mais ainda, reproduzidas uma após outra pelos gigantescos progressos da ciência. E desde o instante em que podemos produzir uma coisa, não há nenhuma razão para que ela seja considerada incognoscível.14

A “opressão” do Zeitgeist é tão visível que soa vulgarizada: aquilo que era um problema estritamente filosófico agora foi dissolvido pela praticidade industrial. O resultado desse “materialismo cru” é que a determinação categorial da própria forma burguesa de pensamento não é negativamente explorada frente ao seu universo objetivo, mas é o objetivismo mesmo do progresso burguês que é encarnado como o elemento positivo frente à filosofia, frente ao mundo autonomizado dos conceitos. Ressoa aqui o problema em não se apreender a formalização social como contendo, simultaneamente, o momento objetivo − o processo industrial que não vê obstáculos, nem mesmo os naturais, criando, sintetizando sua própria natureza − e o momento subjetivo − o universo categorial que representa essa objetividade, mesmo que em contradição com ela. A apreensão do progresso material burguês, que se torna elemento a ser valorizado frente ao próprio pensamento ideológico burguês, é marca visível do determinismo − as representações falsas serão pouco a pouco

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ENGELS, Friedrich. Del socialismo utópico al socialismo científico. In: Marx & Engels. Obras escogidas. Moscou: Progresso, 1981, p. 106. Lembremos que Do socialismo utópico ao socialismo científico é uma pequena obra, publicada em 1880, resultante do desmembramento de um dos capítulos do Anti-Duhring, enquadrando-se no mesmo momento de reflexão filosófico-científica geral.

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dissolvidas pela estrutura produtiva da sociedade moderna, cuja verdade é a teoria revolucionária. Dialética da natureza se transforma, numa situação de luta ideológica de duas frentes ─ com o idealismo das ciências do espírito (e das falcatruas religiosas) e com o materialismo irrefletido das ciências naturais ─, num apego objetivista ao resultado do domínio material burguês, isto é, à materialidade desprovida de qualquer floreio teórico, conceitual ou ideológico.15 Aqui se verifica o momento em que o materialismo dialético se torna a mais metafísica das filosofias possíveis, pois se diz capaz de representar, ou melhor, exprimir a natureza “tal como ela é”: Hoje toda natureza se apresenta a nós como um sistema de nexos e processos, esclarecido e compreendido, ao menos em suas linhas fundamentais. Concepção materialista da natureza significa apenas, certamente, compreensão da natureza tal como ela é, sem acréscimos estranhos, por isso ela era, no começo, uma concepção óbvia e imediata para os filósofos gregos.16

Não é por acaso que, pouco a pouco, a transformação da dialética em método e sua doutrinação tenham-na convertido numa forma de positivismo, ainda que com princípios político-sociais diversos do positivismo de origem comtiana. A busca pelo objeto concreto se tornou a busca pelo objeto “tal como ele é”, o que, num universo de automatismo naturalista, num universo onde as leis sociais-naturais do mercado se impõem objetivamente sobre a consciência e a vontade individuais, se transformou numa mera descrição factual e pouca elucidativa de processos, eventos, conflitos etc. Os desdobramentos posteriores no marxismo da Segunda Internacional já conhecemos: concretude se tornou pouco a pouco empiria, já que o método científico por excelência é o empirismo das ciências naturais; a reflexão teóricocrítica foi reduzida ao polimento metodológico inicial, ou seja, a enunciação das “leis dialéticas” da conexão universal, da transformação da quantidade em qualidade, da interpenetração de contrários e da negação da negação. 17 Mesmo as reflexões aparentemente mais complexas, como por exemplo a discussão sobre a lei do valor, tornou-se o preâmbulo

“o materialismo marxista é um „materialismo científico‟ completamente anti-especulativo” (BAGAROLO, Tiziano. Engels: a dialética materialista na história e na natureza. In: COGGIOLA, Osvaldo (org.). Marx e Engels na História. op. cit., p. 373) 16 ENGELS, Friedrich. Dialéctica de la naturaleza, op. cit., p. 168. Essa passagem é parte de um texto que foi eliminado do livro sobre Feuerbach e aparece em algumas edições de A dialética da natureza. 17 Um dos capítulos de A dialética da natureza não é outra coisa senão essa tentativa de desenvolver “a natureza geral da dialética como ciência das relações” (ENGELS, Friedrich. A dialética da natureza, op. cit, p. 34) e, portanto, a formulação do primeiro esboço de um manual de dialética. 15

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de todo tratado de economia política marxista, restringindo-se a mera descrição de uma categoria positivada, alçada à condição de uma lei natural18 ─ a crítica da economia política foi reduzida à mera economia política e, como se sabe, o empirismo naturalista é desde o princípio símbolo dessa ciência natural da sociedade. Consciência versus materialidade ─ o reflexo Não é casual que da pena de Engels tenha saído uma das concepções teóricognosiológicas mais polêmicas de toda a história do marxismo: a teoria do reflexo. É que a formulação dessa metáfora do espelho para definir a relação entre a consciência e a realidade se adequa à concepção de mundo gestada pela dialética da natureza, pela transformação da dialética num método universal. A teoria do reflexo é formulada numa luta teórica contra o idealismo e as concepções ético-abstratas. Da mesma forma que as descobertas da ciência natural vinham demonstrar a validade da dialética, o materialismo na base da sociedade viria a confirmar que as idéias são, no fundo, reflexos no pensamento de algo fora dele mesmo. A dialética, a chamada dialética objetiva, impera em toda a Natureza; e a dialética chamada subjetiva (o pensamento dialético) são unicamente o reflexo do movimento através de contradições que aparecem em todas as partes da Natureza e que (num contínuo conflito entre os opostos e sua fusão final, formas superiores), condiciona a vida da Natureza.19

Enfim, o materialismo científico-naturalista validava a precedência da natureza e do movimento natural sobre a idéia e a representação, apostando que as relações estabelecidas no pensamento ─ contradição, movimento e síntese ─ são meras figurações mentais de processos materiais-naturais efetivados no exterior. Com isso uma dupla redução ocorre: de um lado a consciência se torna mera caixa de ressonância de forças que atuam exteriormente, privando o pensamento daquele momento criativo que Marx reconhecera mesmo no idealismo (Teses sobre Feuerbach); de outro, a objetividade dos processos, incluídos

Novamente aqui Engels deve ter a responsabilidade por essa vulgarização: em apêndice ao terceiro livro de O Capital, em nítida contradição com toda reflexão realizada nas milhares de páginas anteriores, o valor é tomada como uma categoria vigente efetivamente há cerca de “seis mil anos”! (ENGELS, Friedrich, Suplemento ao Livro Terceiro de “O Capital”. In: Marx, Karl. O Capital – crítica da economia política, livro III, vol. 5. São Paulo: Nova Cultural, 1986, p. 328) 19 ENGELS, Friedrich. A dialética da natureza, op. cit., p. 162. 18

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principalmente os processos sociais, são convertidos na materialidade de um processo natural, dada a exterioridade da matéria em relação à consciência. A dialética deixa de ser uma mediação teórico-conceitual entre a consciência e a realidade social; torna-se uma mediação, ou apenas um reflexo, entre a consciência e a natureza. Ora, novamente uma diferença de época se afirma nessa revisitação tardia, por parte de Engels, do velho problema da relação entre consciência e matéria ─ quando o inimigo era o idealista com convicções sobre a autonomia do pensamento, a afirmação da força da materialidade sobre a consciência era uma necessidade da luta teórica e da denúncia social. Quando o desencantamento da indústria e o materialismo das ciências naturais se generalizou, a afirmação da exterioridade da consciência e da matéria torna-se um elemento legitimador da objetividade mercantil.20 O problema se volta para a questão da forma de determinação social (Marx): tomar o universo formal como exclusivamente ideológico ─ pensamento ─ e separá-lo do universo material, é ceifar qualquer relação íntima existente entre a forma de determinação do mundo social-material e a estrutura do pensamento. No fundo, a empiria científico-natural que marca o positivismo marxista, originado da dialética da natureza, tem uma obsessão doentia pelo concreto, rejeitando sobremaneira a reflexão categorial, acusando-a de demasiado abstrata. Mas é essa empiria mesmo que se perde cada vez mais na abstração, sem nem se dar conta disso, pois trata a priori como abstraídas, separadas, forma e matéria, pensamento e realidade, objetividade e subjetividade. A velha ladainha da “análise concreta da situação concreta”, que se converteu em descrição acrítica e legitimadora de movimentos e dinâmicas cegas, há muito se perdeu nos fios condutores do objetivismo e da inconsciência. Essa constatação não é de modo algum nova. Lukács em História e consciência de classe21 havia polemizado exatamente com a concepção engelsiana da coisa-em-si como resultado da indústria ─ para Lukács o modelo de resolução do problema filosófico era na verdade uma queda e apologia da reificação e do automatismo industrial: ao contrário da consciência plena dos objetos produzidos, a síntese industrial é caracterizada pela dinâmica cega e por uma indiferença dos sujeitos frente aos objetivos perseguidos, aos quais estão “A metáfora do reflexo tinha conteúdo substancial e crítico num período no qual a mentalidade idealista é que determinava a ideologia dominante; na era do positivismo, ela assume, geralmente, uma função de legitimação” (NEGT, Oskar. O marxismo e a teoria da revolução no último Engels. In: Hobsbawn, Eric J. (org.). História do marxismo, vol. 2 ─ O marxismo na época da Segunda Internacional (primeira parte). op. cit., p. 177). 21 LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe – estudos de dialéctica marxista. Porto: Elfos, 1974, p. 150. 20

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submetidos sem sequer sabê-lo. A atividade industrial dispensa a subjetividade do sujeito, transformando-o mesmo em objeto ─ com o que a base de uma relação dialética, a mediação sujeito/objeto, fica perdida. Assim como a teoria do reflexo ─ onde a consciência é marcada exteriormente pelo processo material ─, também na indústria, sua origem social, a singularidade do sujeito é prensada sob a maquinaria objetiva. Dialética da natureza e dialética como concepção de mundo são, por isso, formulações teóricas que trazem o selo da modernização e industrialização alemã ─ são formas de pensamento socialmente válidas para as condições de um país que se tornou rapidamente industrial e que precisa entender a si mesmo, justificando-se. Os (des)caminhos posteriormente tomados pelo marxismo na Alemanha, desde a ortodoxia até o revisionismo, não são pois estranhos à sua fundação ─ são o seu resultado. A objetividade mercantil marcou a ferro até mesmo a teoria que pretendia lhe desmascarar.

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Marcuse e a questão do trabalho Joelton Nascimento

A esquerda política sempre adorou entusiasticamente o trabalho. Ela não só elevou o trabalho à essência do homem, mas também o mistificou como pretenso contra-princípio do capital. O escândalo não era o o trabalho, mas apenas a sua exploração pelo capital. Por isso, o programa de todos os “partidos de trabalhadores” foi sempre “libertar o trabalho” e não “libertar-se do trabalho”. Se houve algum dia a esperança de poder realizar uma tal autodeterminação da produção dentro das formas do sistema produtor de mercadorias, hoje as “forças do trabalho” já perderam, e há muito tempo, essa ilusão. Hoje interessa apenas o “posto de trabalho”, a “ocupação” - já esses conceitos comprovam o caráter de fim em si mesmo de todo esse empreendimento e a menoridade dos envolvidos. Manifesto contra o trabalho, Grupo Krisis

1. Introdução Herbert Marcuse teve uma acidentada recepção no Brasil quando seus escritos foram pela primeira vez traduzidos e lidos nos anos 60. Paulo Eduardo Arantes chega a afirmar, com bastante pertinência que “como nunca brilhou no firmamento brasileiro (salvo durante a febre-68, e mesmo assim...), não se pode falar de um eclipse de Marcuse, bem como de um renascimento do interesse por ele. (...) creio que brevemente será lido pela primeira vez” 1. De fato, tanto pelos que se julgavam “marxistas” (que se lembre da triste “crítica” de um certo Porto Carreiro2 a Eros e Civilização na qual o autor ataca Marcuse por este ser um defensor do homossexualismo e, por isso, um autor não-dialético (!)) quanto pelas traduções de autores conservadores (como MacIntyre3 e Vivas4 entre outros) quanto ainda pela leitura de

ARANTES, Paulo Eduardo. Zero à esquerda. São Paulo: Conrad, 2003, p. 152 CARREIRO, C. H. Porto. Freud, Marcuse ou a Dialética? Comentários à margem de Eros e Civilização. São Paulo: Alba, 1978. 3 MACINTYRE, Alasdair. As Idéias de Herbert Marcuse. Tradução: Jamir Martins. São Paulo: Cultrix, 1973. 4 VIVAS, Eliseo. Marcuse em Julgamento. Tradução: Hélio Polvora. Rio de Janeiro: Bloch, 1972. 1

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autores

conservadores

locais,

como

Malavoglia5

e

Vasconcelos6,

(este

último

convenientemente editado pela Biblioteca do Exército em pleno regime militar!) Marcuse foi tomado num patamar muito aquém de sua vasta e complexa obra7. Entre outras razões, isto se deveu à torrente de acontecimentos que cercaram a sua chegada, sobretudo a rebelião estudantil na Europa e nos EUA. Marcuse, além de ser um teórico crítico que inspirara claramente a rebelião, foi também bastante consciente de suas limitações e fraquezas, em diversos momentos.8 Este importante fato é constantemente obliterado pela imagem distorcida que se tem de Marcuse como uma espécie de “guru da contracultura”. Ainda hoje, Marcuse é apontado por vezes mais como um ensaísta polêmico do que como um filósofo de uma vasta obra teórica. Nascido no ano de 1889 em Berlim, Herbert Marcuse inicia sua carreira filosófica após uma participação breve na Revolução Alemã de 1917. Esta começa com o término de sua tese de doutorado em filosofia na Universidade de Freiburg com o título O Romance de Arte Alemão (Der deutsche Künstlerroman) em 1922. Em 1927, ao ler Ser e Tempo de Martin Heidegger acredita ter encontrado nesta obra uma fundamentação filosófica que o marxismo ainda não havia logrado alcançar, apesar de Marcuse reconhecer a importância do trabalho de Georg Lukács e Karl Korsch neste sentido. Neste breve período, que vai até 1933, Marcuse ensaia em vários artigos e resenhas uma espécie de “marxismo heideggeriano” fundindo conceitos da fenomenologia existencial, como o conceito de historicidade (Geschichlichkeit) ao materialismo histórico. Desde o primeiro destes ensaios Contribuição para uma Fenomenologia do Materialismo Histórico de 1928, Marcuse, ao mesmo tempo que reconhecia o caráter burguês, ainda que radical, do pensamento ontológico de Heidegger bem como sua pouca concretude, identificava neste uma excelente contribuição para o combate ao

MALAVOGLIA, Libero. Contesto Marcuse. 2. ed. São Paulo, Progresso, 1971. VASCONCELOS, Perboyre. A volta ao mito – A margem de Eros e Civilização de Marcuse. Biblioteca do Exército/Laudes, 1970. 7 Uma exceção a esta recepção é a detida análise de José Guilherme Merquior, que se tornou notória MERQUIOR, José Guilherme. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969. Para dois interessantes trabalhos sobre a recepção de Marcuse no Brasil, Cf. SOARES, Jorge Coelho. Marcuse no Brasil. Londrina: CEFIL, 1999; e Marcuse – Uma trajetória. Londrina: EdUEL, 1999, capítulo 12. 8 Para conhecer as principais ressalvas de Marcuse aos estudantes rebelados, Cf, por exemplo, MARCUSE, Herbert. O Fim da Utopia [1967]. Tradução: Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969 e a reconstrução histórica deste momento em WIGGERSHAUS, Rolf. Escola de Frankfurt – História, desenvolvimento teórico, significação política. Tradução: Vera de Azambuja Harvey. Rio de Janeiro: Difeel, 2002, p. 655 e ss. 5

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caráter mecanicista e positivista do pensamento que se passava por marxista, por um lado, e ao idealismo alemão, sobretudo o neokantismo universitário, de outro. Este marxismo heideggeriano ensaiado por Marcuse termina junto com a ascensão do nazismo e o apoio aberto de Heidegger a este. Ainda que se reconheça a relativa surpresa de Marcuse diante da adesão de Heidegger ao nacional-socialismo, pode-se constatar ao longo de seus textos da época uma progressiva revisão crítica da ontologia existencial heideggeriana. Esta revisão se aprofunda ao serem publicados no início dos anos 30 os Manuscritos Econômico-filosóficos, de 1844, de Karl Marx. Segundo Richard Wolin, não seria exagero dizer que “...repentinamente, o que Marcuse procurou por quatro anos em Heidegger ele o encontrou em Marx: um fundamento filosófico para o materialismo histórico”9. Neste ensaio pretendo analisar a contribuição teórica de Marcuse a partir da perspectiva aberta pela assim chamada “nova crítica do valor”. A “nova crítica do valor” à qual aqui me refiro é uma vertente da crítica do capitalismo surgida na Europa sobretudo em coletivos teóricos independentes, mormente na Alemanha, e que reclama para si a herança de uma grande parte do pensamento de Marx. Segundo estes críticos há uma parte do pensamento marxiano que não só resiste aos fracassos das tentativas de realização do socialismo do século XX, como também permanece como a mais poderosa explicação crítica do desenvolvimento e das contradições do capitalismo global. Embora tenham reconhecido que o caminho para uma “nova crítica do valor” tenha sido aberto por vários pensadores de diversas áreas e que os antecederam, estes críticos radicais passaram a se identificar com uma particular crítica do capitalismo tardio no final dos anos 80, precisamente quando inicia o colapso da União Soviética e dos regimes que se reputavam como “comunistas” no leste europeu. Eles se mostravam insatisfeitos tanto com as insuficientes explicações acerca das razões que levaram ao colapso do “socialismo realmente existente” quanto com a capitulação das esquerdas ante os imperativos da democracia liberal e do mercado global como panacéia dos novos tempos. Um dos eixos mais importantes do debate levantado pela nova crítica do valor é o da crítica do trabalho, bem explícito a partir da publicação do Manifesto contra o trabalho10. Esta temática já havia recebido por parte de

WOLLIN, Richard. What is Heideggerian Marxism? IN MARCUSE, Herbert. Heideggerian Marxism. Tradução: John Abromeit et alii. Lincoln: University of Nebraska Press, 2005, p. XXIV. 10 GRUPO KRISIS. Manifesto contra o trabalho. São Paulo: Conrad, 2003. 9

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Marcuse uma atenção bastante dedicada. Neste ensaio nos voltaremos para os textos marcuseanos que testemunham essa dedicada atenção. Para estes novos críticos do valor e do trabalho, em suma, dentre os quais poderíamos destacar Robert Kurz, Anselm Jappe, Roswitha Scholz, Norbert Trenkle dentre alguns outros, é preciso recomeçar a obra de Marx. Ou, como anuncia o título do manifesto de um importante coletivo: é preciso ir “com Marx, para além de Marx”. Embora alguns dos teóricos da nova crítica do valor tenham reconhecido nos chamados “frankfurtianos” os precursores de algumas das teses por eles defendidas no debate contemporâneo sobre a crítica ao capitalismo, eles têm constantemente ignorado a contribuição da obra de Marcuse a este empreendimento teórico. O contrário ocorre com Adorno, cujo reconhecimento é sempre mais explícito e minucioso.11 Neste ensaio, o intuito é apenas dar um primeiro passo na correção desta avaliação. Cremos ainda que, ao fazê-lo, teremos a oportunidade de também contribuir para a construção de uma perspectiva interpretativa renovadora de Marcuse e de suas reflexões que ainda latejam em nosso tempo. 1. A ontologia do trabalho (1932-1933) Se é verdade que, como nos sugeriu Richard Wolin acima, “...repentinamente, o que Marcuse procurou por quatro anos em Heidegger ele o encontrou em Marx: um fundamento filosófico para o materialismo histórico”, o que foi, exatamente, este fundamento? Em primeiro lugar, Marcuse assinala que os Manuscritos econômico-filosóficos recémdescobertos demonstravam o claro recurso a categorias filosóficas no crítica da economia política de Marx12: Trata-se aqui [nos Manuscritos, JN] de uma crítica filosófica da Economia Política, pois as categorias fundamentais da teoria de Marx aparecem no ajuste de contas preciso com a filosofia hegeliana (por exemplo, trabalho (Arbeit), objetivação, alienação, superação (Aufhebung), propriedade); e isso não no sentido de que o Cf. por exemplo, mais recentemente, SCHOLZ, Roswitha. A teoria da cisão de gêneros e a teoria crítica de Adorno. Tradução: Marcos Lacerda. IN CEVASCO, Maria Elisa, OHATA, Milton (orgs.) Um crítico na periferia do capitalismo: reflexões sobre a obra de Roberto Schwarz. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 e KURZ, Robert. Cinzenta é a árvora dourada da vida e verde a teoria. O problema da práxis como evergreen de uma crítica reduzida do capitalismo e a história das esquerdas. IN Exit! n. 4, 2007. Disponível em <http://obeco.planetaclix.pt>. Scholz ([2004], 2007) e Kurz (2007). 12 Conexão que seria esclarecida muito mais detalhadamente mais tarde no monumental estudo de Roman Rosdolsky (Gênese e Estrutura de O Capital de Karl Marx. Tradução: Cesar Benjamin. São Paulo: Contraponto, 2001) sobre os Grundrisse, estudo preparatório de Marx anterior a O Capital. 11

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“método” de Hegel, modificado, seja retomado e, dentro de um novo contexto, vivificado: o que ocorre é que, com o retorno à própria base da problemática da filosofia hegeliana (que constitui o primeiro e mais importante fundamento do método), o conteúdo dessa filosofia é apropriado e pensado ulteriormente, desenvolvido13.

Num ensaio dedicado especialmente à questão do trabalho, escreverá ele no mesmo sentido: A nosso ver justamente o 'conteúdo indeterminado' que o conceito geral do trabalho assumiu obriga a nos ocuparmos novamente desse 'conceito geral de trabalho'. Talvez esta discussão (mero ensaio introdutório) também contribua para rever o nexo objetivo entre filosofia e economia política - nexo tornado efetivo pela última vez em Marx e que somente a partir de então de perdeu”.14

Parece evidente que Marcuse via nos Manuscritos uma espécie de refutação definitiva das interpretações economicistas e mecanicistas do marxismo, ao mesmo tempo que clamava pela força prática, e até mesmo revolucionária desta descoberta das categorias filosóficas operando na crítica da Economia Política. E na tateante busca de Marx pelas categorias que permitem compreender a origem da profunda alienação que o homem em geral e o trabalhador em particular experimentam nas sociedades em constante processo de industrialização Marcuse percebe que, após alguns inícios falhos, Marx finalmente encontra na categoria do trabalho, uma “pedra filosofal”. “O conceito de trabalho, portanto”, escreveu ele, em seu desenvolvimento rompe o âmbito delineado pela colocação do problema; sob este conceito prossegue a discussão que, então, descobre um novo “fato” que se transforma em base da ciência da revolução comunista. A interpretação deve, portanto, fixar-se no conceito marxista de trabalho.15

Marcuse salienta, com grande ênfase, o fato de que o “trabalho alienado” e a “alienação do trabalhador” não são, para Marx, de modo algum um fato que concerne somente, ou mesmo principalmente, ao âmbito econômico, antes, é um fato que repercute em toda a MARCUSE, Herbert. Schriften. Band I, 2. ed. Frankfurt-am-Main: Surhkamp, 1981, p. 510. A partir daqui SC, seguido do número do volume e do número da página. [trad. MARCUSE, Herbert. Novas Fontes de Fundamentação do Materialismo Histórico [1932]. IN Idéias sobre uma teoria crítica da sociedade. 2. ed. Tradução: Fausto Guimarães. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 10 a partir daqui FMH, seguido do número da página]. Alterei ligeiramente as traduções quando julguei necessário. 14 SC, I, p. 558, [trad. MARCUSE, Herbert. Sobre os fundamentos filosóficos do conceito de trabalho da ciência econômica [1933]. IN Cultura e Sociedade. Vol. 2. Tradução: Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998, p. 9. Daqui em diante referido como C&S, seguido do número da página]. 15 SC, I, p. 513, [FMH, p. 14]. 13

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realidade humana, insinua ainda, sem se deter muito nisso, que essa retomada “filosófica” da crítica da economia política não é, de modo algum, uma volta para a teoria pura, antes, para a colocação da devida importância da superação destas categorias no processo revolucionário. No trabalho, diz-nos Marx seguido por Marcuse, o homem valoriza a mercadoria e desvaloriza a si mesmo simultaneamente. Quanto mais trabalha, menos vale. Quanto mais enriquece o capitalista, mais empobrece seu próprio mundo. O processo que torna possível este paradoxo é o da exteriorização que se converte em alienação. Trata-se pois de uma relação do trabalhador com o produto do trabalho, do homem com a coisa, que se extravia no nível econômico, o alvo da crítica do Marx dos Manuscritos. Embora se dê também no nível econômico, não se trata de um problema apenas econômico, antes, é um problema da essência humana (menschlichen Wesens). E essa caracterização do problema resulta em um curioso paradoxo que Marcuse busca apenas desenvolver: o trabalho exteriorizado (entäusserten Arbeit) gera as mais irracionais e danosas formas de alienação e de exploração possíveis: a miséria do trabalhador, sua distância material e intelectual em relação aos produtos de seu trabalho em face dos efeitos da propriedade privada. Ou seja, o trabalho exteriorizado acarreta o afastamento pleno do homem de sua essência humana, e ainda assim, o trabalho é considerado a pedra de toque na determinação de qual seja esta essência mesma. Este paradoxo está claramente posto no seguinte: Se no conceito do trabalho exteriorizado está contida uma relação do homem com o objeto (e, como veremos adiante, consigo mesmo), então é preciso que no conceito de trabalho como tal esteja contida uma relação humana (e não uma situação econômica). E se a exteriorização do trabalho representa uma total destruição e alienação da essência humana, então é preciso que o próprio trabalho seja compreendido como manifestação e realização autênticas da essência humana.

E é nesse sentido, que “o trabalho é compreendido como categoria filosófica”16. Se o trabalho é visto como este definidor da essência humana, logo, ele é a pedra de toque “ontológica” do marxismo. Marcuse evitaria o termo “ontologia”, caso não fosse o próprio Marx quem o tenha empregado e esse emprego terminou por ser bastante conveniente para um ainda jovem filósofo heideggeriano de tendências marxistas:

16

SC, I, p. 518, [FMH, p. 19].

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O trabalho como “atividade vital” especificamente humana se baseia nesse “ser genérico” do homem: o trabalho pressupõe o poder relacionar-se com o “universal” dos objetos e com as possibilidades neles imanentes. E no poder relacionar-se com o próprio gênero se baseia a liberdade especificamente humana: a auto-realização, “autoprodução” do homem. Por meio do conceito de trabalho livre (do livre produzir), a relação do homem como ser genérico com seus objetos se torna mais clara.17

Ou ainda: “O trabalho aqui não é determinado pelo modo de seus objetos, não mediante sua finalidade, conteúdo, resultado, etc., mas mediante aquilo que acontece com a existência (Dasein) humana ela própria no trabalho”18. Para Marcuse era preciso reconhecer que o conceito de trabalho “é um conceito ontológico, isto é, é um conceito que apreende o ser da própria existência (Dasein) humana como tal”19. Interessa observar também que este conceito ontológico de trabalho, como o próprio Marcuse assume, é quase que todo extraído na forma de um “contraconceito do trabalho exteriorizado”. Ou seja, dadas as características de alienação e coisificação, de desvio, que se encontra no trabalho exteriorizado se deduz, por negação a estes, o trabalho “livre” e o caráter “ontológico” do trabalho. Portanto, o trabalho, ou o trabalho livre (freien Arbeit) é o contraconceito ontológico do trabalho exteriorizado e alienado das sociedades industriais. É em Hegel, sobre quem Marcuse preparou sua tese de Habilitação sob a orientação de Heidegger, que o filósofo berlinense encontrará formulada claramente, pela primeira vez, uma ontologia do trabalho e por isso “Os Manuscritos Econômico-filosóficos fornecem a prova direta de que a teoria marxista deita raízes no centro da problemática filosófica de Hegel”20. Estes são os principais elementos da interpretação marcuseana da problemática do trabalho em Marx: 1) a descoberta deste nível categorial de análise que sustenta mesmo a crítica avançada da Economia Política marxiana; 2) o entroncamento deste nível categorial no conceito de trabalho, e portanto, na crítica da alienação e do estranhamento do homem em relação à sua essência humana (o trabalho exteriorizado) como alicerçado nesta fundamentação ontológica do trabalho. Por um lado, a nova crítica do valor e do trabalho se beneficia e certamente deveria ver com bons olhos este primeiro aspecto da interpretação marcuseana de Marx. Um dos centros mais importantes da nova crítica do valor e do trabalho é precisamente a relação que ela SC, I, p.522, [FMH, p. 22-32]. SC, I, p. 562, [C&S, p. 13]. 19 SC, I, p. 559, [C&S, p. 10]. 17

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reconstrói das categorias lógicas e das categorias históricas da crítica ao capitalismo, reconstrução que requer um certo recurso crítico à filosofia de Hegel, sendo este indispensável. Anselm Jappe expôs de modo especialmente claro este necessário recurso: O jovem Marx acusava Hegel de transfigurar a realidade empírica à custa de hipostasiar injustificadamente conceitos lógicos: (...) O que Marx aqui critica é a abstracção idealista enquanto 'redução de todas as coisas concretas a um conceito lógico e a hipóstase deste em realidade'. Mais tarde, depois de 'por acaso' ter relido, durante a redação dos Grundrisse, a Lógica de Hegel, Marx não retomou esta crítica das hipóstases lógicas enquanto 'ideologias', enquanto puras quimeras de pensamento. A crítica do fetichismo que se encontra na sua obra da maturidade é antes uma crítica das hipóstases reais e da reificação efectiva de algo completamente abstracto: o valor. A lógica de Hegel constitui agora aos olhos de Marx a representação involuntariamente correcta de uma realidade que é falsa. Surge-lhe como consciência filosófica – mas somente filosófica – da vitória definitiva da mercadoria no interior da realidade social. Deduzir a realidade efectiva do capitalismo a partir do seu 'conceito' não é 'idealismo', mas sim um procedimento que corresponde à natureza do objecto da análise. Já na Crítica da filosofia do direito de Hegel, dizia Marx: 'Contudo, esta compreensão não consiste, como julga Hegel, em reconhecer por toda a parte as determinações do conceito lógico, mas sim em apreender a lógica específica do objecto específico'.21

Por outro lado, o segundo aspecto deve ser considerado uma mistificação presente no jovem Marx em nada aclarada por Marcuse, pelo contrário, antes por ele ainda mais mistificada. O problema desta apreensão ontológica do trabalho foi, todavia, bem formulada pelo próprio Marcuse: “Se, desse modo, a facticidade histórica mostra a total inversão de todos os contextos dados na determinação da essência humana, não será que essa determinação se torna sem sentido e consistência, simples abstração idealista, violação da realidade histórica?”22. A ela, todavia, Marcuse responde em tons claramente existenciais, pagando aí seu maior tributo a Heidegger na sua leitura de Marx: Marx descreve a facticidade em sua contradição com a verdadeira essência do homem e, com isso, fornece sua verdade na medida em que a concebe em relação com a verdadeira história do homem e descobre a necessidade de sua superação (Überwindung). (...) Para Marx, exatamente, a essência e a situação da história factual não mais são regiões ou níveis separados, independentes um do outro: a historicidade (geschichlichkeit) do homem está apreendida em sua determinação essencial.23

SC, I, p. 519, [FMH, p. 20]. JAPPE, Anselm. As Aventuras da Mercadoria – Para uma nova crítica do valor. Tradução: José Miranda Justo. Lisboa: Antígona, 2006, p. 178-179. 22 SC, I, p. 534, [FMH, p. 34]. 23 SC, I, p. 534-535, [FMH, p. 35]. 20 21

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Em suma, o problema já presente em Marx de uma oscilação entre uma caracterização histórica da exploração e alienação do trabalho e uma caracterização ontológica do trabalho como “atividade vital” formadora da “humanidade” do homem, ganha os contornos ainda mais mistificadores da ontologia fenomenológica heideggeriana. Portanto, o maior problema do jovem Marcuse é que ele retorna positivamente e não negativamente a Hegel, pelo atalho de Heidegger. Não se propõe de modo algum e nem sequer se sugere sutilmente ou de passagem, como esta base ontológica deve ser colocada frente à complexidade das categorias críticas de O Capital (que, de certo modo, não deixaram de, ainda que num plano muito mais determinado, reproduzir esta aporia do trabalho histórico-ontológico nos conceitos de “trabalho abstrato” e “trabalho útil”). Mas se Marx ainda oscila entre uma caracterização histórica e uma caracterização ontológica do trabalho, Marcuse se verga claramente na direção desta caracterização ontológica, obscurecendo e enfraquecendo a crítica do trabalho na sua determinação histórica, ou seja, nas formas assumidas por este nas sociedades capitalistas. Isso se demonstra claramente quando vem à tona a especificidade histórica e cultural da categoria do trabalho. Apesar da generalidade e da permanência essenciais do trabalho, na existência, apesar da determinação da existência como trabalho, de maneira alguma qualquer atividade humana é trabalho – talvez nem mesmo aquela atividade que por toda parte é chamada de trabalho e glorificada como tal24.

Neste ponto, a defesa do trabalho em sua caracterização ontológica o cinde plenamente de seu caráter histórico e negativo. A confusão torna-se ainda mais flagrante quando Marcuse tenta pensar no trabalho como categoria utilizada para caracterizar sociedades ditas “primitivas”: “Reiteradamente se sublinhou que entre os primitivos o trabalho tem um significado essencialmente diferente do seu significado entre os chamados povos cultos – inclusive que em relação a eles em determinado nível de desenvolvimento sequer se pode falar de trabalho em sentido estrito”. Mas ao invés de enfrentar uma reflexão sobre a “relatividade” da categoria do trabalho a partir deste dado antropológico, Marcuse prefere atribuir a estes povos que desconhecem a categoria social do trabalho uma existência “préhistórica” (mantendo intacto, portanto, o etnocentrismo filosófico de Hegel): “As populações primitivas não têm aquela relação com o tempo que torna histórica (geschichtlichen) a

24

SC, I, p. 584, [C&S, p. 35].

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existência e que é constitutiva também para o trabalho como práxis existencial. Sua existência é essencialmente pré-histórica...”25. Marcuse julgou ter dado uma fundamentação filosófica ao materialismo histórico pela via de uma ontologização da categoria do trabalho. Em termos metodológicos esta operação é realizada pelo intermédio do conceito de historicidade (geschichlichkeit). À primeira vista, este conceito heideggeriano é capaz de superar a cisão e a oscilação entre a crítica do trabalho nas sociedades capitalistas, o trabalho alienado e empobrecedor nos vários sentidos do termo, e da descoberta do trabalho como a experiência definidora da existência propriamente humana. Sendo a historicidade uma característica ontológica do Dasein (ser-aí) humano, o trabalho, ontologicamente fundado, pode ser a base para a crítica do trabalho alienado, deturpado, desviado pelo desenvolvimento histórico da sociedade capitalista. Theodor Adorno já se mostrava desde cedo consciente da armadilha conceitual na postulação ontológica de uma “historicidade”. Em 1931 ele já escrevia que: Na proposição neo-ontológica, o problema de reconciliação entre natureza e história somente em aparência é dissolvido na estrutura da “historicidade” (geschichlichkeit), porque com ela se reconhece certamente que há um fenômeno fundamental chamado história, mas a determinação ontológica desse fenômeno fundamental chamado história, ou a interpretação ontológica desse fenômeno fundamental chamado história se frustra, ao ser transfigurado em ontologia. Em Heidegger sucede de forma que a história, entendida como uma estrutura global do ser, significa o mesmo que sua própria ontologia. Antíteses exaustas como a de história e historicidade, nas quais nada se esconde senão o fato de que se atribui ao existente algumas qualidades do Ser observadas na existência, para transpô-las ao âmbito da ontologia e convertê-las assim em uma determinação ontológica, parecem contribuir para uma interpretação que, no fundo, só se repete uma vez mais. Este elemento tautológico não depende dos azares da forma linguística, antes vem necessariamente no interior da própria proposição ontológica, que se mantém firme em seu empenho ontológico mas não é capaz, por seu ponto de partida racional, de interpretar-se ontologicamente a si mesmo como o que ele é: a saber, algo produzido por e derivado da posição de partida da ratio idealista.26

O que, no que tange à questão do trabalho sobre a qual nos ocupamos, significa a impossibilidade de extrair da forma existente do trabalho uma ontologia “verdadeira” deste, a não ser pagando pesados tributos a um idealismo, muito longe de uma “Filosofia Concreta” tal como a pleiteada Marcuse.

25

SC, I, p. 582-583, [C&S, p. 33-34]. ADORNO, Theodor. Idea de Historia Natural [1931]. IN Actualidad de la filosofía. Tradução: Luis Arantegui Tamayo. Barcelona: Paidós, 1991, p.112-113 (traduzi).

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Em suma, Marcuse termina por ser um dos primeiros a desenvolver uma ontologia filosófica do trabalho27 a partir de Marx. Esta definição ontológica do trabalho, da qual o próprio Marx jamais pôde se desvencilhar plenamente, tornou-se, do ponto de vista de uma nova crítica do valor e do trabalho, um obstáculo intransponível para a crítica das contradições da sociedade que vive socializada pelo valor e pelo trabalho abstrato. Para a nova crítica do valor, grosso modo, o conceito ontológico do trabalho não pode mais conviver pacificamente com a crítica do trabalho abstrato e historicamente determinado. Robert Kurz, refletindo a propósito dos Grundrisse, colocou de modo claro este problema: Assim, [nos Grundrisse, JN] tanto a abstracção como o seu conteúdo social aparece, por um lado, como positiva, como "progresso", como uma geral "actividade criadora de riqueza", como desenvolvimento de uma diversidade; e, por outro lado, como negativa, como "indiferença" relativamente ao conteúdo. Do mesmo modo, o "trabalho" aparece, por um lado, como uma abstracção "racional", como mera designação genérica de um "rico desenvolvimento concreto" de actividades; por outro lado, Marx não tarda a corrigir-se, chamando a atenção para que essa abstracção não é "apenas o resultado mental de uma actividade concreta", mas a correspondência a uma "forma de sociedade" em que essa abstracção se torna real e assim definidora da acção. Sobretudo, porém, Marx por um lado mantém-se fiel à concepção de que a abstracção "trabalho" é uma ideia "antiquíssima" e "válida para todas as épocas"; por outro lado, porém, esclarece em simultâneo que se trata de "uma categoria tão moderna" como "as condições que produzem essa simples abstracção", de modo que essa categoria acaba por ser o "produto de determinadas condições históricas", nomeadamente das modernas, possuindo "validade plena apenas para e no interior dessas condições". Esta argumentação aporética apenas pode ser resolvida se a categoria "trabalho" for definida como abstracção real e assim como histórica, moderna, capitalista e, por isso mesmo, a ontologia do trabalho for de todo abandonada.28 (2006, p. 8, grifei)

2. A dialética marxiana do trabalho revisitada (1941) Após sua entrada e fértil cooperação nos esforços da Teoria Crítica da Sociedade, radicada nos EUA, e mais tarde nominada “Escola de Frankfurt” e vacinado pela crítica adorniana contra a incapacidade do conceito de historicidade de encarar a história concreta (como visto), Marcuse reconstrói as coordenadas do problema sobre o qual nos ocupamos. Desfeitas as coordenadas heideggerianas de uma análise da “historicidade”, também o Esta tarefa de construção ontológica do ser social em cujo interior o trabalho ocupa uma papel central foi depois continuada até um extremo refinamento na Ontologia do Ser Social de Georg Lukács (Cf. LUKÀCS, Georg. LUKÁCS, Georg. Ontología del ser social – El trabajo[1971]. Tradução: Miguel Veddas. Buenos Aires: Herramienta, 2000). É importante sublinhar o papel de “pivô” exercido pela descoberta dos Manuscritos nos anos 30 para a catastrófica formulação lukácsiana de uma “ontologia marxista”. 28 KURZ, Robert. A substância do Capital. O trabalho abstracto como metafísica real social e o limite interno absoluto da valorização. IN Exit!, n. 1, 2004. Disponível em <http://obeco.planetaclix.pt>, p. 8 (grifei) 27

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pêndulo deixa de vergar na direção de uma ontologia do trabalho para levar em consideração central seu caráter histórico e determinado. Em Razão e Revolução (1941) seu segundo grande livro sobre Hegel, Marcuse vai retomar o fio de Ariadne que une Hegel e Marx: a análise do processo de trabalho. Todavia, retomará este fio em uma chave bastante diferente de sua primeira tentativa. Em primeiro lugar, Marcuse reafirma a importância vital da discussão: Marx enfocava sua teoria no processo do trabalho e, assim fazendo, conservava e consumava o princípio da dialética hegeliana de que a estrutura do conteúdo (da realidade) determina a estrutura da teoria. Ele fizera dos fundamentos da sociedade civil os fundamentos da teoria da sociedade civil. Esta sociedade funciona sobre o princípio do trabalho universal sendo o processo de trabalho decisivo para a totalidade da existência humana (...) Todos os homens são livres, mas os mecanismos do processo de trabalho governam as liberdades deles todos. O estudo do processo de trabalho é, em última análise, absolutamente indispensável para a descoberta das condições de realização da razão e da liberdade no sentido real. Uma análise crítica daquele processo produz, então, o tema último da filosofia. 29

Como já mencionamos acima, na sua ontologia do trabalho de fundamento heideggeriano, Marcuse havia deixado de lado uma avaliação comparativa dos textos recémdescobertos de Marx com a problemática da crítica da Economia Política avançada. Em Razão e Revolução Marcuse começa precisamente por este fio condutor que une os Manuscritos a O Capital, que se encontra no problema da “análise do processo de trabalho”. Desta feita, o resultado é uma redescoberta da crítica radical do trabalho em Marx num patamar bastante distinto daquele da ontologia. E essa descoberta reverbera o problema da profunda “relatividade” da categoria do trabalho que o horizonte ontológico heideggeriano não permitiu que Marcuse enxergasse com clareza. Relendo os vários fragmentos de textos de Marx nos quais este conclui pelo abolição do trabalho como tal e não em sua libertação de uma específica forma desviada ou deturpada de trabalho, Marcuse se indaga: “Estas surpreendentes formulações dos textos mais antigos de Marx contêm, todas elas, a palavra Aufhebung, do vocabulário hegeliano, de modo que abolição do trabalho significa que um conteúdo é restaurado na sua forma verdadeira”. Seria, portanto, ainda possível uma recuperação da ontologia do trabalho contra MARCUSE, Herbert. Reason and Revolution. 2. ed. London: Routledge and Kegan Paul, 1969, p. 272-273, a partir daqui referido como ReR, seguido do número de páginas. [trad. MARCUSE, Herbert. Razão e Revolução. 5. ed. Tradução: Marília Barroso. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005, p 236-237, a partir daqui, referido como RaR, seguido do número da página].

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sua forma historicamente deturpada pelo capitalismo? Marcuse não mais encara esse caminho sem mais. Para ele: “Marx, porém, prefigura um modo futuro de trabalho tão diferente do modo predominante, que ele hesita em usar a mesma palavra, „trabalho‟, para designar o processo material da sociedade capitalista e o da sociedade comunista” 30. Aqui é onde Marcuse se aproxima do cerne de um problema que ganhará seus contornos precisos apenas muitos anos depois, apenas no final dos anos 70. Mas seria, como sugere Marcuse, apenas um imbróglio terminológico no qual Marx se enredara? Parece que ele se mostra consciente de que é bem mais do que isso: “Ele [Marx, JN] usa o termo 'trabalho' para se referir àquilo que o capitalismo na verdade entende como sendo trabalho, em última análise, ou seja, aquela atividade que cria o mais-valor na produção de mercadorias, ou que 'produz capital'. Outras espécies de atividade não são 'trabalho produtivo', e portanto não são trabalho no sentido próprio”. Enfim, “O trabalho significa, pois, que se nega ao indivíduo que trabalha o desenvolvimento livre e universal, sendo claro que, neste caso, a libertação do indivíduo é, ao mesmo tempo, a negação do trabalho” 31. Esta última frase poderia ser recortada e inserida, ao que parece, no interior do Manifesto contra o trabalho do Grupo Krisis. Algo também digno de nota é que, a partir desta constatação, Marcuse percebe que não é a universalização do trabalho que terminará em emancipação, antes é na realização das “aptidões e da felicidade de indivíduos associados”. Ou seja, “podemos ver que a teoria marxista contradiz plenamente a concepção básica da filosofia idealista. A idéia de razão foi suplantada pela de felicidade” 32. Essa última conclusão será de importância vital na reinterpretação de Freud que Marcuse construirá anos depois na sua obra mais célebre. Voltaremos a isso na seção seguinte deste ensaio. Marcuse, entretanto, não abandona toda consideração ontológica sobre o trabalho aqui. Apoiado em Marx, não critica neste a caracterização do “trabalho em geral” ou “trabalho útil”, antes critica verdadeiramente apenas sua “forma deturpada” nas sociedades capitalistas, embora neste segundo momento reconheça a profundidade da relatividade dessa “deturpação” histórica do trabalho no capitalismo. Assim, Marcuse atinge o ponto marxiano do problema, chega à aporia marxiana do trabalho histórico, o trabalho alienado no jovem Marx e o trabalho abstrato em O Capital, contraposto ao trabalho útil, criador de riquezas e valores de uso, etc. Portanto, Marcuse atinge em Razão e Revolução o limite propriamente ReR, p. 293, [RaR, p. 253] (grifei). Idem, Ibidem. 32 Idem, Ibidem. 30 31

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marxiano do problema do trabalho tendo permanecido, em sua juventude heideggeriana, muito aquém deste. Quando é capaz de colocar o problema do trabalho nas sociedades capitalistas realmente em suas próprias e devidas bases Marcuse chega, não casualmente, ao problema do valor, que fora antes por ele pouco explorado: A análise de Marx mostrou-lhe que a lei do valor era a 'forma da Razão' geral no sistema social existente. A lei do valor fora a forma pela qual o interesse comum (a perpetuação da sociedade) se afirmara através da liberdade individual. Embora se manifeste no mercado, a lei revelou-se originária no processo de produção (o tempo de trabalho socialmente necessário que está nas suas raízes é o tempo de produção).33

Entretanto, tanto quanto o próprio Marx, Marcuse permanece enredado nesta oscilação entre trabalho útil (ou concreto) e o trabalho abstrato: “Efetivamente, a apresentação de Marx da produção do mais-valor está intrinsecamente ligada à sua análise do duplo caráter do trabalho, e deve ser interpretada à luz desse fenômeno” 34, mas sem colocá-lo em questão. Embora não avance para além do limite marxiano do problema (limite este pouco explorado pelos próprios marxismos35) o maior mérito de Marcuse é perceber neste limite o nó górdio das maiores questões, inclusive teóricas, que cercam o problema da emancipação nas sociedades capitalistas. “O processo de trabalho”, escreveu ele, ...que se revelou fundamental na análise marxista do capitalismo e da sua gênese, é o fundo sobre o qual os vários ramos da teoria e da prática operam na sociedade capitalista. Uma compreensão do processo de trabalho, por isso, é ao mesmo tempo uma compreensão da origem da separação entre a teoria e a prática, e do elemento que estabelece sua interconexão.36

Marcuse antecipa aqui o nexo entre o conceito marxista de práxis e o de trabalho, mais tarde também reclamado por Adorno, em suas Notas Marginais sobre Teoria e Práxis (1969)37. No equilíbrio oscilante atingido por Marcuse nesta obra, o pêndulo parece vergar ligeiramente para o lado de uma crítica do trabalho tout court, afinal: a “meta final desta nova ReR, p. 304, [RaR, p. 262]. ReR, p. 307, [RaR, p. 264]. 35 Ver a propósito DUARTE, Claudio R. A superação do trabalho em Marx. IN Sinal de Menos,n.3, disponível em http://sinaldemenos.org acessado em <maio:2011>. 36 ReR, p. 320, [RaR, p. 274]. 37 ADORNO, Theodor. Palavras e Sinais – Modelos Críticos 2 [1969]. Tradução: Maria Helena Ruschel. Petrópolis: Vozes, 1995. 33

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prática social foi formulada: a abolição do trabalho, o emprego de meios socializados de produção para o livre desenvolvimento de todos os indivíduos”38. 3. Trabalho e princípio de desempenho (1955) Em Eros e Civilização, a obra mais lida e comentada de Marcuse, a questão do trabalho sofre uma nova mudança de coordenadas, mas nesta mudança não se avança para uma diferenciação precisa e crítica entre o “trabalho” e o “emprego de meios socializados de produção para o livre desenvolvimento de todos os indivíduos”, ou seja, não se avança a partir do ponto onde a questão havia ficado em aberto em Razão e Revolução. No seu recurso à psicanálise, Marcuse parece deixar em suspenso o encaminhamento dado até então à questão para enfrentá-la sobre outro prisma inteiramente diverso: o da teoria das pulsões de Freud. A primeira razão para esta mudança de enfoque é que Eros e Civilização foi publicado pela primeira vez no auge do macarthismo e um tratamento direto de textos marxianos e marxistas seria impeditivo para Marcuse tendo em vista os “compromissos políticos implícitos”39 que ele respeitava, a exemplo de seus companheiros do Instituto de Pesquisas Sociais. Outra razão para essa mudança de coordenadas era a guinada psico-antropológica que todos os “frankfurtianos” deram durante e no pós-guerra. Defendendo que o capitalismo havia entrado em uma fase de “primado da política” 40 e que, por conseguinte, não poderia mais ser criticado a partir de seu desenvolvimento econômico cego desvendado pela crítica da Economia Política de Marx, mas por outras fontes, antropo-filosóficas (como a Dialética do Esclarecimento) ou psicossociais (como em Eros e Civilização), os “frankfurtianos” também chegaram apenas superficialmente e de passagem à questão fundamental do trabalho. Nos primeiros capítulos de Eros e Civilização Marcuse expõe a teoria das pulsões, defendendo ao final da exposição que Freud construiu esta teoria a partir de premissas ahistóricas. Estas premissas partiam, segundo Marcuse, de uma concepção reificada da contradição entre o princípio de prazer e o princípio de realidade, vendo o resultado da repressão (a relação de “atrito” entre estes dois princípios pulsionais do psiquismo) como um dado biológico. Nas palavras de Marcuse:

ReR, p. 322, [RaR, p. 275-276]. Cf. ŽIŽEK, Slavoj. Universal Exception. London/New York: Continuum, 2007, p. 94 e ss. 40 Voltaremos a isso. 38 39

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Se Freud justifica a organização repressiva dos instintos pelo caráter irreconciliável do conflito entre o princípio de prazer e o princípio de realidade, expressa também o fato histórico de que a civilização progrediu como dominação generalizada. (...) Precisamente porque toda a civilização tem sido uma dominação organizada é que o desenvolvimento histórico adquire a dignidade e a necessidade de um desenvolvimento biológico universal. O caráter 'não-histórico' dos conceitos freudianos contém, pois, o seu oposto: sua substância histórica deve ser retomada, não somando-se-lhe alguns fatos sociológicos (como fazem as escolas 'culturais' neofreudianas), mas revelando seu próprio conteúdo.41

Ou seja, “des-reificar” ou “des-coisificar” Freud significava, para Marcuse, colocar na história sua teoria das pulsões, mas não de modo exterior e a posteriori, antes, fazendo derivar das “noções e proposições da teoria de Freud, nesta implícitas tão-só numa forma coisificada, em que os processos históricos se apresentam como processos naturais (biológicos)”42 conceitos que põem a história no interior mesmo desta teoria. São duas as “extrapolações” que Marcuse promove na teoria de Freud de modo a desreificá-la: o conceito de princípio de desempenho (performance principle) e o conceito de mais-repressão. Grosso modo, princípio de desempenho é o princípio de realidade historicamente determinado da sociedade capitalista. Antes de chegar, entretanto, ao princípio de desempenho, é preciso ter por certo o que se entende por princípio de realidade. Nas palavras de Marcuse: no ...princípio de realidade está subentendido o fato fundamental da Ananke ou carência (Lebensnot), que significa que a luta pela existência tem lugar num mundo demasiado pobre para a satisfação das necessidades humanas sem restrição, renúncia e dilação constantes. Por outras palavras, qualquer satisfação que seja possível necessita de trabalho, arranjos e iniciativas mais ou menos penosos para a obtenção dos meios de satisfação das necessidades. Enquanto o trabalho dura, o que, praticamente, ocupa toda a existência do indivíduo amadurecido, o prazer é suspenso e o sofrimento físico prevalece. E como as pulsões básicas lutam pelo predomínio do prazer e a ausência de dor, o princípio do prazer é incompatível com a realidade, e as pulsões têm de sofrer uma arregimentação repressiva.43

Este argumento, assim posto, é reificado, garante Marcuse, pois nele não aparece a história e a determinação fatual da carência socialmente existente. Em seus próprios termos,

MARCUSE, Herbert. Triebstruktur und Gesellschaft [1955]. IN Schriften. Band 5. Berlin: Zu Klampen, 2004, p. 37, a partir daqui referido como TG, seguido do número da página. [trad. Eros e Civilização. 8. ed. Tradução: Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC, 1999, p. 50-51. A partir daqui referido como EC, seguido do número da página]. 42 TG, p. 37-38, [EC, p. 51] (grifei). 43 TG, p. 38, [EC, p. 51] (grifos do autor). 41

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...esse argumento, que se destaca na metapsicologia de Freud, é falacioso na medida em que se aplica ao fato concreto da carência, que na realidade é a consequência de uma organização específica da carência e de uma igualmente específica atitude existencial, imposta por essa organização. A carência, ou escassez, predominante tem sido organizada de modo tal, através da civilização (embora de modos muito diferentes), que não tem sido distribuída coletivamente de acordo com as necessidades individuais, nem a obtenção de bens para a satisfação de necessidades tem sido organizada com o objetivo de melhor satisfazer às crescentes necessidades dos indivíduos. Pelo contrário, a distribuição da escassez, assim como o esforço para superá-la, o modo do trabalho, foram impostos aos indivíduos – primeiro por mera violência, subsequentemente por uma utilização mais racional do poder”.44

Em suma, os “vários modos de dominação (do homem e da natureza) resultam em várias formas históricas do princípio de realidade”. O exemplo que dá Marcuse é elucidativo de nossa questão, e por isso, é mister repassá-lo: Por exemplo, uma sociedade em que todos os membros trabalham normalmente pela vida requer modos de repressão diferentes dos de uma sociedade em que o trabalho é o terreno exclusivo de um determinado grupo. Do mesmo modo, a repressão será diferente em escopo e grau, segundo a produção social seja orientada no sentido do consumo individual ou no lucro; segundo prevaleça uma economia de mercado ou uma economia planejada; segundo vigore a propriedade privada ou a coletiva.45

Não há, portanto, um princípio de realidade biologicamente dado, cujas alterações históricas são somente quantitativas e superficiais e sua estrutura última mais ou menos imutável, antes, há princípios de realidade historicamente situados. Por conseguinte, o princípio de desempenho, tal como o denomina Marcuse, é o princípio de realidade de uma sociedade “antagônica e aquisitiva” (leia-se das sociedades capitalistas, pois trata-se de uma paráfrase a la Gramsci). Ou, para ser mais preciso: no princípio de desempenho ...a sociedade é estratificada de acordo com os desempenhos econômicos concorrentes dos seus membros (...) O princípio de desempenho, que é o de uma sociedade aquisitiva e antagônica no processo de constante expansão, pressupõe um longo desenvolvimento durante o qual a dominação foi crescentemente racionalizada: o controle sobre o trabalho social desempenhado reproduz agora a sociedade numa escala ampliada e sob condições progressivas.46

E no decorrer desta evolução a dominação se separa dos interesses dos indivíduos e passa a reproduzir artificialmente as penas e tortuosidades do trabalho alienado: “Sob o TG, p. 38-39, [EC, p. 51-52]. TG, p. 39, [EC, p. 52]. 46 TG p. 45-46, [EC, p. 58]. 44 45

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domínio do princípio de desempenho, o corpo e a mente passam a ser instrumentos de trabalho alienado; só podem funcionar como tais instrumentos se renunciam à liberdade do sujeito-objeto libidinal que o organismo humano primariamente é e deseja” 47. Portanto, decorre disso também o conceito marcuseano de mais-repressão: trata-se de “controles adicionais acima e além dos indispensáveis à associação civilizada humana” 48. Já se pode detrair pelo que foi sumariamente exposto até aqui as linhas gerais onde a questão do trabalho se encontra. No conflito pulsional de Eros (a pulsão de vida) e Thânatos (a pulsão de morte) e no nível de repressão e mais-repressão de um princípio de realidade dado em uma sociedade capitalista, o mundo do trabalho torna-se o centro nevrálgico da discussão. Como foi constatado em uma dissertação recente: “Sob este aspecto, Marcuse observa que, na ordem social do capitalismo, o principal articulador deste conflito é o trabalho. Aqui o autor opera em um terreno controverso ao da psicanálise, que pouco trata do assunto”49. Mais do que não tratar do assunto, segundo Marcuse “talvez em nenhuma outra área a Psicanálise tenha tão consistentemente sucumbido à ideologia oficial das bênçãos da “produtividade”50. A relação entre satisfação individual e trabalho encontra uma peculiar construção no pensamento de Freud. Este parecia considerar possível esta relação feliz quando “o trabalho cotidiano de ganhar a vida” puder ser “escolhido por livre opção” 51, mas como constata Marcuse, e não só ele, isso é um “raro privilégio”: O trabalho (Arbeit) que criou e ampliou a base material da civilização foi principalmente labuta, trabalho alienado, penoso e desagradável – e ainda é. O desempenho de tal trabalho dificilmente gratifica as necessidades e forças brutais; se o trabalho alienado tem algo a ver com Eros, deve ser de um modo bastante indireto e com um Eros consideravelmente sublimado e debilitado.52

Em Eros e Civilização, o trabalho abstrato, o dispêndio de energia humana, de músculos e cérebro em que se abstrai do conteúdo e das finalidades deste dispêndio é criticado em sua característica intrinsecamente penosa e árdua e, por conseguinte,

TG, p. 47, [EC, p. 59]. TG, p. 40, [EC, p. 53]. 49 CARNEIRO, Silvio R. O Discurso Ontológico e a Teoria Crítica de Herbert Marcuse - Gênese da Filosofia da Psicanálise (1927- 1955). São Paulo, 248 p. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, 2008, p. 213. 50 TG, p. 77, [EC, p. 88]. 51 Idem, ibidem. 52 Idem, ibidem. 47

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repressiva53. Mas tal crítica se apóia no caráter “mais-repressivo” do princípio de desempenho, ou seja, no prolongamento social artificial na necessidade do trabalho. Por isso Marcuse contrapõe – retomando um tópico que lhe havia preocupado nos anos 30 – esta forma de trabalho ao jogo, o trabalho comparado à atividade lúdica do jogar. No texto de 1933, no contexto de sua “ontologia do trabalho”, Marcuse vê o jogo (Spiel) como submetido temporalmente (se joga nos intervalos deixados pela atividade de trabalho, e por isso o jogo é sempre esporádico, enquanto que o trabalho é contínuo) e subjetivamente (no jogo o sujeito se detém diante de si mesmo, enquanto que no trabalho o homem se submete à lógica da “coisa” (Sache) do objeto do trabalho) ao trabalho. Portanto, para a ontologia do trabalho, o jogo se encontra subsumido ao trabalho e carece dele para ter qualquer sentido para a “existência humana”. Em Eros e Civilização, pelo contrário, o jogo (play) “está inteiramente sujeito ao princípio do prazer” e esse dar-se a si mesmo do jogo, é visto agora sob o prisma da figura de Narciso e de seu “auto-erotismo sem objeto” que “gratifica aquelas pulsões componentes que já estão dirigidos para o mundo objetivo”54. O trabalho, por sua vez, é a atividade de auto-preservação por excelência, portanto, onde a atividade humana sempre está voltada para um objeto que lhe é exterior e estranho e por isso, ausente de qualquer lógica de gratificação instintiva. Neste ponto, é importante anotar a mudança de enfoque na comparação marcuseana de trabalho e jogo: se a “ontologia do trabalho” avalia o jogo submetido ao trabalho, na obra de 1955 o jogo é que é basilar do ponto de vista da gratificação instintiva.55 Embora deixe evidente, por intermédio de seu recurso à psicanálise, que numa sociedade emancipada do princípio mais-repressivo de desempenho o trabalho deve se subordinar completamente à “livre evolução das potencialidades do homem e da natureza”, Marcuse não pergunta seriamente se se deve ainda chamar de “trabalho” uma atividade na qual se dá uma “livre evolução das potencialidades do homem e da natureza”. Antes, seu problema segue sendo “a mudança no caráter do trabalho, em virtude do qual este seria TG, p. 45-46, [EC, p. 58]. TG, p. 184, [EC, p.187]. 55 Nesta altura seria importante perguntar se Marcuse não substitui em Eros e Civilização a ontologia do trabalho por uma ontologia da base instintiva de Eros (e, por isso, apenas inverte o primado ontológico do trabalho sobre o jogo). Embora este problema fuja ao escopo deste ensaio, é possível reafirmar o caráter de “enviesamento” da questão do trabalho nesta obra e que, portanto, sua maior dificuldade é criticar o trabalho a partir de um material alheio aos conceitos da crítica da economia política marxiana. Dito isto, pode tornar-se mais compreensível como uma crítica do trabalho via teoria freudiana das pulsões tinha que se escorar uma hora ou outra em uma “ontologia das bases instintivas” à revelia do autor. Quem me chamou a atenção para este ponto foi Claudio R. Duarte. 53

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assimilado ao livre jogo das faculdades humanas. Quais as precondições pulsionais para tal transformação?”56. Ao que Marcuse respondeu: ...se o trabalho for acompanhado por uma reativação do erotismo polimórfico prégenital, tenderá a tornar-se gratificador em si mesmo, sem perder o seu conteúdo de trabalho. Ora, é precisamente a reativação do erotismo polimórfico que se manifesta como a consequência da conquista da escassez e alienação. As condições sociais alteradas criariam, portanto, uma base pulsional para a transformação do trabalho em atividade lúdica.57

Mostra-se de modo bastante claro que o que Marcuse buscou foi refletir acerca de uma religação da atividade humana com seus objetos e com os próprios agentes, ambos necessariamente cindidos e extraviados no trabalho abstrato próprio à sociedade produtora de mercadorias. O que permanece impensado por Marcuse e, de resto, pelos autores marxistas seus contemporâneos do campo “ocidental”, é como o trabalho abstrato nada mais é do que a abstração do trabalho posta em funcionamento e que, portanto, mesmo em Marx, a abstração do trabalho havia sido “rasgada em duas” na formulação de um “duplo caráter do trabalho”58. É neste sentido que Marcuse permanece ainda, mesmo que sutilmente, preso a uma certa formulação ontológica do trabalho, quando, por exemplo, conforme já citado, escreve que “se o trabalho for acompanhado por uma reativação do erotismo polimórfico pré-genital, tenderá a tornar-se gratificador em si mesmo, sem perder o seu conteúdo de trabalho”59. Ora, Marcuse havia escrito em sua fase de “ontologia do trabalho” o seguinte: “O trabalho aqui não é determinado pelo modo de seus objetos, não mediante sua finalidade, conteúdo, resultado, etc., mas mediante aquilo que acontece com a existência (Dasein) humana ela própria no trabalho”60. É evidente o caráter ainda aporético desta permanência do trabalho como categoria utilizada em uma crítica radical de sua própria existência histórica. Por “conteúdo de trabalho” Marcuse parece entender apenas o “metabolismo” mantido entre homem e natureza, definição, todavia, por demais vaga para se identificar por ela uma específica atividade humana historicamente situada.

TG, p. 183, [EC, p.186]. TG, p.184, [EC, p.187]. 58 Cf. KURZ, Robert. O pós-marxismo e o fetiche do trabalho. Sobre a contradição histórica na teoria de Marx. IN Krisis, n. 15, 1995. Disponível em <http://obeco.planetaclix.pt>. 59 TG, p. 184, [EC, p.187]. 60 SC, I, p. 562, [C&S, p. 13]. (grifei) 56 57

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Seria preciso retornar ao estado do problema deixado aberto em Razão e Revolução, como vimos, impossível a partir dos pressupostos de Eros e Civilização. Caso Marcuse pudesse retornar naquele ponto do fio de sua meada ele poderia voltar sua crítica psicanalítica (com a psicanálise “des-reificada” dialeticamente) contra a ideologia marxista da produtividade alicerçada em teorias ontológicas do trabalho mesmo onde esta ideologia chegou a turvar a análise do próprio Marx. Um passo (bastante tímido) nessa direção foi dado por Marcuse em O Marxismo Soviético (1958), como veremos na seção seguinte. Em suma, o viés psicanalítico se não avançou diretamente sobre a “aporia” do trabalho histórico versus trabalho ontológico, ajudou bastante a vergar o pêndulo na direção do primeiro, defendendo a obsolescência psíquica da renúncia e do fardo penoso que o trabalho alienado necessariamente implica. Para dar apenas um exemplo da atualidade tardia do conceito de princípio de desempenho de Eros e Civilização basta-nos a referência à obra recente de Sadi Del Rosso, Mais Trabalho! A intensificação do labor na sociedade contemporânea, onde se lê, antes da exposição de muitos dados empíricos que: A sociedade contemporânea é sacudida por uma onda de exigências cada vez maiores sobre os assalariados por mais trabalho e mais resultados. A própria revolução tecnológica – em que nos encontramos neste exato momento – contribui grandemente para que os indivíduos sejam cada vez mais sugados em suas capacidades de produzir mais trabalhos.61

4. Da crítica à moralidade soviética (1958) à crítica ao reino marxiano da necessidade (1969) Neste que já foi considerado seu livro menos apaixonado e talvez o pior livro, Marcuse conclui sua participação nos “estudos russos” feito em universidades norte-americanas sobre a União Soviética. É, de fato, um livro sui generis em sua obra: busca uma distância e neutralidade discutível em sua análise dos dados, não aprofunda em questões teóricas, por vezes se assemelha mais aos relatórios sobre o comunismo europeu nos quais Marcuse trabalhou durante suas atividades para a inteligência do governo norte-americano. A partir destas singularidades deduz-se que a obra pouco contribuiu para a nossa questão: apenas nos últimos capítulos, onde Marcuse analisa a “moralidade comunista”. Em suma, para ele: “a 61

DEL ROSSO, Sadi. Mais Trabalho! - A intensificação do labor na sociedade contemporânea. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 45.

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nova moral [do comunismo, JN] era mais a do trabalho coletivo que a da comunidade de indivíduos livres. A produtividade, o “desenvolvimento das forças produtivas” era então – como ainda o é – o valor ético que governa tanto as relações pessoais como as sociais”62. Marcuse assevera, neste particular, o quanto esta elevação da produtividade a valor ético maior era dissociada da análise de Marx: Marx, que sustentou que havia uma correlação necessária entre produtividade crescente e empobrecimento, sob o Capitalismo, expressou o caráter repressivo desta noção de produtividade, reservando o termo “produtivo” apenas para o trabalho que criasse valor excedente, e designando todas as outras modalidades de trabalho intelectual criativo como 'improdutivos'.63

Tendo certamente em mente a construção teórica de Eros e Civilização, Marcuse constatará uma mesma dialética destrutiva de Eros e Thanatos se formando também no mundo soviético, ou seja, quanto mais o trabalho social se torna efetivo e abarcador, mais sua imposição artificial é necessária. A ética soviética testifica o conflito existente entre a crescente produtividade e a crescente riqueza, por um lado e, por outro lado, a necessidade social de trabalho árduo e renúncia. Quanto maior a possibilidade de se usarem a produtividade e a riqueza para satisfazer as necessidades individuais e para concretizar a liberdade individual, tanto maior a necessidade de minimizar-se a contradição sem que se enfraqueça o poder dinâmico que impulsiona o sistema. Na medida em que a industrialização progride e a competição econômica com o Ocidente se torna imperativa, o terror vai ficando cada vez mais não-lucrativo e não-produtivo.64

O trabalho social que o marxismo soviético tanto exalta, diz-nos Marcuse, é apenas o trabalho abstrato, aquele mesmo que Marx julgava ter sido o primeiro a compreender e o mais enfático na defesa de sua abolição. “Resulta assim que o crescimento metódico da produtividade humana é apenas um crescimento da potencialidade de trabalho „abstrata‟, cujo valor se mede em termos da necessidade social calculada” 65. Deste modo, a

MARCUSE, Herbert. Die Gesellschaftslehre des Sowjetischen Marxismus [1958]. IN Schriften. Band 6. Berlin: Zu Klampen, 2004, p. 231, a partir daqui referido como GSM, seguido do número da página. [trad. MARCUSE, Herbert. O Marxismo Soviético – Uma análise crítica. Tradução: Carlos Weber. Rio de Janeiro: Saga, 1969, p. 223-224, a partir daqui referido como MS, seguido do número da página]. 63 GSM, p.232, [MS, p.224]. 64 GSM, p. 233-234, [MS, p.225-226]. 65 GSM, p. 235, [MS, p.227-229]. 62

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...transferência do trabalho desagradável, mas socialmente necessário, do organismo humano para a máquina deverá, assim, processar-se rapidamente; mesmo porque tal transferência é uma das mais importantes armas na competição com o mundo ocidental. Naturalmente, a poupança de energia humana assim obtida é largamente invalidada pelo uso repressivo que se fez da tecnologia: extensão do dia de trabalho, métodos acelerados, produção em desperdício, etc.66

Assim, a racionalidade técnica se funde com a racionalidade política, tópico em que se baseará Marcuse em sua crítica do Welfare State em O Homem Unidimensional (1964). As necessidades de uma racionalização e intensificação da industrialização que foi requerida pelo “sistema soviético” e sua competição com o ocidente levou a uma paradoxal situação: “um alto grau de similaridade entre os principais valores da ética „burguesa‟ e da soviética” sendo que tal similaridade se mostra tanto na moralidade sexual quanto na “moralidade do trabalho”67. Em suma, Marcuse permanece realizando o movimento por ele descrito desde o início do livro como uma “crítica imanente” 68, ou seja, ele mostra o quanto a realidade do sistema de estado soviético se distanciava do pensamento de Marx, fazendo com que este termine por parecer apenas uma “pura especulação”69 e sobretudo em mostrar que a racionalização das necessidades e do trabalho social era um pressuposto da instalação de uma liberdade individual maior, mas este objetivo aparecia “invertido” na ética soviética. Nesta, as necessidades da produtividade do trabalho social (e do trabalho “abstrato”, portanto) se tornam um fim-em-si e um valor maior da conduta individual e dos grupos que são coagidos constantemente a cumpri-los. Marcuse não cogita, entretanto, se algo desta inversão, deste quiproquó, já não estava no interior mesmo do pensamento de Marx. *** É trilhando um pedaço deste caminho que vai a reflexão de Marcuse nos anos 60. Nas conferências e nos debates com os estudantes europeus publicadas sob o título de O Fim da Utopia, o filósofo berlinense ensaia os primeiros delineamentos de uma crítica do conceito de “reino da necessidade” de Marx. É por sobre este “reino da necessidade” (reino do trabalho útil e concreto), garante Marx, que se ergue um reino da liberdade, onde a atividade humana

GSM, p. 237-238, [MS, p.229-230]. GSM, p. 240, [MS, p.232]. 68 GSM, p. 23, [MS, p.13]. 69 GSM, p.239, [MS, p.231]. 66 67

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se daria como uma atividade livre envolvendo as faculdade e potencialidades humanas e da natureza. Mas, dizia Marcuse: Eu acredito que até mesmo Marx se manteve excessivamente ligado ao conceito de continuidade do progresso, que inclusive sua idéia do socialismo ainda não representa, ou talvez não represente mais, aquela negação determinada do capitalismo que deveria representar na realidade. (...) Essa hipótese é confirmada, a meu ver, do modo mais claro, pela famosa distinção entre reino da liberdade e reino da necessidade. O fato de que o reino da liberdade possa ser pensado e possa surgir tão-somente além do reino da necessidade significa que esse último destina-se a permanecer como tal, compreendida a alienação do trabalho. Portanto, como diz Marx, não importa qual seja o grau de racionalização e mesmo de redução do trabalho, este último sempre se manterá como uma atividade realizada no reino da necessidade e para o reino da necessidade, e, assim, como uma atividade não livre. Acredito que uma das novas possibilidades nas quais se expressa a diferença qualitativa entre uma sociedade livre e uma sociedade não livre consiste precisamente na busca do reino da liberdade já no interior do trabalho e não além dele.70

Embora com a expressão “já no interior do trabalho” Marcuse pareça ter sido ainda reverente à categoria do trabalho, o movimento do fragmento como um todo mostra o contrário: com uma violação da dissociação entre reino da necessidade (e do trabalho útil e concreto) e o reino da liberdade (do lúdico, da arte e do “trabalho intelectual”) presente em Marx, Marcuse esboça os primeiros lineamentos desta emancipação colocada desta vez para dentro da esfera que Marx julgava “blindada” e refém eterna das “necessidades” sociais. Nesta altura, a nosso ver, Marcuse tateia pela primeira vez o pantanoso terreno de uma possível crítica radical do trabalho para além do peso de sua caracterização ontológica que ainda exercia uma significativa força em sua reflexão, vez que ele não havia notado a aporia marxiana do trabalho até então, não obstante suas várias tentativas ainda inconscientes de livrar-se dela, como vimos. Em resposta a uma pergunta que lhe foi dirigida durante os debates sobre sua conferência, Marcuse responderá: A relação do homem com a natureza já se tornou diversa e o reino da necessidade pode também se tornar um reino diverso se, graças ao aperfeiçoamento da técnica, o trabalho alienado for eliminado do mundo e uma grande parte do trabalho socialmente necessário se transformar em experimentação técnica. Tão-somente nesse momento será possível eliminar efetivamente o reino da necessidade e nós talvez possamos ver o desenvolvimento, na própria esfera do trabalho, daquela livre existência humana que [trad.MARCUSE, Herbert. O Fim da Utopia [1967]. Tradução: Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969, p 14].

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Marx e Engels ainda eram obrigados a conceber numa esfera situada além do trabalho. 71

Ou seja, para além da divisão marxiana de liberdade/necessidade como um reino da atividade livre e criativa de um lado, e um reino de trabalho socialmente necessário, de outro, Marcuse refletia acerca do desenvolvimento tecnológico que tornou possível reconectar estes “reinos” distintos e exteriores entre si. Ainda assim ele interpreta esta re-associação como um penetrar desta atividade humana livre na “esfera do trabalho”, chegando, portanto, a um passo a mais de pôr o problema seguinte: a penetração de um tipo de atividade como essa não seria contrária a uma esfera (separada) do trabalho?72 O mesmo enfrentamento da questão aparece no posterior Ensaio sobre a Libertação: a concepção marxiana, escreveu Marcuse, ...implica a separação continuada entre o reino da necessidade e o reino da liberdade, entre trabalho e lazer – não apenas no tempo, mas também de tal modo que o mesmo sujeito vive nos dois reinos. De acordo com a concepção marxiana, o reino da necessidade continuaria sob o socialismo na medida em que a verdadeira liberdade 71 72

[MARCUSE, Herbert. Op. cit, p. 26-27]. O problema que Marcuse se aproximou de vários modos, sem nunca “tocá-lo” é o seguinte (Kurz, O Pósmarxismo e o fetiche do trabalho, op. cit., p. 10): “Tal bipartição [de trabalho histórico e trabalho ontológico, JN] acha-se novamente na determinação daquilo que afinal é realmente abstracto no trabalho abstracto. Marx a desenvolve principalmente numa única direcção - a direcção da forma: como abstracção real "do" conteúdo material, como indiferença ao momento sensível, representada pela forma do valor e seu desdobramento no dinheiro, a coisa "realmente abstracta". Não resta dúvida de que isso é de grande relevância. Mas o "trabalho" produtor de mercadorias é também "realmente abstracto" em um segundo sentido, que Marx não desenvolve sistematicamente: em sua existência como uma esfera diferenciada, separada de outras esferas como a cultura, a política, a religião, a sexualidade etc., ou, noutro plano, separada igualmente do "tempo livre" (ecos desse problema encontram-se com mais profusão no Marx dos escritos de juventude e em parte nos Grundrisse; mas o tema central formulado por Marx em sua Crítica da economia política é sempre o momento da abstracção da forma e não o momento da separação das esferas). Porém o desdobramento e enfim a total libertação da abstracção da forma na modernidade só é possível pelo facto de o "trabalho" ser diferenciado como esfera separada e "realmente abstracta", de ser separado do resto do processo vital - pelo facto, portanto, de o homem produtor de mercadorias "desconsiderar" (abstrair) não só a qualidade sensível de seus objectos, mas simultaneamente, no e em vista do "trabalho", os outros momentos da vida, cristalizados em esferas funcionais para além do "trabalho". Tal separação é a base de toda "separação moderna de esferas", esta "diferenciação" das sociedades modernas, assunto perpétuo (e naturalmente em tom afirmativo) da sociologia e da teoria dos sistemas”. Anselm Jappe tinha razão ao atribuir à Escola de Frankfurt o papel de uma fonte teórica importante para a crítica do valor nos seguintes termos. “Entre os raros filósofos que criticaram o culto do trabalho estão Theodor W. Adorno e outros autores da Escola de Frankfurt, designadamente Max Horkheimer ou Herbert Marcuse. Neles encontramos também intuições importantes sobre o valor e o fetichismo. Tais intuições surgem no entanto associadas a diversos restos inúteis do marxismo mais tradicional – mesmo sendo verdade que estes autores em certos pontos avançaram uma eficaz crítica do marxismo tradicional. As referências por eles feitas à crítica da Economia Política de Marx e ao fetichismo foram preciosas numa época em que ninguém falava tais coisas. Contudo, estas referências são frequentemente imprecisas. (...) Apesar de tudo, foi a partir dessas referências que alguns dos seus alunos começaram por volta de 1968 a elaborar a „crítica do valor‟”. JAPPE, Anselm, op. cit., p. 108. Afinal de contas, o presente ensaio é um testemunho “rente aos textos” deste fato lembrado por Jappe.

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humana prevaleceria apenas do lado de fora da inteira esfera do trabalho (labor) socialmente necessário. Marx rejeita a idéia de que o trabalho (work) pode em algum momento se tornar jogo. A alienação seria reduzida com a redução progressiva do dia de trabalho, mas este último permaneceria como um dia de não-liberdade, racional, mas não livre. Entretanto, o desenvolvimento das forças produtivas para além de sua organização capitalista sugere a possibilidade de liberdade no interior do reino da necessidade. A redução quantitativa de trabalho (labor) necessário tornar-se-ia qualidade (liberdade), não em proporção à redução, antes, até à transformação do dia de trabalho, uma transformação na qual os empregos (jobs) estafantes, enervantes, pseudo-automáticos do progresso capitalista estariam abolidos”. 73

Trata-se, pois, de assinalar aqui esta crítica da esfera separada do trabalho, surgida de modo consciente e decidida com a nova crítica do valor e do trabalho, encontra em Marcuse uma forma embrionária à qual não se deu a devida atenção. 5. Arte, práxis e trabalho (1977) Desde Eros e Civilização e mesmo antes, Marcuse havia voltado sua atenção para a “dimensão estética”. Em seus últimos escritos e intervenções Marcuse retorna com maior ênfase ao tema da arte e da estética por onde começou, em 1922, com sua tese de doutoramento. Em sua última publicação em vida, A Dimensão Estética, de 1977, Marcuse defende radicalmente a autonomia da arte e a verdade que esta autonomia revela. Em suas palavras, “Forma estética, autonomia e verdade encontram-se interligadas. (...) a arte submete-se à lei do concreto, ao mesmo tempo que a transgride”74. Mais importante para nossa questão é entender quando Marcuse postula que “A separação da arte do processo da produção material deu-lhe a possibilidade de desmistificar a realidade produzida neste processo. (...) Atribuir as qualidades não-conformistas, autônomas da arte à forma estética é colocá-las fora da 'literatura engajada', fora do domínio da práxis e da produção”75. Ou seja, a forma estética torna-se um “negativo acusador” da práxis produtiva, do trabalho social artificialmente tornado necessário. Para nossos propósitos, é importante acompanhar o caminho progressivo que leva Marcuse de uma ontologia do trabalho a uma crítica do conceito de esfera de necessidade permeada pelo trabalho socialmente necessário em Marx e nos marxismos, fazendo-o chegar MARCUSE, Herbert. An Essay on Liberation. Boston: Beacon Press, 1969, p. 20-21.(grifos do autor). MARCUSE, Herbert. A Dimensão Estética [1977]. Tradução: Maria Elisabete Costa. Lisboa/São Paulo: Edições 70/Martins Fontes, s.d.,p. 22-23. 75 Idem, ibidem, p. 33. 73

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até este entroncamento no qual se torna vital uma reflexão sobre a dimensão estética. Antes de qualquer coisa, é preciso sublinhar que, embora sempre presente no horizonte teórico de Marcuse desde os anos 30, a presença de Adorno nunca foi tão evidente e significativa quanto nestes últimos escritos dos anos 70, depois da sua morte em 1969, como testemunha os agradecimentos em A Dimensão Estética: “A minha dívida à teoria estética de Adorno dispensa-me de qualquer agradecimento específico”76. Também em uma entrevista dada logo após a morte de Adorno por conta de complicações cardíacas, Marcuse expressa sua dívida e proximidade com Adorno: “O que tenho a agradecer-lhe é realmente muitíssimo, e não posso imaginar continuar vivendo sem sua obra. Mas isso quer dizer que o debate com sua obra ainda virá, ainda deve vir, que ele nem sequer começou”77. É depois disto que podemos ter a licença de expor com duas referências a Adorno a conjunção da crítica do trabalho e de uma teoria estética que marca o acorde final da obra marcuseana. Nas Notas Marginais sobre teoria e práxis, publicadas em 1969, se lê o seguinte: A práxis nasceu do trabalho. Alcançou seu conceito quando o trabalho não mais se reduziu a reproduzir diretamente a vida, mas sim pretendeu produzir as condições desta: isto colidiu com as condições então existentes. O fato de se originar do trabalho pesa muito sobre toda práxis. Até hoje, acompanha-a o momento de não liberdade que arrastou consigo: que um dia foi preciso agir contra o princípio do prazer a fim de conservar a própria existência; embora o trabalho, reduzido a um mínimo, entretanto não mais precisasse continuar acoplado à renúncia.78

Além do vínculo entre a práxis e o trabalho vemos aqui o movimento de Eros e Civilização sobre a obsolescência instintiva da renúncia própria ao trabalho alienado. Na Teoria Estética, por seu turno, livro de Adorno publicado postumamente em 1970, lemos o seguinte: A arte não é unicamente o substitutivo de uma práxis melhor do que a até agora dominante, mas também crítica da práxis enquanto dominação da autoconservação brutal no interior do estado de coisas vigente e por amor dele. Censura as mentiras da produção por ela mesma, opta por um estado da práxis situado para além do anátema do trabalho.79

Idem, ibidem, p. 10. Reflexões sobre Theodor Adorno [1969]. IN A Grande Recusa Hoje. Organizado por Isabel Loureiro. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 107. 78 ADORNO, Theodor. Palavras e Sinais – Modelos Críticos 2, op. cit, p. 206 79 ADORNO, Theodor. Teoria Estética [1970]. Tradução: Artur Morão. Lisboa: Edições 70, s.d.,p.23. 76 77

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Mesmo nesta obra inacabada, deixada no estado de um manuscrito maciço, sem qualquer organização, de um autor reconhecidamente elíptico e difícil, encontramos este fragmento que é suficientemente claro e expõe cabalmente em que medida a “guinada estética” da teoria crítica é legatária de uma certa crítica da noção comum de práxis que, por sua vez, deve muito à questão da crítica do trabalho. Em A Dimensão Estética, uma espécie de versão mais simples e resumida da Teoria Estética adorniana, quase não se encontra qualquer referência direta ao problema do trabalho, que, como vimos, sempre esteve presente na reflexão marcuseana, mas esse vínculo, como o expressa tão claramente Adorno neste fragmento, é uma das bases mais importantes, na construção de uma “dimensão estética” no velho Marcuse. Para usarmos uma metáfora poder-se-ia dizer que Marcuse girou diversas vezes o parafuso da questão do trabalho, abandonando uma primeira e frouxa posição ontológica, aquém mesmo do modo como o problema foi posto por Marx, e apertando no sentido de uma crítica da forma histórica do trabalho alienado e abstrato das sociedades produtoras de mercadorias. O primeiro giro foi a interpretação adequada da densidade da crítica marxiana do trabalho e o peso que nesta teve a postulação de uma abolição do trabalho como tal. Outro giro foi dado com o auxílio da teoria das pulsões de Freud e a postulação, por intermédio desta, da obsolescência da base instintiva do trabalho abstrato nas condições da sociedade industrial. Mais um giro foi dado no sentido de uma crítica ao conceito de “reino da necessidade”, presente sobretudo no Marx da maturidade e, portanto, na defesa da possibilidade de penetração do lúdico, do livre exercício das faculdades e liberdades humanas no interior da esfera do trabalho, possibilidade esta negada diversas vezes por Marx. Entretanto, um último mas não menos importante giro faltou: a crítica do trabalho como esfera separada de existência social para além de uma crítica apenas da “forma do trabalho” abstrato. Este giro só pôde ser realizado, porém, por intermédio de uma releitura ampla da crítica da Economia Política de Marx e no interior da Teoria Crítica da Sociedade há muito era aceita a tese do “primado da política”. Grosso modo, para os defensores desta tese, primeiramente sustentada por Friedrich Pollock, no capitalismo avançado as tendências e contradições destrutivas do capitalismo teriam sido controladas por meio de expediente políticos e que, por conseguinte, a análise das categorias da crítica da Economia Política seriam insuficientes para criticar este período tardio do capitalismo e por isso deveriam ser abandonadas. 75

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Não é nem um pouco casual, portanto, que foi o mesmo estudioso responsável por uma das mais importantes críticas da tese do “primado da política” esposada pelos teóricos críticos, quem deu o primeiro passo na direção de uma crítica da categoria do trabalho como chave de uma retomada da crítica marxiana atualizada da Economia Política: Moishe Postone80. As bases para a crítica da categoria do trabalho deste autor foi seguida posteriormente – sem que houvesse tido qualquer debate inicial com estes, contudo – nos anos 80 por André Gorz na França e no início dos anos 90 pelo Grupo Krisis na Alemanha, para ficar apenas com alguns exemplos significativos, enquanto o próprio Postone desenvolvia com maior acuidade seu monumental trabalho, apresentando-o em forma plena em Time, Labor and Social Domination publicado pela primeira vez em 199381. Não tendo dado este último giro, e tendo sido obrigado a carregar o fardo de uma “Teoria Crítica” da Sociedade, Adorno e Marcuse foram obrigados a “espanar” este parafuso, depositando todas as suas fichas no papel emancipador da arte, das vanguardas artísticas e de novas formas de sensibilidade, testemunhando os limites mais extremados de uma crítica que permanece restrita à forma do trabalho e não ao trabalho como esfera separada de relações e que, portanto, deita-se sobre a forma estética como seu negativo acusador por excelência. Não que esta crítica não tenha grande relevância. A questão é que, se se permanece nela, deixa-se escapar a crítica das categorias de socialização da modernidade capitalista capaz de determinar em maior grau de concretude a estrutura social onde emerge a forma “alienada” de trabalho. É a fixação neste grau abstrato filosófico-antropológico da crítica da forma que torna a teoria crítica dos anos 70 suscetível de ser (só na aparência) superada no empreendimento habermasiano, iniciado já no início dos anos 80, de abandonar todo o “paradigma da produção” que, segundo ele, estaria “envelhecido”, instalando em seu lugar, com um recurso mais recuado a Hegel, um “paradigma comunicativo”. Para os que não admitem a premissa de que as esferas “econômica”, “jurídica” ou “política” podem ser postuladas de modo inteiramente afirmativo como em Habermas e nos pós-habermasianos, resta retomar o fio daquela meada antes de sua rebentação, ou seja, não só permanecer, mas

POSTONE, Moishe, BRICK, Barbara. Critical Theory and Political Economy. IN BENHABIB, Seyla, BONSS, Wolfgang, MCCOLE, John (eds.). On Horkheimer – New Perspectives. Cambridge: MIT Press, 1993. POSTONE, Moishe. Friedrich Pollock and the primacy of political [1976]. IN BERNSTEIN, Jay (ed.). The Frankfurt School – Critical Assessments. New York: Routledge, 1994. 81 Cf. POSTONE, Moishe. Time, Labor and Social Domination. A reinterpretation of Marx‟s Critical Theory. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. 80

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dar mais densidade crítica e determinação categorial à crítica do trabalho, de tantos modos diferentes realizada ao longo da obra de Herbert Marcuse.

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Sujeito e Modernidade

A Revolução Urbana e o Maio de 1968 na França Glauber Lopes Xavier1 “A primeira revolução foi política (a das nacionalidades), a segunda foi econômica (a dos proletariados), a nossa será cultural” (Inscrição numa das paredes da Sorbonne, a propósito do maio de 1968)

Prelúdio às considerações: confrontando os apontamentos da reunião de 23 de maio de 1968 (Por que os estudantes?) Iniciemos pelos apontamentos dirigidos por Lucien Goldmann. Na tentativa em situar a questão que incitou à referida reunião, Goldmann fundamentou seus argumentos em duas perspectivas: a oposição à escola de Frankfurt, especialmente ao pensamento de Marcuse e, como desdobramento de sua contestação, o enunciado de uma nova ideologia contestadora por parte de uma sociedade integrada. Em linhas gerais, Goldmann considerava que “o enunciado da classe operária como um grupo rejeitado, frustrado das principais vantagens da vida social e mantido no exterior desta, grupo que devia, a partir dessa situação específica em relação à sociedade global, desenvolver uma consciência revolucionária orientada para uma revolução política anterior às transformações econômicas e sociais” 2, com o advento da segunda revolução industrial, dadas as transformações sociais e, fundamentalmente, àquelas atinentes à esfera do trabalho, tornara-se caduco. Destas considerações o pensador extraia a idéia de que, ao contrário do que postulavam os frankfurtianos, o acesso ao consumo, aliado ao avanço da técnica, permitiriam uma maior integração da sociedade. Desta integração, apareceriam ideologias contestadoras, como o maio de 1968. Há que se ressaltar, todavia, que a divergência central com a escola de Frankfurt consistia em que Lucien Goldmann conferia relevância às ações dos sujeitos, a 1 2

Professor Efetivo da Universidade Estadual de Goiás. Doutorando em Sociologia pelo Programa de Pósgraduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás. LEFEBVRE, Henri. A irrupção. A revolta dos jovens na sociedade industrial: causas e efeitos. São Paulo: Editora Documentos, 1968.

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despeito do estruturalismo, marca imperiosa do pensamento marxista no século passado. Resta afirmar que a forma como Goldmann lidou com a questão torna inteligível porque se denominava um reformista revolucionário da sociologia da cultura. Ora, era no desenvolvimento de certa cultura (a modernidade, marcada pela integração social e pela emergência de novos valores) que residia o embrião de uma revolução contestadora total, adversa de uma revolução operária conformada por relações hierárquicas entre as instâncias sociais, políticas e econômicas. Mesmo concordando com Goldmann, Jacques Berque enriqueceu sobremaneira o debate. Numa perspectiva antropológica e mesmo fenomênica, empenhou-se em negar as classificações. Teve, pois, a perspicácia de capturar as transformações sociais pela relação homem-natureza, sendo a técnica importante aspecto de análise. Ao interpretar que a revolução tecnológica criava novas relações e cavava novas hipóteses, Berque buscou apontar que a essência da questão ancora-se no pensamento. Desta sorte, o jovem como protagonista de uma história passava a ser algo negligenciado, dada a necessidade da classificação no seio do pensamento (classes sociais consistia numa destas classificações). Conforme o intelectual, não era momento para se classificar, mas para se apreender o fenômeno. Em prova de que alguns pensadores iriam fazer uso de seus instrumentos e ferramentas classificatórios, Berque mencionou a possível associação dos termos jovem e trabalhador intelectual. Desta sorte, sua crítica também se tratava de uma crítica da própria linguagem. Henri Lefebvre não está errado ao afirmar certa vez que Marx havia construído uma linguagem do capitalismo. 3 Aparentemente, Jean Pronteau foi o pensador que mais dificuldades encontrou para se desapegar das antigas classificações, as quais foram bem denunciadas por Berque, diga-se de passagem. O percebemos já no início de seus argumentos, ao incluir a maioria dos estudantes no proletariado. O equivoco de Pronteau, se assim podemos denominar, consiste em seu argumento de que com a melhoria das condições materiais de existência o proletariado tenha se transformado, quando, ao contrário do que pensa, não apenas as condições materiais de existência tenham modificado, mas ainda e, principalmente, a relação homem-natureza e, como desdobramento desta relação, seu pensamento, seu modo de vida, sua cultura. [Importa um adendo sobre esta questão. Cultura, na perspectiva por nós trabalhada não se circunscreve ao culturalismo, não pouco denunciado por vários pensadores. Cultura consiste no agrupamento de valores, comportamentos, práticas sociais, representações e ideologias. 3

LEFEBVRE, Henri. Hegel, Marx, Nietzsche ou O reino das sombras. Póvoa de Varzim: Ulisseia, 1976.

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Nesta perspectiva, a modernidade vem a ser a cultura do homem contemporâneo, sendo sua relação espaço-tempo o cotidiano.] Retomando as contribuições do pensamento de Pronteau, ainda que ele não tenha comungado das posições tanto de Goldmann, quanto de Berque no tocante à necessidade de supressão do ultrapassado conceito de classes sociais, admitia, como os demais intelectuais, que uma das novidades do movimento era a inexistência de hierarquias e o desejo por mudanças não apenas na base econômica. Pronteau afirmou que as pessoas queriam, na verdade, “mudar de vida”4. Ele entra em contradição. Basta considerar sua análise de que o movimento partia dos jovens pelo fato de não terem elaborado a tolerância às transformações quando havia sido o oposto a motivação para a irrupção. Ao fazê-lo, Pronteau reduziu a dimensão de importância da modernidade e, atestando sua dificuldade em abandonar as classificações, concluiu sua fala apontando que o perigo naquele momento seria a ruptura entre a juventude e a intelligentsia de um lado, e o movimento operário de outro. Tentou encaixar um novo conteúdo numa antiga forma. Em prova de modéstia, Henri Lefebvre foi o pensador que menos respostas deu aos acontecimentos do maio de 1968. Ao se reservar em hipóteses, não deixou, todavia, de associar a juventude à classe trabalhadora. Disse que algo resta dos antigos estudantes nas novas gerações e, ainda, que talvez os estudantes tenham sido motivados pelo fato de que, em breve, passariam a ser trabalhadores. Não concluiu, apenas questionou. Ademais, Lefebvre acreditava que, diferentemente de Berque, a correlação entre a irrupção do movimento por parte dos estudantes e a classe trabalhadora não consistia em metáfora, mas em realidade. Conclui sua exposição tratando das armadilhas da autogestão, conferindo importância ao conjunto da sociedade em torno desse programa social. Passados quarenta anos, mesmo conscientes do malogro do maio de 1968, temos uma certeza: com a modernidade, emergiu o sujeito. A própria definição do maio de 1968 por parte de um marxista, Henri Lefebvre, atesta essa certeza. Diferentemente de revolução, irrupção denota fato, o hic et nunc (aqui e agora), o uso do corpo, o vivido, a vontade de poder. Este posicionamento colocou Lefebvre à contramão do estruturalismo recorrente em alguns pensadores, como Althusser. A divergência, cremos, reside em que Lefebvre tinha a noção das abissais transformações que marcam o mundo moderno e, exatamente por isso, claro estava para o pensador que tais condições conclamavam a um pensamento reformista e,

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LEFEBVRE, Henri. A irrupção. A revolta dos jovens na sociedade industrial: causas e efeitos. São Paulo: Editora Documentos, 1968.

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fundamentalmente, total, avesso ao conhecimento especializado. Desta sorte, podemos dizer que dois princípios contrapunham o pensamento de Lefebvre ao marxismo em voga: 1º) conferir valor ao sujeito na história e 2º) Por erigir-se do primado lógico, político e ontológico, negando o funcionalismo (que se ocupa da função); o estruturalismo (que se ocupa da estrutura) e o formalismo (que se ocupa da forma). Porquanto Lefebvre tenha rompido com o marxismo dogmático, isso não significou abandono do método. Pelo contrário, lúcido das condições advindas da modernidade, de uma realidade em ebulição, recorreu ao materialismo histórico dialético. O método, neste sentido, não consiste na resposta definitiva das circunstâncias, mas no caminho a se trilhar. Isso é método. À qual realidade social aplicá-lo? A um período histórico marcado pela disseminação do valor de troca nas mais variadas dimensões da vida: o tempo total e o espaço total. O fenômeno urbano, o sujeito e o cotidiano como cultura Deflagra-se o urbano, irrompe o cotidiano e, com ele, a cotidianidade. Nesta perspectiva, o maio de 1968 tratou-se de um importante momento histórico que, poder-se-ia dizer, marcou o fenômeno urbano na quase totalidade de suas contradições. Primeiro, porque seus protagonistas não eram trabalhadores, mas estudantes. Por si, esta evidência encerra quaisquer posições de teóricos estruturalistas que, a despeito de enxergarem a realidade com lentes graduadas, relutam por forçarem a visão em decorrência da miopia de que padecem seus instrumentais analíticos. Segundo, porque este movimento despontou e desdobrou-se no urbano e, finalmente, por sua natureza, ou seja, por suas motivações. Na reunião destes três elementos, pretende-se conformar as nossas reflexões, ressaltando, contudo, que o último elemento abriga os demais e tem como essência, o fato, no aqui e no agora (hic et nunc). A importância de se considerar tais motivações, é oportuno dizer, consiste no fato de que elas revelam as condições da modernidade. No tocante ao maio de 1968, a insurgência não se pautava na exclusiva contraposição à sociedade produtora de mercadorias (reduzi-lo a essa premissa coloca a análise do movimento em terreno movediço) na medida em que os insurrectos buscavam pela libertação total. Ainda que a supressão da sociedade produtora de mercadorias permita a libertação total e a plena emancipação, não vem a ser isto o que se propõe, aqui, refletir. Na medida em que o modo como a ação se desdobra e os atores sociais que a incita desvelam a essência dos fenômenos, preocupa-nos, na verdade, o que tenha 81

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levado, como e por quem, ao rebento do maio de 1968 em Paris. A simples constatação de que tal movimento tenha insurgido numa metrópole européia por parte de universitários fornece pistas para sua apreensão. Resta o elemento principal: as motivações. Não é complicado descobri-las mesmo que não se não tenha lido nada a respeito ou, contrariando a firmação, talvez o seja, o que resolvemos por responder após a resposta que, de fato, nos motiva: o cotidiano. Eis que ele surge, conformando atos, imprimindo representações, determinando comportamentos e edificando os saberes, enfim, constituindo cultura5. No afã de tudo racionalizar, o homem teve racionalizada sua própria existência, mas não, de todo, sua essência, donde surge a contradição que, naquele momento, propulsionou a irrupção do maio de 1968. Importa atentar que ao verter sua relação com a natureza o homem forjou relações objetivas destoadas de um projeto de emancipação social. A modernidade vem a ser o estágio de maior acirramento das contradições provindas dessa relação às avessas. Ora, até mesmo a relação espaço-tempo, racionalizada que fora, quase sempre tem nos capturado de forma a não permitir a lúcida interpretação das motivações humanas; retornamos à dificuldade do entendimento das motivações do maio de 1968. Tratou-se da tentativa de ruptura com o tédio do cotidiano, bem o sabemos. Mas porque não saberíamos? Em função do próprio cotidiano. Não por acaso, assim que o movimento começara a tomar corpo, os maiores intelectuais da academia francesa tenham se reunido em torno de um trabalho a um só tempo agônico e estimulante. Agônico porque imprevisível e estimulante porque real. Imprevisível porque singular a qualquer experiência histórica e real porque fruto da virtualidade de poucos segundo atrás. Era, resumidamente, um dia revolucionário profundamente desolador para cem anos ordinários. Mas não era a revolução da fábrica, era a revolução do tempo e do espaço. Nada mais que esta inferência conduz à compreensão do que vem a ser a complexidade disto que se convencionou chamar cotidiano. Malgrado sua importância é preciso reconhecer o quanto ele é negligenciado, banalizado e, por vezes, hostilizado. Negligenciado porque quase sempre tomado como palavra qualquer, banalizado porque rotineiramente associado ao trivial e hostilizado porque geralmente considerado inapropriado como programa de estudos empíricos e teóricos, mesmo por boa parte dos sociólogos, quem mais deveria se ocupar de sua investigação. A despeito destes equívocos, o cotidiano é, segundo Henri Lefebvre, um “rico programa de 5

LEFEBVRE, Henri. Critique de la vie quotidienne. Paris: L´arche Éditeur, 1961. 3v.

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pesquisa empírico e teórico”6 e, para o mesmo pensador, problemática inerente à sociologia. Ser-se-ia, em exclusivo, questão filosófica se não estivéssemos na modernidade. Mas estamos, é fato, tanto quanto o fato de que o próprio cotidiano é fato, pois que existente no aqui e no agora, numa relação espaço-tempo prenhe de quantificações (As do tempo: as horas, minutos, segundos e milionésimos de segundo. As do espaço: metros, centímetros, milímetros, milionésimos de milímetros) e, fundamentalmente, de qualificações (As do tempo: tempo de trabalho, tempo de lazer; tempo de dormir. As do espaço: espaço doméstico, espaço laboral, espaço público). Não pretendo parafrasear as contribuições de Henri Lefebvre, sabendo que se este fosse meu propósito muitos que se dispusessem a ler este texto ficariam encantados, dada a atualidade e originalidade de seu pensamento. Minha busca é, neste momento, tratar da modernidade como cultura a partir da importância do sujeito, tomando o maio de 1968 como grande momento da história. A questão urbana não vem como adendo, mas como dimensão dialético-antropológica da vida cotidiana. Eis que as coisas se entrelaçam. Carece apreendê-las a partir do feixe que conformam. Voltemos, pois, a tríade outrora apresentada, a qual fundamenta nossas argumentações. Tomemos a experiência do maio de 1968 mais como fato do que como acontecimento, o que nos permite sobressaltos para além das descrições na medida em que conclama a reflexão, no âmbito do pensamento, da ontologia do ser social e da construção e legitimidade do conhecimento científico. Fica a impressão de que esta apreensão não se rende, por completo, ou ao marxismo ou a fenomenologia ou mesmo ao corpo filosófico nietzscheano? Está no caminho certo aquele que é tomado por esta sensação, o que talvez se deva à sua sede de liberdade total. Mais próximo está, resta dizer, do pensamento lefebvriano. A não dogmatização do pensamento é a única saída que temos para o vislumbre da virtualidade, o que não é mais e tampouco se aproxima do vivido do poeta expresso em sua poesia. Mas, como havíamos dito, voltemos a refletir sobre o fato (maio de 1968) em sua riqueza paradigmática: as motivações daqueles que colocaram as instituições à beira do abismo do ponto de vista do intérprete, já que do ponto de vista dos estudantes aquele momento era estabelecido pelo gozo, pela plena apropriação da vida. Era o corpo em gozo que comandava o ritmo do momento, ritmanálise7, o contato propiciava a efetiva experiência humana, a transgressão era comungada num projeto que

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LEFEBVRE, Henri. Critique de la vie quotidienne. Paris: L´arche Éditeur, 1961. 3v. BACHELARD, Gastón. A poética do espaço. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

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buscava o novo. Transformação em curso, impossível de se classificar. Neste projeto em fermentação, o anseio era por novas topias, heterotopias, negação das formas iguais, as chamadas isotópicas. Não mais a práxis, mas a poiésis8. Não somente a superação das condições de produção, mas a superação da re-produção das relações de produção9. Superálas seria o invento de outra maneira de viver, outra cultura. Por isso, cultura é política. Ela não pode ser jamais fetichizada, porque dá margem para o saber caduco, o das representações. “A base elementar e espontânea se descobre política; ela discerne que a cultura está politizada: ideológica”10. Torna-se claro o sentido da inscrição numa das paredes da Sorbonne (epígrafe deste trabalho). A revolução que tinha por vanguarda os estudantes se pretendia cultural porque questionava toda forma de poder: o patrão, a família, a igreja, a sociedade falocêntrica. Em seu lugar buscava instaurar o uso, outro primado, outro sentido, muito além da tomada dos meios de produção, mas da reinvenção do cotidiano. Sua forma? Outra coisa que não seria a cidade hodierna, representação do espaço; seu conteúdo? A vitualidade, o possível. Veria então, o homem, o desenvolvimento de suas múltiplas habilidades, a negação do homem unidimensional, oprimido, como disse Marcuse, pela ideologia da sociedade industrial11. O grito dionisíaco ecoaria por todas as partes, as mais longínquas possíveis, em terrenos até então nunca visitados. Parto, aqui, para uma nova discussão: a relação entre o urbano, campo de revolução das topias contemporâneas - supressão das representações12 - e a modernidade. Ser-me-á valiosa as poesia contida nas palavras de Nietzsche. A preocupação central: o fenômeno humano total e as condições da vida cotidiana no mundo moderno; o gozo, o novo, o diferencial, a poiésis que supera a mimésis e irrompe a partir da práxis inventiva. Afinal, como nos fala a loucura em Elogio da loucura de Erasmo de Rotterdam13: Com efeito, o que é a vida se suprimis seus prazeres? Merece ela então o nome de vida?...Vós me aplaudis, meus amigos! Ah! eu sabia o quanto éreis todos muito loucos, isto é, muito sábios, para não compartilhar meu pensamento...Os próprios estóicos amam o prazer; eles não poderiam odiá-lo. Por mais que dissimulem, por mais que difamem a volúpia aos olhos do vulgo, cumulando-a de injúrias as mais atrozes, é puro LEFEBVRE, Henri. Sociologia de Marx. Rio de Janeiro: Forense, 1968. Idem 10 Ibidem 11 MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967. 12 LEFEBVRE, Henri. La presencia y la ausencia: contribución a la teoría de las representaciones. Cidade do México: FCE, 2006. 13 ROTTERDAM, Erasmo de. Elogio da loucura. Porto Alegre: L&PM, 2009. 8 9

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fingimento! Tratam de afastar os outros dela para que eles próprios a usufruam com mais liberdade. Mas, por todos os deuses! que eles me digam então qual instante da vida não é triste, tedioso, desagradável, insípido, insuportável, se não for temperado pelo prazer, isto é, pela loucura.

A revolução urbana, a modernidade e a superação das representações La rue assourdissante autour de moi hurlait. Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse, Une femme passa, d’une main fastueuse Soulevant, balançant le feston et l’ourlet; Agile et noble, avec sa jambe de statue. Moi, je buvais, crispé comme un extravagant, Dans son oeil, ciel livide où germe l’ouragan, La douceur qui fascine et le plaisir qui tue. Un éclair... puis la nuit! - Fugitive beauté Dont le regard m’a fait soudainement renaitre, Ne te verrai-je plus que dans l’éternité? Ailleurs; bien loin d’ici! Trop tard!Jamais peut-être! Car j’ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais, O toi que j’eusse aimée, ô toi qui le savais!

(Charles Baudelaire) A uma passante, obra do poeta francês Charles Baudelaire14, simboliza a modernidade na frustração de um andante ávido pelo encontro com a bela fidalga que, de rua em rua, caminhava, trazendo confusão sobre seu destino. Um belo retrato de como as formas do moderno são impeditivas do vivido, da partilha de experiências e cujos vultos resultam, no limite, em representações. Assim, em linhas gerais, a cidade consiste na forma da modernidade. Seu conteúdo? O cotidiano. E a modernidade em si mesma? Uma condição, a que todos nós estamos, inadvertidamente, submetidos. Estamos, pois, capturados por ela. Com a extrapolação da condição urbana, ela se instaura, permitindo a contradição. O urbano, como a própria cotidianidade, aponta para a seguinte contradição: ao passo que aprisiona, impedindo a emancipação dos sujeitos, liberta naquilo que possui de diferencial. É preciso conferir importância a este diferencial, às brechas, fendas, lacunas, o limbo que permite verificar o novo que emerge do repetitivo. Isto leva à conclusão de que as contradições do modo de produção (cujo sentido está para além do economicismo recorrente em muitas incoerências do pensamento que se diz marxista) referem-se à própria dinâmica da vida, das relações sociais, ou, como diria Henri

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Lefebvre, da re-produção das relações de produção15. Se a mercadoria cumpre determinadas necessidades do indivíduo ela também o detém a partir do primado na qual ela é feita. Ora, assim o é a cidade, lócus do urbano. A cidade cumpre as necessidades do espaço, não para todos, por isso uma luta pelo direito à cidade, impelida fundamentalmente pelos trabalhadores, mas ela também aliena através de seus signos, de seus álibis. Desta sorte, a cidade passa a ser forma-conteúdo de uma condição humana, a do homus cotidianus, tendo em vista o quase completo domínio das instâncias da vida pela cotidianidade. Neste quase, encontra-se o resíduo, geralmente ignorado, desprezado pelos cientistas16. O resíduo é, para nós, a destruição, ainda que efêmera, das representações. Ou melhor, a superação destas representações, a qual se dá no campo da virtualidade, ou, para conforto de muitos críticos, da u-topia. Por isso e, fundamentalmente por isso, o urbano enceta a virtualidade, a qual conclama no seio do pensamento um procedimento transductivo (além da indução e da dedução17). Mas como ficam as classes sociais nesta perspectiva? Ainda que a condição urbana seja, por todos, compartilhada, as classes subalternas consistem no gérmen da revolução. Importa, todavia, elucidar que o sentido desta revolução é outro um tanto distinto da perspectiva que tem a questão econômica como central. A experiência é, essencialmente, a da cotidianidade. Romper os seus grilhões é a possibilidade de apropriação da vida. Em termos teóricos, isto sugere uma releitura dos escritos de Marx, donde há de se perceber que propriedade não significa necessariamente mercadoria, mas uma relação social. Veja, o cotidiano é, pois, uma relação social da qual Marx não dera conta. Ela incorpora as relações de seu tempo e as aprimora em certos casos, reelabora noutros. A cidade é um exemplo precioso. Mais pormenorizadamente, a moradia, invólucro de representações, retrato do modo de vida. Com suas transformações, surge o homus cotidianus de Lefebvre e sua primorosa análise de uma antropologia dialética. Porque a antropologia? Pelo modo de vida em operação, pela reprodução de uma condição (um estágio de cuja mimésis o nascimento da poiésis reluta e se anuncia). A cidade e o urbano desvelam estes processos. Para quem a ignora, tudo se passa como se as transformações em curso tivessem um significado quase nulo. Se nos acusam culturalistas, é BAUDELAIRE, Charles. Oeuvres complètes. Paris: La Pleiade, 1961. LEFEBVRE, Henri. Sociologia de Marx. Rio de Janeiro: Forense, 1968 16 LEFEBVRE, Henri. La vie quotidienne dans le monde moderne. Rio de Janeiro: Forense, 1968a 17 LEFEBVRE, Henri. De lo rural a lo urbano. Barcelona: Ediciones Península, 1975. 14 15

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porque enxergamos no cultivar das representações a reprodução da cotidianidade e na supressão destas mesmas representações a virtualidade (apropriação). A revolução cultural permanente de que trata Lefebvre seria, então, completa. A um só tempo, econômica, política e cultural. Uma estratégia global. Em termos políticos: a superação do Estado, de sua tecnoburocracia, da representação política e os instrumentos de representação das relações sociais (como a burocracia e os sistemas no cumprimento dos interesses do capital). Em termos econômicos: a superação da propriedade, da mercadoria e do dinheiro, seu equivalente universal de trocas. Ao mesmo tempo, em termos culturais: a superação do terrorismo sexual, da religião, da própria filosofia e do urbano como o temos. Somente esta revolução total permitira a insurreição plena do uso. O lúdico deixaria de ser tema do desejo, assim como a felicidade. A festa não seria programada e tampouco institucionalizada. A festa seria o próprio cotidiano. Liberado o corpo, as formas seriam, pois, livres. Livre seria, ainda, o pensamento. O urbano da revolução é a revolução das formas. O conteúdo (relações sociais instauradas pelo uso) alinhavaria, então, um espaço no e do qual todos se apropriariam verdadeiramente. Destituídas de seus postos seriam, pois, as representações, perdendo, em muitos casos, o caráter de sentido da vida. O sentido tanto como experiência quanto como condição. Como experiência, pelo uso do corpo (esse é um exemplo seminal). Como condição, a superação do próprio conhecimento nos moldes atuais. O urbano da revolução envolveria, por seu turno, a revolução das representações, imprimindo novas práticas sociais, elaborando novos espaços. A apropriação, o uso, o gozo, como fica claro, ocupam posição central. Claro fica a importância do cotidiano, evidenciando porque a revolução é permanentemente cultural. É chegado o momento desta revolução? À maneira de Lefebvre, respondemos: Sim e Não. Sim, pois é no cotidiano que a revolução se estabelece, a partir das fendas da cotidianidade. Não, se a revolução esperada ignora as continuidades e descontinuidades da história. Ora, a poiésis, conforme já dissemos, subverte-se pela práxis. Esta práxis consiste na edificação do ser social, de sua estrutura de pensamento e ação. Ela restitui, segundo Lefebvre, o nível prático-sensível da vida. “Desta forma descobrimos o duplo fundamento de toda práxis: o sensível, de um lado e, do outro, a atividade criadora, estimulada pela necessidade que ela transforma.”18. A práxis qualifica, assim, a relação homem-natureza. Consiste no substrato da realidade material humana, sendo, por isso, o fundamento das 18

LEFEBVRE, Henri. Sociologia de Marx. Rio de Janeiro: Forense, 1968b

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construções sociais mais simples até as mais elaboradas. As representações têm, nela, seu leitmotiv. A isto se deve o caráter conceitual das representações. Ora, elas emergem da realidade e a realidade retornam de forma autônoma. Para se pensar nas representações é preciso considerar as formas. Tomemos como exemplo o relógio. Ele é o mecanismo de referência para o tempo, mediação de relações sociais conformadas pela programação dos atos. Ele representa, fundamentalmente, o domínio humano do tempo. Não obstante, com a modernidade dá-se o controle das múltiplas dimensões da vida. No bojo deste processo, as consciências são alteradas, assim como a própria linguagem. Segundo Lefebvre: “Não existe consciência sem linguagem, porque a linguagem é a consciência real, prática, existindo para outros homens, logo, existindo para o ser que se tornou consciente19.” Ora, se a práxis gera, conforme elucidou Lefebvre, instrumentos, linguagens, conceitos e signos e se o primado desta práxis é a relação social que se estabelece pela troca e não pelo uso, conformando, desde o nível prático-sensível, representações que impedem a apropriação e o vivido, a linguagem da modernidade denuncia a miséria do cotidiano20. Esta linguagem, é necessário reafirmar, é a própria consciência que temos da realidade, ou seja, não se pode dissociar o significado de seu significante. A palavra é viva, redunda de um ato. Somente o urbano poderia abalar as estruturas das representações contemporâneas, as quais estão diretamente relacionadas às formas que repelem a plena liberdade dos corpos, impedindo o gozo, normatizando a vida em sociedade, instituindo condutas ao bel prazer dos interesses da reprodução das relações de produção. Exatamente por isso, no pensamento de Lefebvre as representações não podem ser desvinculadas das práticas. Erro cometido pela teoria da representação social. Esta reifica por sua vez a sociedade e não a captura pelo movimento continuo que possui, o qual agrupa a formação do próprio saber, a concepção. A tríade lefebvriana conformada pelo concebido, pelo percebido e pelo vivido permite apreender as representações numa perspectiva metafilosófica, isto é, de como a superação das representações consiste na superação da própria filosofia. Ao contrário deste projeto, a teoria das representações sociais, ancorada predominantemente no pensamento durkheimiano, reafirma o conhecimento parcelado, especializado, na busca por conferir à sociologia um estatuto científico21. O urbano, como

Idem Ibidem 21 Nas palavras de Lefebvre (1968b, p. 54): “Durkheim faz da sociedade um ser abstrato, enquanto que para Marx ela nasce da interação (prática) dos grupos e dos indivíduos.” 19

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perspectiva revolucionária, colocaria por terra inclusive o primado do conhecimento hodierno. Isto é parte da própria superação, entendendo que a concepção está relacionada à linguagem e que a ciência enquanto linguagem passaria a ser reconstruída. No entanto, não de forma atomizada, o que tonaria possível somente com o anúncio do vivido, no seio da práxis. Já que voltamos a falar do urbano, nunca é demasiado explorá-lo a partir da relação homem-natureza, ao que se tributa a essencialidade do conceito de práxis. O urbano que se vislumbra, em sua virtualidade, nega as atuais representações. Isto se deve ao fato de que ele emana de uma nova relação homem-natureza, pondo fim às antigas formas, possibilitando novas experiências, aliadas ao conhecimento emancipatório e libertário. Qual forma teria esse urbano? Não podemos responder, pois o plano é o da virtualidade. Nós nos encontramos capturados por representações, signos, símbolos e sinais, os quais são impeditivos de uma relação homem-natureza que tenha, no uso, seu primado. Ao menos se estivéssemos vivendo, nós da academia, alguma realidade que embora efêmera estivesse no limiar, no residual. Mas não estamos. Percebem os prenúncios de outra realidade determinados grupos sociais em momentos de latente transformação. São raros estes momentos. Eles surpreendem a história, faz tremer seus pilares mais sólidos. A revolução francesa, a comuna de Paris e o maio de 68 foram momentos em que dias revolucionários valeram por muitos séculos ordinários. A primeira trouxe a primazia do Estado, base da doutrina hegeliana, seu conceito absoluto. A segunda foi marcada pelo levante operário, confirmando a doutrina de Marx e a terceira instaurou uma comoção geral, questionando toda forma de poder em busca da revolução total, de outra maneira de viver. Sua doutrina? A nietzschiana. A tríade construída por Lefebvre encerra no vivido, onde o espaço é tanto meio quanto fim. Enquanto superação das representações, o urbano passa à “restituição inteira do sensível e do corpo, em conformidade com a poesia nitzschiana 22. O urbano, na medida em que envolve o fenômeno humano total, traduz-se pela revolução do conhecimento, das técnicas, dos sistemas, dos objetos, dos símbolos signos e sinais que demarcam a cotidianidade. O mundo moderno é prenhe de significados que devem nos levar à crítica e ao vislumbre da abertura para o diferencial. Pensemos na técnica, em como ela enquanto criação volta-se contra seu próprio criador. A técnica imprimida nos processos de

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LEFEBVRE, Henri. Hegel, Marx, Nietzsche ou O reino das sombras. Póvoa de Varzim: Ulisseia, 1976.

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trabalho, dominando o ato humano, mas também o controle biológico da espécie, de seu ritmo, suas sensações e percepções. Em tempos de motor informático23, cotidianamente somos alvo de seu controle. O corpo o revela pelos gestos repetitivos, intermitentes, das atividades laborais, assim como o gozo simulado do sexo virtual e as amizades não estabelecidas pelo encontro. É preciso ir mais longe, pensar como a técnica molda relações sociais, como ela edifica uma sociedade a partir de seu desiderato. Acabamos por perceber que ela é fruto da cotidianidade e se torna indispensável em sua operacionalização. A técnica nos apresenta, antes de mais nada, como manipulação do tempo e do espaço. Ela atravessa quase que a totalidade das instâncias da vida. No campo, com o controle biológico das plantas, dos animais, os processos de reprodução induzida artificialmente. Na Cidade, ela determina os próprios rumos da civilização. Ouso afirmar que ela é o principal álibi da modernidade. É bem verdade, todavia, que a técnica não pode ser confundida com as máquinas. Ora, desde as mais antigas civilizações o homem já dominava determinadas técnicas, como a irrigação e o uso das ferramentas. Não podemos considerar técnica como o que possui artificialidade, mas seu sentido é antropológico. O que tem acontecido na modernidade é a perda de controle da técnica. Precisamos, urgentemente, politizar as novas tecnologias. Isto é premente. Sentimonos cômodos para afirmar que a técnica revela a sociedade, a cultura e a política. Ela é, sobremaneira, decisão dos homens. Sua descoberta, criação, aprimoramento não são gratuitos. Partem de um projeto que se relaciona aos interesses de determinados grupos sociais e envolve os poder tecnoburocrático estatal24. Note, a técnica incita representações e instaura-se a partir delas. A revolução do urbano é, ainda, e fundamentalmente, a revolução da técnica. Somente assim nascerão novas formas e os processos irão se sobrepor às estruturas. A perda das rédeas da técnica explica-se pela rigidez das estruturas sobre os processos sociais, estando diretamente ligada à estrutura da mente, propulsionada pelo estruturalismo, pelo formalismo e pelo funcionalismo. Superar representações é superar os sistemas vários, os quais promovem a repressão da liberdade em diversos níveis. No mundo contemporâneo, especialmente o nível cultural. Devemos, contudo, considerar as forças sociais opositoras, como as rebeliões estudantis em diversos países do globo, assim como as lutas feministas,

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VIRILIO, Paul. A arte do motor. São Paulo: Estação Liberdade, 1996. Henri. Posição: contra os tecnocratas. São Paulo: Nova crítica, 1969.

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pela igualdade racial e pelos direitos dos homossexuais. Todas gravitam em torno de um único problema: a liberdade, a apropriação, o uso, a começar pelos corpos. “O corpo encerra muito mais do que um espaço preenchido por uma matéria; contém o infinito, o eterno 25.” Temos, pois, dois conceitos basilares: corpo e espaço. Não há produção do espaço sem corpo, ainda que o corpo se trate de um espaço suficientemente mental. A revolução urbana é, ipso facto, a revolução no e pelo espaço. Afinal, ele é “[...] o lugar e o meio das diferenças. A experiência dos conflitos e a do espaço tendem a coincidir, no caso de tudo o que se afirma e tenta uma abertura (brecha), objetiva ou subjetiva.26” A importância do cotidiano está em que o diferencial desponta do mais banal ato repetitivo. Sai da superfície à profundidade. Repetição que inova pelo residual, pelo fragmento desprezível, pelo desvio, pela margem de erro de que tanto tratam os estatísticos. “O repetitivo engendra o diferencial, e, inversamente, que o diferencial se produz pela repetição, ao longo de um tempo específico”27. Há que se considerar, contudo, o outro lado, a outra face do caráter repetitivo das relações sociais: sua miserabilidade. Os discípulos do pensamento durheimiano, na incompreensão do repetitivo, têm levado a teoria das representações somente até onde o conhecimento parcelado permite. Ora, conhecimento este fruto da própria repetição. O máximo que alcançaram foi uma equivocada teoria das representações sociais. O mesmo erro cometem ao tratar da vida cotidiana. “A época moderna saboreiam assim até às fezes o gosto da repetição.28” Voltando a teoria das representações, o que se repete? Palavras. O que atesta as assertivas? O dito. Mas não o dito pelo dito. Não o cogito cartesiano. “Penso, logo existo. Não! Quando penso, não existo, e se penso, é porque não existo – procuro o ser. O sujeito pensante descobre-se sujeito que discorre, que busca, que sofre – sujeito do não ser.29” Maravilhosa sacada de Nietzsche. O ser é pulsão, na palavra há som, a palavra é ato. “A palavra consiste tão somente na representação sonora de uma excitação nervosa.30” O que fazemos com ela? Reificamos e, então, reviramos, analisamos minuciosamente, indagamos, examinamos exaustivamente, pensando com isso apreender a realidade dos homens. Mas tomemos cuidado. A própria filosofia não passa de ressentimento à luz da doutrina

LEFEBVRE, Henri. Hegel, Marx, Nietzsche ou O reino das sombras. Póvoa de Varzim: Ulisseia, 1976. Idem 27 Ibidem 28 LEFEBVRE, Henri. Hegel, Marx, Nietzsche ou O reino das sombras. Póvoa de Varzim: Ulisseia, 1976. 29 Idem 30 Ibidem 25

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nietzschiana. Com a sociologia não seria diferente. O estudo das representações tomando a palavra pela palavra é inútil, mera verborragia. É preciso compreender que a linguagem denota a relação entre homens e objetos. As palavras expressam metaforicamente esta relação. Tudo se complica, todavia, a partir do momento em que tais objetos são convertidos em mercadorias. Marx, a quem coube o árduo esforço de decodificar o capitalismo, nos deixou grandes ensinamentos. Apreendeu uma linguagem. A revolução urbana é, também, a revolução pela linguagem. A linguagem como poética para exprimir o espaço, a ética, a retórica e a estética. Todos, como manifestação do vivido e não mais do concebido que reserva à palavra a narrativa das representações. Eis o sentido do projeto: a superação das representações no ato, hic et nunc, aqui e agora. Retomemos a técnica como representação por excelência. Note, ela propugna uma linguagem, valores, comportamentos, usos dos corpos. Ela é, como já insistimos, antropológica. A relação entre corpo e consciência que emergirá da revolução urbana será, pois, da ordem da técnica, posto que desdobramento da relação homem-natureza. Corpo e consciência tornar-se-ão inseparáveis, na medida em que o saber terá sua origem no vivido. Negando a repetição que contaminava o conhecimento da modernidade, Nietzsche projetou em Zaratustra (1983) a dissolução dos valores ocidentais. A superação do concebido e do percebido pelo vivido, pela poiéses. Esta é a brecha (subjetiva) que revela Nietzsche, o que não nega o marxismo. Exatamente por isso, reconhecendo a riqueza tanto do pensamento de Nietzsche, quanto do de Marx, ao se perguntar a quem apelar31, responde: Este projeto do espaço, obra à escala planetária de uma dupla atividade produtora e criadora (estética e material), acaso seria o substituto empírico do sobre-humano, um produto de substituição? Não. Implica antes uma superação (Ueberwinden) à escala do mundo, capaz de precipitar no abolido os resultados mortos do tempo histórico. E comporta uma provação concreta, ligada à prática e à totalidade do possível, segundo o pensamento mais radical de Marx; ligada igualmente à restituição inteira do sensível e do corpo, em conformidade com a poesia nietzschiana.

Lefebvre Nietzschiza o pensamento marxista? Não. Tão somente enxerga na revolução urbana a convergência entre o legado de Marx e a fecunda prática poética em Nietzsche. Ao pensar a cidade como lócus da fragmentação da vida cotidiana, do conhecimento, das classes

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LEFEBVRE, Henri. Hegel, Marx, Nietzsche ou O reino das sombras. Póvoa de Varzim: Ulisseia, 1976.

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sociais, Lefebvre32 critica o espaço como valor de troca e tudo o mais que ele envolve e determina, especialmente as relações sociais. Vai além, ao pensar a implosão deste espaço e a reunião de seus estilhaços noutra dinâmica, verificando a primazia subjaz ao corpo, à vontade de poder, ao devir. Apelar somente para os postulados de Marx incorre em cravar os pés na realidade social do século XIX e inocular a idéia de que as condições não mudaram, tomando o trabalho como determinante maior do fenômeno humano total e a classe operária em moldes pouco convencionais à contemporaneidade. Erro de muitos adeptos do marxismo. A luta agora é permanentemente cultural, possível na práxis poética no/do espaço o que não reserva às relações de produção pouca importância. Pelo contrário, a inclui e a reconhece indispensável. Daí a luta pelo espaço, pois que a “A reforma urbana é uma reforma revolucionária33.” Retomemos nossa primeira indagação, a qual nos motivou a este esforço: Porque os estudantes? Abre-se uma brecha, então talvez possamos responder. Porque os estudantes? O anúncio do urbano e a revolta estudantil como vontade de poder O urbano se anuncia, abre-se uma brecha. Não imaginariam, talvez, as classes dirigentes que de tanto se repetir e, evidentemente, se expandir, algo de novo haveria de substituir a sociedade industrial? O antígeno era, aos poucos, gestado. Cabe-nos decantá-lo, apreender suas facetas e seus encadeamentos. Decodificá-lo? Assim diriam os cientistas da computação. Temos em nossa frente um objeto a decifrar, cujos instrumentos de que dispomos podem nos levar ao erro crasso. A experiência histórica do extraordinário alcançada pelo maio de 1968 ainda não foi plenamente compreendida. Ela se processa nos interstícios deste século que se arvora, o século XXI, o qual temos defrontado com uma incerteza quase absoluta. A processualidade do maio de 1968 não é, contudo, linear. Ela opera-se em movimentos de continuidades e descontinuidades, tendo permitido algumas diferenças, a nosso ver, determinantes. Porque os estudantes? Estamos aptos a responder apenas quando nos despojamos de antigas formas de conhecimento, calcadas na lógica formal, as quais impedem que se considere as ações dos sujeitos históricos. A crítica ao estruturalismo decorre desta análise. LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001. LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999. 33 LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999. 32

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Pois bem, foram os estudantes os protagonistas do maio de 1968 porque os raios do urbano passaram a refletir com toda força sobre a penumbra da sociedade industrial. Outros tempos. O fenômeno urbano que despontava envolvia uma organização social cuja divisão entre as classes configurava-se numa miríade de gradientes. O consumo passara a balizar a reprodução das relações de produção e, ao equalizar determinadas camadas sociais do ponto de vista de suas necessidades, muita coisa mudava. As aspirações, os desejos, o sentido da luta. Tudo tomaria outro sentido com o progresso da cotidianidade e seus produtos. As formas ora se condensariam, ora veriam chegar o momento da queda, assim como os referenciais de outrora. O maio de 1968 foi, antes de tudo, a prova do conflito cultural. Tendo dominado a natureza em velocidade sem precedentes na história, o homem fora sentindo que a vida tornava-se, aos poucos, insuportável. Isto é a negação das classes sociais? De modo algum. Mas há que se concordar que tanto burguesia quanto proletariado comungam de pulsões idênticas. Não podemos nunca cometer o equívoco de levar às últimas conseqüências a divisão de classes. Isto seria de um economicismo fatal. Ao contrário desta e de qualquer perspectiva teórico-metodológica semelhante, apenas podemos apreender a ebulição cultural que é a modernidade por meio do abandono ou, em certos casos, da revisão de determinados postulados. Não é diferente com o pensamento marxista. Algo novo aparece, um novo espectro ronda: o urbano. Como enxergálo? Pelo vislumbre da obra, da apropriação, do uso e do gozo. Permanece o conflito de classes? Sem dúvidas, mas com motivos divergentes de meados do século XIX. O conflito é, agora, fundamentalmente cultural. Consiste na busca por uma nova maneira de viver. A revolução, desta sorte, tem um caráter total; a um só tempo econômica, política e cultural. O projeto não se trata mais da luta pelos meios de produção como condição para a emancipação. O projeto passou a ser a revolução aqui e agora, hic et nunc, na busca por uma nova linguagem, uma nova ética, uma nova estética. Nega o marxismo? Não, o supera. Dele aproveita, sobremaneira, a linguagem do capital empreendida por Marx. Reelabora o humanismo e traz à luz o pensamento de Nietzsche, geralmente pouco compreendido. Ao fazê-lo, Lefebvre cumpriu seu método, o materialismo histórico dialético. Não teorizou simplesmente, tendo buscado apreender determinados fenômenos da modernidade que não figuravam o tempo de Marx. Recorreu a Nietzsche ao correr tinta sobre a vida cotidiana. Para Lefebvre, a poesia de Nietzsche completava o pensamento de Marx. Ao mesmo tempo, fica a impressão de que entre ambos há uma lacuna. Ouso dizer que é a 94

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história. Talvez estejamos no ínterim entre o capitalismo avançado que vislumbrou Marx e a superação pela vontade de poder perfilada por Nietzsche. Atrás demais para um, à frente demais para outro. Como lhes disse, estamos tratando de processo. O pensamento está aberto. Ele é metafilosófico, procura, no vivido, sua superação. Portanto, na práxis poética, a qual ao mesmo tempo cria espaço (forma, espaço físico) pelo seu conteúdo (espaço social, relações sociais) e conhecimento (espaço mental). Para se compreender este quiproquó é necessário saltar do procedimento metodológico indutivo e dedutivo para o transductivo. Nesta perspectiva, a revolução do/no urbano é u-tópica. Nova topia, nova forma. Tanto física, quanto mental e social. A partir de novas relações sociais, calcadas no uso, conteúdos originais constituirão a realidade, os quais determinarão formas não menos originais. Do ponto de vista do pensamento, este processo será concomitante, ou seja, um novo saber emergirá. Tendo superado o primado da troca e a própria filosofia, o vivido determinará o tempo e o espaço dos homens. Será o fim das representações ilusórias, das consciências mistificadas e do cotidiano como miséria. Por enquanto, temos o desafiante objetivo de examinar as peças, reunir os fragmentos deste colossal período histórico que é a modernidade. O maio de 1968 certamente foi um momento rico. Riqueza que tributo à experiência de quem o vivenciou. Não preciso ser convencido de que seus participantes compartilharam instantes nos quais tudo desmoronava, qualquer forma de poder, expressão de preconceito, repressão dos desejos, prudência do gozo, moderação da libido. Ávidos por aniquilarem os re-sentimentos que marcam o mundo moderno, as vidas pulsavam freneticamente.

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Gênero e Trabalho Revisitados

O “trabalho doméstico” hoje sob as lentes de Helena Hirata e Roswitha Scholz1 Íris Nery do Carmo* INTRODUÇÃO Nos anos oitenta do século XX, nos países ocidentais, se começou a falar em “feminização” do mercado de trabalho, dada a crescente participação feminina na produção iniciada na década de setenta e intensificada nos anos seguintes. Tal ascensão profissional das mulheres ocorreu como resultado da conjugação de diversos fatores, como a reestruturação produtiva, a reemergência2 do movimento feminista e as transformações culturais. A partir da academia e do ativismo feminista, mulheres passaram a realizar estudos que buscavam conjugar a diferença de gênero às reflexões sobre trabalho e emprego, de modo a subverter os paradigmas hegemônicos de disciplinas como a economia política e a sociologia do trabalho3. Ao fim do século XX, comparações internacionais mostram a permanência da divisão sexual do trabalho no espaço e no tempo4. A conciliação entre vida profissional e vida familiar é ainda quase que exclusivamente realizada pelas mulheres, variando apenas as configurações dessa conciliação.5 Ou seja, a despeito da realização do trabalho remunerado, continuam a

*Socióloga e Mestranda em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo pela Universidade Federal da Bahia. 1 Esse artigo expõe resumidamente o principal argumento desenvolvido em minha monografia de conclusão do Bacharelado em Ciências Sociais com habilitação em Sociologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBa), sob orientação da Prof. Dra. Iracema Guimarães. Deixo aqui meus agradecimentos à Profa. Dra. Gabriela Hita, pelas críticas e sugestões que foram feitas durante a pesquisa. 2 Utilizo o termo “reemergência” como forma de designar o que se convencionou chamar de “feminismo da segundo onda”, de modo a não invisibilizar outras manifestações feministas anteriores. 3 Isto não quer dizer que, hoje, essas disciplinas tenham logrado de fato integrar uma dimensão sexuada nas suas análises sobre o trabalho. Há dificuldades persistentes para a integração. Como sublinhado por Hirata e Kergoat (2008, p. 41), “Apesar do peso crescente das pesquisas sobre as mulheres e o trabalho na sociologia do trabalho francesa nestes últimos anos, as figuras neutras do pobre, do precário, do vulnerável, são construídas em referência à figura masculina do assalariado com emprego a tempo integral e contrato com duração indeterminada.” 4 HIRATA, Helena. Apresentação à edição brasileira. In: HIRATA, Helena; MARUANI, Margaret (Orgs.). As Novas fronteiras da desigualdade: homens e mulheres no mercado de trabalho. São Paulo: Editora Senac, 2003b. 5 Na Alemanha e Inglaterra, por exemplo, a disponibilidade das mulheres para a conciliação é obtida através do trabalho feminino em tempo parcial (HIRATA, 2003b).

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recair principalmente sobre elas as responsabilidades com o cuidado das crianças, dos adultos dependentes e com a gestão da esfera familiar. Bila Sorj6 acrescenta que a despeito de muitos autores concordarem que a participação masculina nas rotinas domésticas vem aumentando, o ritmo da mudança é extremamente lento; na França, por exemplo, entre 1986 e 1999 os homens aumentaram em apenas dez minutos o tempo consagrado às tarefas domésticas7.

Para a autora, estamos bastante

distantes das “imagens difundidas na mídia de que estaríamos diante da emergência de uma nova identidade masculina que valoriza o vínculo doméstico”.8 A participação masculina no domínio privado não é só limitada, como também seletiva. Assim, a maior parte do tempo que os homens dedicam aos afazeres domésticos é gasta nos cuidados com os filhos, em especial em atividades que envolvem interação e mediação com o mundo público – como levar as crianças ao médico e fazer compras. Este envolvimento diminui na medida em que as atividades implicam trabalho manual, rotineiro e solitário.9 Segundo Salvador Deddeca10, de forma nenhuma o trabalho doméstico desaparece e se torna obsoleto no desenvolvimento social atual. Ao contrário do propalado pelos defensores da teoria do tempo livre, o período de tempo gasto para a reprodução social na realização de afazeres domésticos tem sido acompanhado por certa estabilidade, mesmo com toda parafernália eletroeletrônica que caracteriza os domicílios e que não reduz o tempo aí gasto com os afazeres. Portanto, trata-se de um objeto de pesquisa que é ainda hoje recorrente. No espaço acadêmico feminista, os debates em torno da categoria trabalho foram constantes. Eles buscaram dar visibilidade a estas atividades realizadas gratuitamente por mulheres no âmbito doméstico e romper com as abordagens sexualmente “neutras”.

SORJ, Bila. Trabalho remunerado e trabalho não-remunerado. In: VENTURI, Gustavo; RECAMÁN, Marisol; OLIVEIRA, Suely de. (Orgs.). A mulher brasileira nos espaços público e privado. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004. p. 107-120. 7 HIRATA, Helena. Reorganização da produção e transformações do trabalho: uma nova divisão sexual? In: BRUSCHINI, C.; UNBEHAUM, S. G. (Orgs). Gênero, democracia e sociedade brasileira. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 2002. Apud SORJ, Bila. Trabalho remunerado e trabalho não-remunerado. In: VENTURI, Gustavo; RECAMÁN, Marisol; OLIVEIRA, Suely de. (Orgs.). A mulher brasileira nos espaços público e privado. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004. p. 107-120. 8 Ibid., p. 108. 9 SORJ, Bila. Trabalho remunerado e trabalho não-remunerado. In: VENTURI, Gustavo; RECAMÁN, Marisol; OLIVEIRA, Suely de. (Orgs.). A mulher brasileira nos espaços público e privado. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004. p. 107-120. 10 DEDDECA, Salvador. Tempo, trabalho e gênero. In: COSTA, Ana Alice; et al. (Orgs.). Reconfiguração das relações de gênero no trabalho. São Paulo: CUT Brasil, 2004. p. 21-52 6

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Termos como “trabalho doméstico”11, “atividade doméstica”, “atividade reprodutiva”, “serviço doméstico”, “emprego doméstico”, “trabalho familiar”, “trabalho reprodutivo”12, “trabalho de reprodução”13, “serviços do cuidado (care)” e “trabalhos de cuidados”14, expressam as diferentes maneiras pelas quais as teorias feministas buscaram dar conta deste problema e, como coloca Carrasco15, indicam a não resolução deste intenso debate, pois “El hecho de que exista una variada terminología para expresar un único concepto, es un indicador de que ninguno de los términos utilizados es totalmente satisfactorio.” Também Matxalan Iza16 argumenta que: [...] cuando se habla de trabajo no remunerado y de cuidado, nos encontramos ante términos imprecisos o con confusas delimitaciones. Considero que es el reto del feminismo, tanto desde la teoría como en la práxis, trabajar ahora en adelante en los instrumentos adecuados que nos permitan una comprensión más plena de estas actividades, para conseguir, de forma reflexiva, una maior precisión en su definición que posibilite el enriquecimiento de los planteamientos teóricos y los instrumentos para la acción política.

Embora esta seja uma discussão cujas origens se encontram nos anos 70, fenômenos atuais contribuem para trazer novamente o debate sobre trabalho doméstico à tona e intensificar a confusão terminológica. As novas configurações no cenário mundial, como a globalização, a reestruturação da organização do trabalho e a crise do Estado de Bem Estar Social (nos países desenvolvidos), levaram, na sociologia, à revisão de conceitos até então consolidados na disciplina. As novas dinâmicas de gênero articuladas a essas transformações reacendem alguns debates enraizados nos estudos feministas/sobre a mulher, e entre eles figura o tema do trabalho doméstico.

COSTA, Maria Rosa Dalla. La sostenibilidad de La reprodución: de las luchas por La renta a La salvaguarda de La vida. . In: CANTOS, Débora A.; IZA, Matxalen L.; OROZCO, Amaia P. (Orgs.). Laboratorio feminista: transformaciones del trabajo desde una perspectiva feminista. Madri: Tierradenadie ediciones, 2006. 12 LISBOA, Teresa Kleba. Fluxos migratórios de mulheres para o trabalho reprodutivo: a globalização da assistência. Estudos Feministas. Florianópolis, v.15, n. 3, p. 805-821, set./dez., 2007. 13 HUGUET, Montserrat Galcerán. Introdución: produción y reproduction en Marx. In: CANTOS, Débora A.; IZA, Matxalen L.; OROZCO, Amaia P. (Orgs.). Laboratorio feminista: transformaciones del trabajo desde una perspectiva feminista. Madri: Tierradenadie ediciones, 2006. 14 CARRASCO, Cristina. La paradoja del cuidado: necesario pero invisible. Revista de economia crítica, n. 5, março 2006, p. 39-64. PALOMO, Maria Teresa Martín. “Domesticar el trabajo: una reflexión a partir de los cuidados”. Cuadernos de Relaciones Laborales, v. 26, n. 3, p. 13-44. 2008. 15 Ibid.. p. 45. 16 IZA, Matxalen Legarreta. Sobre el trabajo y los trabajos (o las polissemias del trabajo): reflexiones desde una perspectiva femenista. In: CANTOS, Débora; IZA, Matxalen; OROZCO, Amaia. (Orgs.). Transformaciones del trabajo desde una perspectiva femenista: producción, reproducción, deseo, consumo. Madri: Tierradenadie Ediciones, 2006. p. 228. 11

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Nesse contexto, o presente trabalho se propõe a explorar no plano teórico e a luz destes fenômenos contemporâneos, as tensões existentes entre duas abordagens específicas: de um lado, a teorização acerca da Divisão sexual do trabalho, que na tradição do feminismo francês possui uma trajetória específica, mas que também faz parte de outras correntes feministas de base marxista/materialista; por outro lado, a “Teoria do valor-dissociação” cujos aportes teóricos se encontram na chamada “Nova Crítica do Valor” e que está sendo desenvolvida principalmente pela socióloga alemã Roswitha Scholz. Considerando-se que os confrontos entre distintas abordagens contribuem para o avanço da pesquisa científica, buscarei investigar de que modo essas correntes de pensamento fornecem subsídios para a compreensão sociológica destes fenômenos empíricos que estão ocorrendo e acrescentando novos elementos ao panorama contemporâneo. Assim, trata-se de uma leitura em contraponto das duas correntes, mas esse não é um objetivo que visa descobrir puramente as diferenças e semelhanças entre elas, mas, antes, operar esse contraponto tendo como fio condutor a categoria “trabalho doméstico”. A escolha dessas duas abordagens se deu tendo-se como critério as posições que ocupam no campo teórico sobre gênero e trabalho. Fazendo um breve e limitado apanhado histórico deste panorama, percebemos que no início as autoras desse campo utilizavam-se do referencial marxista como paradigma para pensar as relações de gênero, de modo que analisava-se a opressão das mulheres vendo esta como uma peça funcional aos dispositivos econômicos do capitalismo17. O abandono desta análise de tipo mercantil e economicista foi seguido pelos “esquemas duais de pensamento”18 que viam a sociedade de forma dicotômica, como produção versus reprodução. Neste contexto, Helena Hirata e Daniele Kergoat, através da problemática da Divisão sexual do trabalho e das Relações sociais de sexo (rapport social de sexe), empreenderam pioneiramente a busca por romper com o dualismo e pensar as relações de classe como sexuadas, assim como as relações de gênero como perpassadas por pontos de vista de classe. No Brasil as suas pesquisas são bastante publicadas e arrisco a dizer que possuem hoje uma posição preponderante nos estudos sobre o tema.

NYE, Andrea. A periferia da teoria marxista. In: ____. Teoria feminista e as filosofias do homem. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1995 18 CARRASCO, Cristina. Introdução: para uma economia feminista. Articulando Eletronicamente, [S.l.], n. 126, 2005. Disponível em: <http://www.articulacaodemulheres.org.br>. Acesso em: 21 jun. 2010. 17

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Com relação à Roswitha Scholz, a escolha da Teoria do Valor-Dissociação se deu a partir da percepção de que os seus pressupostos teóricos – pós-marxistas19 – divergem, ao menos no Brasil, daqueles majoritariamente utilizados no panorama intelectual sobre gênero e trabalho, constituindo, assim, um contraponto interessante para fomentar o debate, além de dar visibilidade à sua obra, pouquíssimo lida no país 20. Ao passo que o marxismo, durante muito tempo, forneceu as categorias para se pensar a opressão da mulher em termos materialistas, Roswitha Scholz, por sua vez, opera uma ruptura ao que denomina “marxismo vulgar”, o que lhe confere um novo ponto de vista para se pensar velhos temas como a relação patriarcado-capitalismo e o “trabalho doméstico”. Para que este seja o tema norteador do confronto entre as abordagens escolhidas, será necessário comparar o que cada autora entende por “trabalho” – e consequentemente por “não-trabalho”. Uma estratégia recorrente nos estudos feministas consistiu em, partindo do conceito moderno desenvolvido por Marx, que entende trabalho como trabalho assalariado industrial (e masculino, como acrescentam as feministas), alargá-lo de modo que pudesse abarcar não só a realização dos afazeres no lar, como também outras formas atípicas de “trabalho”, como o “trabalho” voluntário, o “trabalho” para consumo próprio, etc.21 No entanto, como colocado por Prieto22, considera-se que “trabalho” é uma categoria constantemente (re) inventada e (re) negociada, isto é, disputada pelos diferentes atores sociais – bem como pelas diversas correntes de pensamento/prática feminista. Deste modo, cabe a esta pesquisa investigar como as abordagens selecionadas se comportam frente a este conceito de “trabalho‟ doméstico” e as suas implicações teórico-metodológicas. Isto acarreta discussões mais amplas, tais como os diferentes entendimentos sobre a relação públicoprivado e as suas atuais configurações. Este trabalho se insere no campo da Sociologia Feminista, acarretando em mais rupturas no que se refere ao mito do conhecimento desinteressado, ao inserir uma relação

Afirmação feita com base no artigo “O pós-marxismo e o fetiche do trabalho”, no qual o autor – Robert Kurz –, também membro da escola da Nova Crítica do Valor, expõe o projeto de superação do marxismo (KURZ, 2003a). 20 Há apenas um artigo de sua autoria publicado no país. A maioria dos artigos consultados para este trabalho foram publicados em Portugal. 21 PALOMO, Maria Teresa Martín. “Domesticar el trabajo: una reflexión a partir de los cuidados”. Cuadernos de Relaciones Laborales, v. 26, n. 3, p. 13-44. 2008. 22 PRIETO, Carlos. De la „perfecta casada‟ a la „conciliación de la vida familiar y laboral‟ o la querelle des sexes. In: ____. Trabajo, género y tiempo social. Madri: Hacer/Complutense, 2007, p. 21-48. Apud PALOMO, Maria Teresa Martín. “Domesticar el trabajo: una reflexión a partir de los cuidados”. Cuadernos de Relaciones Laborales, v. 26, n. 3, p. 13-44. 2008. 19

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entre produção de conhecimento e emancipação social. Como coloca Lucila Scavone 23, a Sociologia Feminista é aquela que mantém sua atenção para as relações de dominação masculina, não dispensando então o diálogo com o movimento e a realidade social, “[...] pois pressupõe que teoria e ação política se retroalimentam.” Nesse contexto, Pierre Bourdieu 24 defende que a sociologia é “uma ciência que incomoda”, pois a sua função consiste em compreender o mundo social a partir do poder – uma “operação que não é socialmente neutra e que preenche sem dúvida alguma função social, entre outras razões porque não há poder que não deva uma parte – e não a menor – da sua eficácia ao desconhecimento dos mecanismos que o fundam.” DUAS ABORDAGENS FEMINISTAS ACERCA DO TRABALHO: HELENA HIRATA E ROSWITHA SCHOLZ Sucedendo àquelas construções teóricas socialistas-feministas iniciadas nos anos setenta do século passado, e se construíndo criticamente sobre o legado destas, temos como exemplares as teorias que vem sendo desenvolvidas por Helena Hirata, de um lado, e, de outro, por Roswitha Scholz, desde os anos oitenta e noventa (respectivamente), até hoje em dia, e que serão apresentadas nas próximas linhas. De antemão podemos dizer que as autoras possuem em comum a visão de que exploração econômica e dominação masculina são indissociáveis. No entanto, para chegar a essa conclusão, cada uma recorre a caminhos teóricos/metodológicos distintos – a serem apresentados. Podemos adiantar também, a título de introdução, que a velha relação públicoprivado presente no feminismo é rediscutida por elas, cada uma à sua maneira. Em comum está o fato de essas autoras não trabalharem com sistemas duais de pensamento, em termos de produção-reprodução (entendidos como sistemas separados que se inter-relacionam). Ao meu ver, Helena Hirata escapa do dualismo sistêmico através da sua tese da

SCAVONE, Lucila. “Estudos de gênero: uma sociologia feminista?” Estudos Feministas. Florianópolis, v. 16, n. 1, p. 174, jan./abril, 2008 24 BOURDIEU, Pierre. Uma ciência que incomoda. In: ______. Questões de sociologia. Lisboa: Fim de Século, 2003. p. 32. 23

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“coextensividade”, e Roswitha Scholz através da construção teórica do princípio do valordissociação. HELENA HIRATA E DANIÈLE KERGOAT: A DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO Nas palavras de Lucila Scavone25, “A divisão sexual do trabalho e as relações sociais de sexo são conceitos que estão na base da teoria materialista do feminismo francês de inspiração marxista.” Para Helena Hirata e Danièle Kergoat, esses dois conceitos são indissociáveis e juntos formam um sistema teórico coerente. É então imprescindível explicar o que cada termo designa bem como o seu surgimento dentro do contexto do feminismo francês. Durante a exposição serão indicados os acréscimos e mudanças promovidos por elas, e principalmente por Hirata, em suas construções teóricas ao longo das suas trajetórias de pesquisa. Para tratar das relações entre homens e mulheres na sociedade ocidental, as pesquisadoras feministas francesas construíram a noção de “relações sociais de sexo” (rapport social de sexe), que é fruto de uma história do movimento na França que foi distinta do que ocorreu em outros países, como os Estados Unidos, por exemplo. No contexto francês, o marxismo foi uma teoria central de referência para o feminismo, e em relação ao qual conceitos básicos foram criados – como “sexagem”, “classe de sexo”, “modo de produção doméstica” e etc.26 Michèle Ferrand27 caracteriza as relações sociais de sexo em quatro pontos que, ao meu ver, também estão presentes na teoria de Hirata e Kergoat, quais sejam: (1) antagonismo, (2) transversalidade, (3) dinamismo e historicidade, e (4) hierarquização social. Diferentemente do português, “o francês [...] oferece duas possibilidades para descrever as relações sociais: rapport social e lien social [relação social e vínculo social]”28. SCAVONE, Lucila. Prefácio à edição brasileira. In: HIRATA, Helena; et al. (Orgs.). Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009. p. 10. 26 HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. “A classe operária tem dois sexos”. Estudos Feministas, Florianópolis, ano 2, n. 1, p. 93-100, jan./jun. 1994. KERGOAT, Danièle. A propósito de las relaciones sociales de sexo. In: HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. La división sexual del trabajo: permanencia y cambio. Argentina: Asociación Trabajo y sociedad, 1997. p. 31-40. 27 FERRAND, Michèle. Relações sociais de sexo e relações de gênero: entrevista com Michèle Ferrand. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 13, n. 3, p. 677-688, set./dez. 2005. Entrevista realizada por Carmen Rial, Mara Coelho de Souza Lago e Miriam Pillar Grossi. 28 HIRATA, Helena. Reorganização da produção e transformações do trabalho: uma nova divisão sexual? In: BRUSCHINI, C.; UNBEHAUM, S. G. (Orgs). Gênero, democracia e sociedade brasileira. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 2002. p. 114. 25

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Relação social, por sua vez, no contexto da língua francesa, remete às relações de antagonismo e poder que possuem base material – tal como no seu uso marxista em “relações sociais de classe”. É a esta acepção que o conceito de relações sociais de sexo se reporta. 29 A primeira característica consiste então, no antagonismo presente entre os dois pólos das relações sociais de sexo; por antagonismo entende-se interesses opostos envolvidos na relação: o homem procura manter a sua dominação e a mulher tenta libertar-se. Annie-Marie Devreux30 acrescenta que esta característica permite que se pense na existência de uma luta – empreendida não só pelas mulheres, como normalmente se pensa, mas também pelos homens: Os resultados empíricos das pesquisas sobre a situação social das mulheres mostram claramente que, do ponto de vista do devir da dominação de sexo, os interesses dos homens e das mulheres opõem-se radicalmente. Eles lutam para preservar os benefícios obtidos com a dominação sobre as mulheres e a exploração do trabalho delas. Elas lutam para se desembaraçar dessa opressão e reduzir os efeitos dela sobre suas condições de vida, sobre sua liberdade e sobre sua integridade física.

De acordo com a segunda característica, essas relações são transversais, ou seja, não estão presentes apenas ou principalmente no âmbito familiar, mas, antes, elas estruturam e organizam todos os âmbitos da vida social – não só a produção como também a reprodução, não só o âmbito ideológico como também o material31. Assim, as relações sociais de sexo dinamizam todos os campos sociais e são, portanto, atravessadas pelas outras relações sociais (como as relações de classe)32. Nas palavras de Kergoat (2009, p. 71), essa relação social “[...] é estruturante para o conjunto do campo social e transversal à totalidade desse campo, o que não é o caso do conjunto das relações sociais.” É essa percepção que permite a articulação das relações sociais de sexo com a divisão sexual do trabalho, tal como será visto mais à frente.

É importante notar aqui que, em trabalho posterior, Hirata e Kergoat (2003) admitem a existência de vínculo social, o que complexifica as relações sociais de sexo: “Há, simultaneamente, para os grupos sociais presentes – os gêneros, se se preferir – e para os indivíduos, vínculo e antagonismo. Nenhum princípio de coerência teórica – antagonismo ou vínculo social – pode ser eleito como princípio de explicação universal. Ao contrário, diversidade e contradição estão no centro de toda a prática social. Por conseguinte, vínculo social não invalida relação social e vice-versa (p. 115). 30 DEVREUX, Anne-Marie. “A Teoria das relações sociais de sexo: um quadro de análise sobre a dominação masculina”. Sociedade e Estado, Brasília, v.20, n. 3, p. 577, set./dez. 2005. 31 A despeito desta dupla consideração, percebe-se um enfoque maior sobre a base material dessas relações, idéia esta que será desenvolvida posteriormente, na análise da concepção de divisão sexual do trabalho propriamente e da hipótese colocada pelas autoras. 32 KERGOAT, Danièle. A propósito de las relaciones sociales de sexo. In: HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. La división sexual del trabajo: permanencia y cambio. Argentina: Asociación Trabajo y sociedad, 1997. p. 3140. 29

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As relações sociais de sexo são relações históricas e dinâmicas. Enquanto construção sócio-histórica, essas relações são passíveis de transformação: “Homens e mulheres nascem dentro de uma sociedade definida por relações sociais de sexo, mas todos participam da produção e reprodução dessas relações”.33 Por fim, nas relações sociais de sexo as “categorias sociais de sexo” são hierarquizadas através de posições distintas para homens e mulheres na sociedade. Colocada a problemática trazida pela teoria das relações sociais de sexo, é importante notar que, com o passar do tempo há o fim crescente da utilização do termo –, tal como coloca Ferrand34: Entretanto, o termo relações sociais de sexo era longo, pesado, difícil de utilizar nos títulos, etc... e, com a influência das anglo-saxãs e a ajuda das instituições internacionais, as feministas francesas puseram-se, pouco a pouco, a utilizar o termo [gênero]; principalmente em equipes de pesquisa como o MAGE (Mercado do Trabalho e Gênero) ou nos Cahiers du Genre, que sucederam os Cahiers du GEDISST35, porém, sempre com uma certa reticência, em razão de seu aspecto redutor. Por isso, empregase freqüentemente a terminologia bastarda de relações de gênero, no sentido de manter uma idéia dinâmica.

Esta eliminação do termo relações sociais de sexo seguida pelo uso, de forma reticente, do gênero36 é também percebida nos trabalhos mais recentes de Hirata e Kergoat. 37 Dito isto, passamos agora para a articulação do termo – relações sociais de sexo – com a divisão sexual do trabalho. A propriedade da transversalidade está diretamente relacionada a esta articulação: admitindo-se que as relações sociais de sexo organizam e estruturam todos os âmbitos sociais, torna-se possível pensar na relação entre a esfera produtiva (a qual em FERRAND, Michèle. “Relações sociais de sexo e relações de gênero: entrevista com Michèle Ferrand”. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 13, n. 3, p. 680, set./dez. 2005. Entrevista realizada por Carmen Rial, Mara Coelho de Souza Lago e Miriam Pillar Grossi. 34 Ibid., p.682. 35 Grupos de estudos sobre divisão social e sexual do trabalho – coletivo do qual Helena Hirata e Danièle Kergoat fazem parte. 36 É importante notar aqui a grande utilização que há, a partir dos anos noventa, da conceituação da categoria gênero pela historiadora Joan Scott (1994), que traz grandes divergências com relação ao enfoque materialista da teoria da divisão sexual do trabalho. Para a autora, “[...] gênero significa o saber a respeito das diferenças sexuais” (p.12); saber esse entendido como relativo, e histórico, de modo que seus usos e significados constituem os meios pelos quais as relações de poder são construídas (Foucault). Essa conceituação leva a uma mudança de ênfase, voltada para um estudo dos processos, isto é, de como as hierarquias de gênero são construídas e legitimadas através da significação, e não mais para as origens desta hierarquia – como é em parte a ênfase da teoria da divisão sexual do trabalho. 37 Como em: HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. “Novas configurações da divisão sexual do trabalho”. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 132, p. 595-609, set./dez. 2007. HIRATA, Helena. “Tecnologia, formação profissional e relações de gênero no trabalho”. Revista Educação e Tecnologia, Curitiba, vol. 6, p. 144-156, 2003. HIRATA, Helena. “Globalização e divisão sexual do trabalho”. Cadernos Pagu, Campinas, n. 17/18, p. 139-156, 2001. HIRATA, Helena. “A precarização e a divisão internacional e sexual do trabalho”. Sociologias, Porto Alegre, ano 11, n. 21, p. 24-41, jan./jun. 2009. 33

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geral é vista apenas em termos de classe social) e a esfera reprodutiva (na qual se pensa em geral que as relações de sexo estão aí encerradas). Daniele Kergoat38 critica o uso meramente descritivo e sociográfico da divisão sexual do trabalho, que apenas constata a existência de uma diferenciação das atividades segundo o sexo. Para a autora, trata-se não só de descrever, mas também de articular esta descrição com uma reflexão que permita pensar nos meios pelos quais a sociedade utiliza esta diferenciação para hierarquizar as atividades. Tal reflexão só é possível, por sua vez, através da articulação com a noção de relações sociais de sexo. As autoras assim definem a divisão sexual do trabalho: [...] é em primeiro lugar a imputação aos homens do trabalho produtivo – e a dispensa do trabalho doméstico – e a atribuição do trabalho doméstico às mulheres, ao passo que são cada vez mais numerosas na nossa sociedade salarial as mulheres a querer entrar e se manter no mercado de trabalho.39

A divisão sexual do trabalho é constituída por relações antagônicas e hierárquicas: assim, o valor – termo aqui utilizado no sentido antropológico, designando uma importância socialmente atribuída – do trabalho masculino é maior do que o valor do trabalho feminino, produção vale mais que reprodução, produção masculina vale mais do que produção feminina, etc. Esta desigualdade de valor, por sua vez, induz a uma hierarquia social, provinda de uma relação social de sexo que é hierarquizante. Daí que seria necessário se falar de “opressão” e de “dominação”, ao invés de “desigualdade” ou “injustiça”. 40 De forma semelhante à tese de autores marxistas, como Heidi Hartmann41, Hirata e Kergoat acreditam que a divisão sexual do trabalho é um fator prioritário para a sobrevivência da hierárquica relação social de sexo: É assim que somos levadas a propor a seguinte hipótese: em nossas sociedades salariais, a divisão do trabalho entre os sexos é o que está em jogo nas relações sociais de sexo. [...] Em outros termos: suprima-se a imputação do trabalho doméstico ao grupo social das mulheres e são as relações sociais que desmoronam, junto com as relações de força, a dominação, a violência real ou simbólica, o antagonismo que elas

KERGOAT, Danièle. A proposito de las relaciones sociales de sexo. In: HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. La división sexual del trabajo: permanencia y cambio. Argentina: Asociación Trabajo y sociedad, 1997. p. 3140. 39 HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. A Divisão sexual do trabalho revisitada. In: HIRATA, Helena; MARUANI, Margaret (Orgs.). As Novas fronteiras da desigualdade: homens e mulheres no mercado de trabalho. São Paulo: Editora Senac, 2003. cap. 7, p. 113. 40 Ibid. 41 HARTMANN, Heidi. Un matrimonio mal avenido: hacia una unión más progresiva entre marxismo y feminismo. Barcelona: Fundacio Campalans, 1988. Disponível em: <http://www.fundaciocampalans.com/>. Acesso em 04 maio 2010. 38

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carregam. A divisão sexual do trabalho está no âmago do poder que os homens exercem sobre as mulheres.42

Embora as autoras admitam a existência de uma instância subjetiva (ou ideológica) presente nas relações entre homens e mulheres, Kergoat 43 coloca que é na divisão sexual do trabalho que as relações sociais de sexo se afirmam materialmente. Portanto, para entender as relações de homens e mulheres em sua complexidade é insuficiente levar em conta só a relação de dominação homem/mulher44. Esta constatação leva a se pensar na “coextensividade” entre as relações de sexo e de classe, ou seja, há uma sobreposição parcial de uma pela outra, sem que haja qualquer preeminência de um dos lados45. De forma semelhante a Heleieth Saffioti46, para a qual dominação e exploração são um só fenômeno, as autoras concluem que a exploração econômica e a opressão masculina são indissociáveis: “não é só em casa que se é oprimida nem só na fábrica que se é explorado (a)!”.47 Em pesquisa empírica realizada no Japão, Hirata48 buscou aplicar este princípio teórico da coextensividade, pensando a relação entre a esfera produtiva das indústrias japonesas (bem como seu modelo de gestão da mão de obra), e a esfera reprodutiva, composta pela organização familiar (patriarcal) presente no país. Foi visto que as chamadas “artes domésticas” japonesas, como o arranjo floral, são passadas para as meninas através da socialização primária, na família, e formam as futuras operárias, que vão trabalhar nos ramos microeletrônico e têxtil, nos quais são requeridas qualidades como paciência, minúcia, destreza e habilidade manual – presentes na técnica do

HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. A Divisão sexual do trabalho revisitada. In: HIRATA, Helena; MARUANI, Margaret (Orgs.). As Novas fronteiras da desigualdade: homens e mulheres no mercado de trabalho. São Paulo: Editora Senac, 2003. cap. 7, p. 114. 43 KERGOAT, Danièle. A proposito de las relaciones sociales de sexo. In: HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. La división sexual del trabajo: permanencia y cambio. Argentina: Asociación Trabajo y sociedad, 1997. p. 3140. 44 Ibid. 45 HIRATA, Helena. Reorganização da produção e transformações do trabalho: uma nova divisão sexual? In: BRUSCHINI, C.; UNBEHAUM, S. G. (Orgs). Gênero, democracia e sociedade brasileira. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 2002. 46 SAFFIOTI, Heleieth. Rearticulando gênero e classe social. In: BRUSCHINI, Cristina; COSTA, Albertina de Oliveira (Orgs.). Uma questão de gênero. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1992. p. 183-215. 47 HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. “A classe operária tem dois sexos”. Estudos Feministas, Florianópolis, ano 2, n. 1, p. 96, jan./jun. 1994. 48 HIRATA, Helena. Vida reprodutiva e produção: família e empresa no Japão. In: KARTCHEVSKY-BULPORT, Andrée; et al. O Sexo do trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p.63-78. (Mulheres em Movimento, v. 01). 42

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arranjo floral. Portanto, o trabalho doméstico possui importância primordial para a qualificação das operárias. Com relação aos empregos masculinos, constatou-se que “somente os modos de organização da família e as relações vigentes no casal viabilizam certas políticas de gestão de mão de obra”49 que caracterizam o modelo japonês. Assim, as políticas de organização do trabalho baseadas na participação operária na gestão da empresa, como os círculos de controle de qualidade e o “defeito zero”, requerem grande envolvimento do operário, como o trabalho fora das horas delimitadas pela jornada de trabalho (frequentemente realizado em casa) e os deslocamentos sistemáticos dos trabalhadores. Esse envolvimento máximo do trabalhador é, por sua vez, possibilitado pelo tipo de vida familiar, no qual as mulheres são encarregadas da totalidade das tarefas domésticas e da educação dos filhos. Portanto, para os homens, todas as dificuldades ligadas à reprodução são eliminadas, de modo que estes trabalhadores possuem estabilidade na carreira, sendo promovidos por tempo de serviço e tendo direito ao emprego vitalício. Com relação às mulheres, ocorre o oposto, pois há uma descontinuidade que acompanha o ciclo da vida reprodutiva: quando jovens, trabalham em tempo integral; a vinda dos/as filhos/as leva a uma pausa no trabalho assalariado, retornando após a sua criação, dessa vez para empregos em tempo parcial. Assim, os três pilares reconhecidos do modelo japonês – emprego vitalício, promoção por tempo de serviço e baixa taxa de desemprego – são válidos apenas para os homens assalariados. Conclui-se, a partir dessa abordagem relacional, que as estruturas familiares contribuem diretamente para o desenvolvimento do sistema produtivo e para o crescimento da produtividade do trabalho nas empresas – sendo este um aspecto normalmente ignorado nas análises sobre o modelo de gestão japonês, que enfocam apenas o espaço fabril. Constatase muito mais uma “[...] continuidade e supressão das linhas de demarcação entre esfera produtiva e esfera reprodutiva [...]”50, do que uma marcação clara de onde começa e onde termina o público e o privado. Esta trajetória teórica traz conseqüências para as ciências sociais: a ampliação do conceito da categoria trabalho, de forma que abarque o trabalho não remunerado, o trabalho informal e, principalmente, o trabalho feminino – dando visibilidade ao “trabalho doméstico” e, por conseguinte, à exploração da mulher pela realização gratuita

49 50

Ibid., p. 69. Ibid., p. 78.

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deste trabalho51; também o questionamento da separação de disciplinas, como sociologia do trabalho e sociologia da família é uma consequência dessa abordagem.52 Do que foi visto até aqui, fica claro que as autoras elaboraram um quadro teórico que diverge dos sistemas duais de pensamento (produção-reprodução) comuns às elaborações sobre gênero e classe. A divisão sexual do trabalho opera a ponte entre os dois âmbitos sociais, através da ampliação do conceito de trabalho, que permite relacionar trabalho profissional e “trabalho doméstico”. Essa ampliação tem papel fundamental para a idéia da coextensividade, pois é através dela que o público e o privado são pensados como um só contínuo. ROSWITHA SCHOLZ: A TEORIA DO VALOR-DISSOCIAÇÃO Roswitha Scholz53 faz parte da chamada “Nova crítica do valor”, uma corrente de pensamento crítico que, de um modo geral, discute e elabora uma crítica reformulada ao capitalismo, que tem como centro a parte do pensamento de Karl Marx que questiona a mercadoria, o valor, o fetiche e o trabalho. Essa seria uma parte da teoria marxiana ignorada pelo marxismo tradicional. A outra base para o pensamento dos/as autores/as dessa corrente teórica está na Escola de Frankfurt54, a qual é identificada como precursora da crítica do valor. Em um debate crítico com essas posições teóricas, Roswitha Scholz tem, por sua vez, elaborado uma nova concepção da crítica feminista, denominada Teoria do valor-

HIRATA, Helena. Reorganização da produção e transformações do trabalho: uma nova divisão sexual? In: BRUSCHINI, C.; UNBEHAUM, S. G. (Orgs). Gênero, democracia e sociedade brasileira. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 2002. HIRATA, Helena. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 132, p. 595-609, set./dez. 2007. 52 HIRATA, Helena. Reorganização da produção e transformações do trabalho: uma nova divisão sexual? In: BRUSCHINI, C.; UNBEHAUM, S. G. (Orgs). Gênero, democracia e sociedade brasileira. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 2002. 53 A autora foi membro, até 2004, do corpo editorial da revista alemã “Krisis – contribuições à crítica da sociedade da mercadoria” (Krisis - Beiträge zur Kritik der Warengesellschaft). A partir de então e em decorrência de cisões internas (ver SCHOLZ, 2004a), a autora hoje faz parte do corpo editorial da revista “EXIT! - Crítica e Crise da Sociedade da Mercadoria”. 54 Como é admitido por Robert Kurz (1992), também membro da Revista Exit!, em entrevista: “Vejo a Escola de Frankfurt como uma base para todo o meu pensamento. Mas há dois procedimentos dentro da esquerda na Alemanha, ou na Europa, que seria melhor que deles nos afastássemos. Um deles é o das pessoas que aprenderam a idéia, mas estão coladas à idéia e ficam administrando o legado da Escola de Frankfurt. Outro procedimento é aquele das pessoas que acabam descartando as idéias da Escola de Frankfurt como se fossem uma camisa suja que precisa ser jogada no lixo. Toda idéia morre se ela não for levada adiante. É preciso conhecer as idéias de Adorno e Horkheimer, mas é preciso também retrabalhá-las, para que não morram.” 51

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dissociação55, através da qual a autora se propõe a demonstrar que é possível tematizar a “questão social” e as diferenças sociais – como de gênero – sem que se tenha que abrir mão de um dos dois.56 Para o projeto teórico dos Grupos de pesquisa “EXIT!” e “Krisis”, dos quais Roswitha Scholz fez/faz parte, o marxismo não deve, hoje, ser descartado como um “erro”, nem tampouco levado adiante na sua integralidade. Apenas junto com o fim do seu objeto – o capital – a teoria de Karl Marx poderá morrer. Antes, é preciso superar o marxismo, retendolhe alguns aspectos, acrescentando-lhe novos, de modo a construir uma “crítica do capitalismo para o século XXI”, “com Marx para além de Marx”.57 Aqui a teoria marxiana não é vista como um conjunto fechado e uniforme, como ocorre normalmente, mas, antes, identificam-se dois teóricos numa mesma cabeça, duas vias contraditórias e que não correspondem à divisão entre um “jovem Marx” e um “Marx maduro”, visto que a contradição se estende por toda sua obra (KURZ, 2005). Tal constatação leva Robert Kurz58, também membro dos Grupos “EXIT!”/“Krisis”, a falar em um “duplo Marx”. De um lado está o “Marx exotérico”59 – mundialmente conhecido e acolhido de “modo fetichista” pelo movimento operário e pelo marxismo tradicional (desde o movimento bolchevique, passando pela revolução chinesa e os movimentos de libertação nacional anticolonialistas, até a “Nova Esquerda” e o movimento estudantil de 196860). Neste Marx vulgarizado, as categorias centrais da socialização moderna capitalista seriam pensadas ontológica e positivamente; as críticas são voltadas principalmente para a apropriação da mais-valia (aqui entendida como “trabalho não pago”) ao capital – não enxergando que a mais-valia faz parte de um mecanismo sistêmico mais amplo, no qual está imbricada. Assim, para este marxismo tradicional, alimentado pelo “Marx exotérico”, as A teoria de Scholz é denominada também com “Teoria do valor-dissociação”, “teoria da dissociação-valor” e “teoria do valor-separação”, a depender da tradução para o português. No entanto, nas traduções, é mais recorrente o nome “teoria do valor-dissociação”. 56 SCHOLZ, Roswitha. A nova crítica social e o problema das diferenças. Lisboa: Obeco, 2005. Disponível em: < http://obeco.planetaclix.pt/roswitha-scholz3.htm>. Acesso em: 29 março 2010. 57 Referência ao título de um dos artigos escritos por Robert Kurz (2007) “Crítica do capitalismo para o século XXI – com Marx para além de Marx: o projecto teórico do Grupo „EXIT!”. 58 KURZ, Robert. O pós-marxismo e o fetiche do trabalho: sobre a contradição histórica na teoria de Marx. Lisboa: Obeco, 2003a. Disponível em: <http://www.geocities.com/grupokrisis2003/rkurz136.htm>. Acesso em: 07 maio 2009. KURZ, Robert. Crítica do capitalismo para o século XXI – com Marx para além de Marx: o projeto teórico do grupo “EXIT!”. Lisboa: Obeco, 2007. Disponível em: Acesso em: 08 nov. 2009. 59 Exotérico: “Diz-se de ensinamento transmitido ao público sem restrição.” (FERREIRA, 2000, p. 305). 60 Á respeito desse momento do marxismo, Robert Kurz abre uma exceção: “A única fonte realmente original dentro da „Nova Esquerda‟ (ao lado de Ernst Bloch, cuja recepção foi contudo periférica) era a Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, que já fora formulada muito antes e que em geral ficou à margem das coisas marxistas” (KURZ, 2003a, p. 2). 55

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alternativas sociais situam-se na busca pelo controle estatal: por exemplo, busca-se “substituir a „propriedade privada dos meios de produção‟ (jurídica) pela propriedade estatal”.61 Por sua vez, o trabalho é ontologizado e tido como positivo, figurando como uma obrigação nas medidas propostas para a revolução comunista, no texto do Manifesto Comunista: “8. Unificação do trabalho obrigatório para todos, organização de exércitos industriais, particularmente para a agricultura.”62 Este Marx é também o Marx da “luta de classes”, para o qual a história é movida por interesses sociais antagônicos. Assim, busca-se a elevação da classe proletária à classe dominante, que por sua vez se apropriará do capital – antes nas mãos da burguesia: O proletariado utilizará sua supremacia política para arrancar pouco a pouco todo o capital da burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado, isto é, do proletariado organizado como classe dominante, e para aumentar o mais rapidamente possível o total das forças produtivas.63

Segundo a perspectiva da Nova Crítica do Valor, “o conceito de capital aqui [...] já não indica uma relação social, mas um aglomerado de riqueza material, que uma classe pode tirar à outra [...]”.64 Demonstrando a sua herança iluminista, a teoria da dominação presente neste jargão marxista reduziria o problema de modo utilitarista: a “classe dominante” se apropria da mais-valia para uso e proveito individual dessas pessoas, num egoísmo utilitário. O processo tautológico de valorização do capital se reduziria à vontade subjetiva do sujeito – “vontade de exploração” –, e a um mero cálculo de interesses. Por sua vez, a segunda perspectiva contém o núcleo de radicalidade 65 da teoria de Marx. Na leitura de Kurz e da “EXIT!”, este “Marx esotérico”

66

foi sepultado precocemente

pelo próprio marxismo. “Trata-se daquela dimensão da teoria de Marx que permaneceu completamente obscurecida na esquerda até hoje existente”.67

KURZ, Robert. O duplo Marx. Lisboa: Obeco, 2005. Disponível em: < http://obeco.planetaclix.pt/rkurz8.htm >Acesso em: 15 nov. 2009. 62 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich Engels. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo Editorial, 1998. p. 58. 63 Ibid. 64 KURZ, Robert. O duplo Marx. Lisboa: Obeco, 2005. Disponível em: < http://obeco.planetaclix.pt/rkurz8.htm >Acesso em: 15 nov. 2009 65 O termo é aqui entendido em sentido estrito, isto é, denotando um movimento que desce às raízes dos fenômenos sociais. 66 Esotérico: “1. Relativo ao esoterismo (1 e 2). 2. Diz-se de ensinamento ligado ao ocultismo. 3. Diz-se de ensinamento reservado a poucos.” (FERREIRA, 2000, p.286). 67 KURZ, Robert. Crítica do capitalismo para o século XXI – com Marx para além de Marx: o projeto teórico do grupo “EXIT!”. Lisboa: Obeco, 2007. Disponível em: Acesso em: 08 nov. 2009. 61

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Em contraposição ao “Marx marxista”, aqui a mais-valia aparece como a forma assumida pelo valor68. Categorias como a racionalidade econômica empresarial, o trabalho abstrato, e suas formas de expressão: valor, mercadoria, dinheiro e mercado, são submetidas a uma crítica radical, como objetos negativos e históricos (ao invés de positivos e ontológicos) – e portanto superáveis. A modernidade é marcada por uma transformação histórica do valor, que passa de mediador de trocas simples a fim em si mesmo. Há uma inversão entre fim e meio: a produção de bens de uso que antes era o próprio sentido da produção, passa a ser mero suporte da valorização do valor. O dispêndio de energia que tinha como objetivo a produção de coisas úteis, agora serve a este movimento tautológico. O resultado desta reificação é vermos as mercadorias como tendo vida própria, subtraindo o fato de que se trata de um produto de uma relação social fetichista.69 A consequência lógica dessa crítica marxiana do fetichismo está na própria superação do trabalho, assim como da forma mercadoria e da relação monetária, que, em teoria e prática, foram deixados intactos pelo marxismo operário. Tal consequência é sugerida n‟A Ideologia Alemã, onde pode-se ler: “[...] este fenômeno [a subordinação dos indivíduos à divisão do trabalho] só pode ser suprimido se for suprimida a propriedade privada e o próprio trabalho.”70 Nessa interpretação da parte radical dos escritos de Marx, a luta de classes é compreendida de maneira distinta: ela não contribui para a queda do capitalismo, mas, antes, constitui o próprio motor interno ao desenvolvimento do sistema. Assim, o movimento

Robert Kurz (1991), em seu glossário, assim define o verbete “Valor”: “Tanto etimologicamente quanto na prática, o conceito de valor parece designar o "bom" como tal, o desejável. Apesar da acentuação diferente, confundem-se como sinónimos o valor económico e os "valores" éticos e culturais. Não é à toa que o fundador da economia política clássica, Adam Smith, actuava paralelamente como filósofo da moral. Mas na conceituação totalmente inversa de Marx, o valor económico é, precisamente o contrário, o negativo central da sociedade da mercadoria. Nela é "objetificado" o trabalho abstracto, a forma social fetichista dos produtos. A expressão de um produto "ter" um chamado valor, tem para ele um significado duplo. Primeiro, enquanto são valores económicos, extingue-se a qualidade sensível dos produtos, não passando eles de representantes materiais de trabalho abstracto indiscriminado, que apenas como tais podem ser transformados na forma de encarnação do dinheiro. Em segundo lugar, porém, revela-se na forma-valor abstracta dos produtos, que se expressa pelo preço em dinheiro, o absurdo social de que o processo vivo da apropriação da natureza pelo homem e das relações sociais por ela medidas assumem a forma de propriedades de objectos mortos. A actividade viva dos homens é absorvida, por assim dizer, por seus próprios produtos, que por esse mecanismo absurdo são promovidas a quase-sujeitos da sociedade, enquanto os homens, seus criadores, são degradados a meros acessórios. No automovimento do dinheiro termina essa inversão.” 69 SCHOLZ, Roswitha. Primeira parte: sobre o conceito de valor e de valor-dissociação. Lisboa: Obeco, 2000. Disponível em: <http://obeco.planetaclix.pt/roswitha-scholz6.htm>. Acesso em: 05 maio 2009. 70 MARX, Karl. A ideologia alemã. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 62. 68

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operário, ao impor o aumento dos salários, a redução da jornada de trabalho, a liberdade de associação, o sufrágio universal, a intervenção estatal, entre outros, impôs na verdade, condições do desenvolvimento e expansão do capitalismo industrial.71 O reconhecimento dos proletários fabris enquanto sujeitos civis foi condição para a “livre” concorrência 72. Aqui é evidente a semelhança com estudo realizado por Max Horkheimer com o objetivo de “elucidar o enigma não resolvido do marxismo tradicional: o de um proletariado que jamais se tornou o arauto tão esperado da história”73 e cujos “resultados obtidos insinuam que a classe operária alemã se oporia muito menos firmemente a uma tomada de poder pela direita do que seria capaz de acreditar a ideologia militante.”74 Para o projeto teórico da Nova crítica do valor, trata-se de finalmente “sepultar” o “Marx „marxista” e, inversamente, trazer à luz, pela primeira vez, esse “outro Marx”. 75 Esse projeto visa, portanto, superar o “marxismo vulgar” (KURZ, 2000), tendo em vista não só a crítica marxiana do valor, como também o panorama social, econômico e político do século XXI na modernidade tardia e as suas consequência para a formulação atual de uma teoria crítica. Roswitha Scholz, por sua vez, assume criticamente essas posições como ponto de partida para a sua tese. Depreende-se daí uma diferença fundamental com relação às demais autoras anteriormente vistas: a referência teórica da Crítica do valor, cujo centro está no “outro Marx” e não nos seus intérpretes marxistas ou no “Marx vulgar”. Para a autora, a Crítica fundamental do valor, exposta acima, é, por sua vez, passível de crítica na medida em que “[...] comporta-se de modo masculinamente universal, como é típico do pensamente masculino do Ocidente, e sugere ser igualmente válido para todos e para todas.”76 Ela propõe então uma alteração qualitativa, de modo que esta teoria seja também uma crítica ao patriarcado.

KURZ, Robert. O duplo Marx. Lisboa: Obeco, 2005. Disponível em: < http://obeco.planetaclix.pt/rkurz8.htm >Acesso em: 15 nov. 2009 72 KURZ, Robert. Para lá da luta de classes. Lisboa: Obeco, 2003b. Disponível em: Acesso em: 23 nov. 2009. 73 LALLEMENT, Michel. Depois de Marx: teorias críticas e sociologias radicais. In: ____. História das idéias sociológicas: de Parsons aos contemporâneos. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2004. cap. 6, p. 201. 74 Ibid., p. 202. 75 KURZ, Robert. O pós-marxismo e o fetiche do trabalho: sobre a contradição histórica na teoria de Marx. Lisboa: Obeco, 2003a. Disponível em: <http://www.geocities.com/grupokrisis2003/rkurz136.htm>. Acesso em: 07 maio 2009. 76 SCHOLZ, Roswitha. “O valor é o homem. Teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos”. Revista Novos Estudos. São Paulo, n. 45, p. 16, julho 1996. 71

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A teoria crítica construída pelos grupos “EXIT!” e “Krisis” seria indiferente às relações entre os sexos, não enxergando que também no sistema produtor de mercadorias tem que ser feita a lida da casa, tem que se cuidar e educar as crianças, etc. Estas são tarefas habitualmente delegadas às mulheres e que não podem ser totalmente supridas pelo mercado. Assim, “Todo conteúdo sensível que não é absorvido na forma abstrata do valor [...] é delegado à mulher [...].”77 ; esta relação é assimétrica: o elemento sensível é marcado como feminino e por isso mesmo inferiorizado. Para Scholz, esta dimensão não deve ser subtraída da análise e tampouco pode ser apreendida através dos instrumentos analíticos criados por Marx.78 A formação de uma esfera privada “feminina” – família, sexualidade, etc. – dissociada de uma esfera pública “masculina” – trabalho, estado, política, ciência, arte, etc. – é recente, já que nem sempre produção e reprodução estiveram em polos tão opostos. A autora faz uma análise histórica buscando verificar sua tese acerca dessa dissociação, partindo da Antiguidade à formação Moderna – quando se instauraria uma relação inédita entre os sexos, inaugurando a clausura doméstica da mulher79. Nesta incursão histórica Scholz aborda as representações que foram feitas sobre as mulheres (e homens) presentes no imaginário social de cada época; esta incursão através da subjetividade tem papel primordial na defesa da sua tese acerca da dissociação, e ao mesmo tempo marca um aspecto da sua abordagem da relação capitalismo-patriarcado que destoa das autoras anteriormente referenciadas. Assim, em sociedades agrárias – não-européias e também as velhas sociedades da Europa – as relações patriarcais não possuíam a mesma dimensão que tem na nossa sociedade. A mulher tinha um poder informal baseado na produção e controle dos recursos vitais. A esfera público-jurídica, masculina, não se encontrava totalmente dissociada. Por sua vez, é na Grécia antiga que se encontram as raízes do patriarcado moderno. Uma racionalidade de cunho masculino e mercantil se firma, ao passo que a esfera pública adquire novo significado com as assembléias populares. Entretanto, esta esfera pública nascente era reservada aos homens, cabendo às mulheres atenienses o lar e a maternidade. A mulher servia de antípoda, na qual se projetava tudo o que não era admitido no âmbito público. Ela já era vista como lasciva, eticamente inferior, irracional, intelectualmente pouco Ibid., p. 18. Ibid. 79 Ibid. 77

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dotada, etc. Com a derrocada da sociedade antiga, desmoronou esta esfera pública dissociada. Entre os germanos, as mulheres gozavam de certa reputação mística e as relações patriarcais modernas teriam que começar do zero até se reconstruir. Na sociedade Medieval e em especial na Alta Idade Média, apesar da inferioridade jurídica, a mulher podia dedicar-se ao comércio, possuía a prática do curandeirismo e o oficio de parteira. A própria imagem da bruxa não possuía o estigma negativo que posteriormente viria a ter. No início da Idade Moderna, essa situação feminina antes contraditória, torna-se drasticamente pior. A imagem negativa da mulher como um “poço de pecados” propagada pela Igreja passa a ter grande repercussão. A caça às bruxas, ao instaurar uma campanha de aniquilação contra o feminino, é interpretada por Scholz como um pressuposto sangrento para a ascensão da modernidade. As qualidades “femininas” devem ter aparecido como uma ameaça à incipiente modernidade masculina: “Para que a racionalidade do homem moderno pudesse impor-se na esteira do legado antigo e para além dele, era necessário portanto literalmente eliminar a mulher e tudo o que ela representava (o sensível, o difuso, o incalculável, o contingente, etc.).”80 Estava em jogo um outro projeto de relacionamento com a natureza – de apropriação e exploração desta –, no qual os homens expropriaram brutalmente a ciência medicinal empírica das mulheres. Agora era também preciso modificar os costumes; o autocontrole dos afetos e paixões passa a ser requerido pela economia monetária, a divisão do trabalho e o comércio. Durante a Reforma, desenvolveu-se o ideal materno como a nova imagem da mulher, defendida sobretudo por Lutero, para o qual a mulher deveria ser domesticada; há assim uma nova codificação da sexualidade feminina, agora encerrada ao casamento e a família, em contraste do que ocorria na Idade Média. Tal esboço de uma feminilidade burguesa pouco a pouco se alastrou por todas as classes e estamentos sociais. Na Ilustração, o que ocorre é uma polarização constante do caráter entre os sexos, uma diferenciação na qual se imputam aos homens a ação e a racionalidade no espaço público, e às mulheres, a passividade e emotividade. As mulheres deveriam tornar agradável a vida do marido com sua assistência e cuidado, o que testemunha o quanto a racionalidade patriarcal capitalista fugiu ao controle do homem, que passa a depender do bem estar doméstico. No século XIX as esferas cindiram-se cada vez mais, e a “vocação materna” da mulher burguesa ganhou ainda mais relevância, de modo que já era grande a discrepância entre a 80

Ibid., p. 22.

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existência feminina familiar, e a inclinação profissional masculina. Boa parte do que até então era produzido em casa passa a ser comercializado. Também este século viu nascer o primeiro movimento feminista, que com a sua exigência de emancipação própria à Ilustração, reclamava por uma melhor formação e pelo direito à atividade remunerada. Assim, o exílio doméstico permanecia indisputado e inquestionado, com a exceção de uma minoria radicalizada do movimento.81 É, portanto, na modernidade capitalista ocidental que os âmbitos da produção e da reprodução são sexualmente cindidos82, dando lugar a duas dimensões distintas tanto em forma como conteúdo e que se relacionam dialeticamente. Para Roswitha Scholz, o movimento tautológico do trabalho abstrato deve ser entendido como um princípio masculino, cuja ascensão histórica é acompanhada pelo confinamento da mulher e a sua repressão. A Teoria do valor-dissociação não reclama para si, portanto, qualquer caráter ontológico e transcultural, demonstrando os seus próprios limites83: O valor-dissociação pode ser definido como um princípio fundamental / relação estrutural que está activo nas diversas regiões mundiais; mas ao mesmo tempo têm de ser tidas em conta as respectivas relações (entre sexos) concretas e empíricas que não se encaixam no conceito geral do valor-dissociação e que, entre outras coisas, também correspondem a condicionalismos culturais. Diga-se a propósito que múltiplas referências se fazem sentir na era da globalização. Assim sendo, o valor-dissociação também pode, por exemplo, sobrepor-se a relações tradicionalmente simétricas entre os sexos, ou em dado momento sexismos tradicionais podem amalgamar-se com sexismos do valor-dissociação, dando lugar a uma qualidade nova, sem que essas relações tenham rostos ocidentais.84

Compreende-se que as relações entre os sexos é produto da cultura e que as relações patriarcais não tem sempre o mesmo significado: “Um patriarcado no sentido de uma determinação patriarcal das relações sociais por meio do trabalho abstrato e do valor é típico apenas da sociedade ocidental.”85 Em decorrência deste raciocínio, as atividades femininas “dissociadas” ligadas à reprodução não poderiam ser denominadas “trabalho”, como o faz determinadas autoras feministas. Equiparar o “trabalho” doméstico à categoria trabalho assalariado é visto por Ibid. Como é colocado pela autora, “Nos tempos pré-modernos não existia a mulher como dona-de-casa nem o homem como sustento da família” (SCHOLZ, 2004b, p. 2). 83 SCHOLZ, Roswitha. A teoria da dissociação sexual e a teoria crítica de Adorno. Lisboa: Obeco, 2004b. Disponível em: <http://obeco.planetaclix.pt/roswitha-scholz9.htm>. Acesso em: 10 jan. 2010. 84 SCHOLZ, Roswitha. A nova crítica social e o problema das diferenças. Lisboa: Obeco, 2005. p. 10. Disponível em: < http://obeco.planetaclix.pt/roswitha-scholz3.htm>. Acesso em: 29 março 2010. 85 SCHOLZ, Roswitha. O valor é o homem. Teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos. Revista Novos Estudos. São Paulo, n. 45, p. 17, julho 1996. 81

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Scholz como um equívoco que pode levar a uma maior reificação das relações sociais no plano teórico, uma vez que tenta-se compreender esse âmbito através de categorias relativas à produção de mercadorias. Para a autora, a esfera das atividades “femininas” é regida por uma outra lógica, sendo o “outro lado da moeda” do trabalho abstrato. A saída está em, ao buscar o reconhecimento das atividades domésticas, não superestimar o valor a ponto de denominá-las “trabalho”, mas, antes, fazer a crítica ao trabalho, entendendo o movimento tautológico do trabalho abstrato como um princípio masculino, que se consolidou historicamente, dando lugar ao “patriarcado ligado à forma valor”.86 Aqui fica clara uma diferença radical com relação à literatura feminista sobre o trabalho, que, como vimos, frequentemente utiliza o termo “trabalho doméstico” – como uma forma de dar visibilidade a esta atividade não-paga – e outros, como “divisão sexual do trabalho” – que busca pensar de

modo sexuado e

relacionalmente o público e o privado através do “trabalho”. A autora apresenta seu desconforto com os termos “trabalho” e “atividade” para designar os afazeres domésticos da seguinte forma: Ainda que tanto o trabalho doméstico como a educação dos filhos representem de certo modo o reverso do trabalho abstrato e não possam por isso ser apreendidos teoricamente com o conceito de "trabalho", isso não significa que eles estejam absolutamente livres de aspectos instrumentais ou de normas "protestantes". Eis por que a meu ver se deve procurar um terceiro conceito, com o qual se possa definir com mais precisão teórica a atividade tradicional da mulher na esfera da reprodução, já que o termo "atividade" é por demais difuso e possui um caráter excessivamente genérico. Além disso, por intermédio do conceito "atividade" poder-se-ia alimentar o velho mito da dona de casa ociosa. Essa questão, longe de ser irrelevante, não pode entretanto ser desenvolvida aqui. Na falta de tal esclarecimento, sirvo-me de ora em diante do insatisfatório conceito de "atividade" ao tratar do "trabalho" na esfera da reprodução.87

Conclui-se que o “dissociado” não pode ser apreendido com o instrumentário da crítica do valor, pois há também aí o afeto, a assistência, o cuidado humano, o erotismo, a sexualidade e o “amor” – sentimentos, emoções e posturas que se contrapõem à racionalidade empresarial presente no âmbito do trabalho abstrato.88 O que a crítica do valor realizada por Robert Kurz (entre outros) denominava capitalismo, agora passa a ser a “sociedade do valordissociação”.89 Ibid. Ibid., p. 16. 88 SCHOLZ, Roswitha. Primeira parte: sobre o conceito de valor e de valor-dissociação. Lisboa: Obeco, 2000. Disponível em: <http://obeco.planetaclix.pt/roswitha-scholz6.htm>. Acesso em: 05 maio 2009. 89 SCHOLZ, Roswitha. A nova crítica social e o problema das diferenças. Lisboa: Obeco, 2005. Disponível em: < http://obeco.planetaclix.pt/roswitha-scholz3.htm >. Acesso em: 29 março 2010. 86 87

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Na visão de Scholz, os sujeitos sociais são estruturados por essa dissociação: são projetadas na mulher não só certas atividades como também qualidades e sentimentos “femininos”: sensualidade, emotividade, fraqueza de entendimento e de caráter, etc; ao sujeito masculino é imputado a força de se impor, o intelecto, força de caráter, etc. O “patriarcado produtor de mercadorias” – outra denominação dessa estrutura – consiste, assim, num modelo civilizacional, que possui não só uma dimensão simbólico-cultural, como também psico-social.90 À diferença das feministas socialistas que buscam estudar a opressão das mulheres em sua base material, descarta-se o esquema base material-superestrutura, pois para a estrutura do valor-dissociação, os níveis psico-social e simbólico-cultural são tão constitutivos quanto o nível material.91 A Teoria do valor-dissociação configura uma “metateoria”: não parte do princípio de que os indivíduos correspondem totalmente à estrutura como definida, mas, antes, defendese que “Os homens e as mulheres nem se encaixam nela numa relação de um para um, nem conseguem subtrair-se por completo às correspondentes atribuições.”92 Em consonância com a crítica da lógica da identidade realizada por Adorno 93, ressaltase que o fato de a “dissociação-valor” ser um princípio fundamental constituinte da forma social capitalista não significa que ela possa ser elevada à contradição principal, pois “[...] a teoria da dissociação sexual tem de garantir um lugar teoricamente equivalente para outras formas da discriminação social”94 – como o racismo e o antissemitismo. Assim, a totalidade social abarcada pela teoria scholziana é uma totalidade em si fragmentária, contraditória e quebrada, consciente de que o conceito de valor-dissociação não abarca a totalidade das relações sociais. Tem-se a pretensão de uma “grande teoria”, mas, como ressalta a autora, não no sentido das grandes teorias abrangentes androcêntricas e universalistas; ou seja, não se trata de uma “tese”, uma fórmula ou uma definição que, uma vez apontada no quadro, seja auto-suficiente e possa tudo deduzir.95 Seguindo este princípio, o racismo e o antissemitismo devem ser levados a sério em suas constituições diversas. Enquanto as mulheres eram consideradas seres domesticados, na SCHOLZ, Roswitha. A teoria da dissociação sexual e a teoria crítica de Adorno. Lisboa: Obeco, 2004b. Disponível em: <http://obeco.planetaclix.pt/roswitha-scholz9.htm>. Acesso em: 10 jan. 2010. 91 Ibid. 92 Ibid., p. 2. 93 Ibid. 94 Ibid., p. 9. 95 SCHOLZ, Roswitha. A nova crítica social e o problema das diferenças. Lisboa: Obeco, 2005. Disponível em: < http://obeco.planetaclix.pt/roswitha-scholz3.htm>. Acesso em: 29 março 2010. 90

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cultura ocidental da conquista colonial, negros e “selvagens” se por um lado eram encarados como seres naturais (à semelhança das mulheres), por outro eram vistos como irremediavelmente subdesenvolvidos. De modo paradoxal, no olhar do antissemitismo os judeus foram constituídos como “negativamente super-civilizados”, com “super-humanidade” e gananciosos96. Para a autora, apesar de não se poder reclamar para o racismo uma construção unitária aplicável para todo o Ocidente, pode-se dizer, de modo viável, que “no desenvolvimento capitalista [...] as construções racistas tiveram alguma importância para a constituição em sujeito do moderno indivíduo masculino e branco ocidental [...] precisamente também tendo em vista a exploração econômica.”97 A “dissociação-valor” está submetida à transformação histórica. Atualmente a esfera do trabalho abstrato deixou de ser exclusivamente masculina. Isto não quer dizer, no entanto, que o pressuposto patriarcal básico e fundante da relação de valor foi eliminado. A despeito de toda atividade remunerada feminina, o trabalho não tem até hoje, para as mulheres, o mesmo “poder fundador de identidade”98 que tem para os homens. Robert Kurz acrescenta que Uma mulher com profissão ou politicamente ativa não se desvencilha das marcas sociais que lhe são imputadas pela cultura dominante masculina. Ela continua, em princípio, como responsável pela cozinha, pelos filhos e pelo „amor‟, ou seja, nunca é levada à sério na economia ou na política.99

A autora discorda de certas correntes feministas que, dada tal identidade masculina, redefinem as mulheres como superiores em sua inferioridade e a transformam, juntamente com a feminidade, em alternativa social. Para Scholz, as condutas e qualidade atribuídas a homens e mulheres são produtos da longa evolução histórica do “patriarcado do valor” 100, sendo a mulher um indivíduo pelo menos tão reduzido quanto o homem. Nesse sentido, Bila Sorj101 coloca que a percepção da convivência harmônica entre modernidade e formas institucionalizadas ou espontâneas de sexismo promoveu a suspeita do feminismo para com o “projeto da modernidade”, o qual oferecia pouca chance de se ver Ibid. Ibid., p. 10-11. 98 SCHOLZ, Roswitha. “O valor é o homem. Teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos”. Revista Novos Estudos. São Paulo, n. 45, p. 34, julho 1996. 99 KURZ, Robert. Dominação sem sujeito: sobre a superação de uma crítica social redutora. Lisboa: Obeco, 2000. Disponível em: Acesso em: 22 nov. 2009. 100 SCHOLZ, Roswitha. “O valor é o homem. Teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos”. Revista Novos Estudos. São Paulo, n. 45, p. 34, julho 1996. 101 SORJ, Bila. O feminismo na encruzilhada da modernidade e pós-modernidade. In: COSTA, Albertina; BRUSCHINI, Cristina. Uma questão de gênero. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992. p. 15-23. 96 97

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incluída a perspectiva das mulheres: ou elas abandonavam sua identidade particular e se integravam no “humano universal”, ou estariam excluídas do mundo público. Frente a isto o feminismo, aliado ao pensamento pós-moderno, se recusaria a colocar-se diante destas alternativas e apostaria na reivindicação de uma “cultura particularista”, isto é, na defesa da idéia de que traços da personalidade feminina – como a ética do cuidado – podem conter habilidades cognitivas e emocionais que devem ser incorporadas na reestruturação da cultura dominante. Fazendo um paralelo com o pensamento scholziano, percebemos que há uma proximidade com a crítica feminista pós-moderna – nos termos colocados por Sorj – na medida em que questiona o universalismo androcêntrico e vê a modernidade de forma radicalmente crítica. No entanto, ao mesmo tempo há um distanciamento desta perspectiva, na medida em que não se credita maior potencial revolucionário às qualidades femininas, mas, antes entende-se que elas são tão reduzidas quantos as qualidades masculinas, e, portanto, ambas devem ser superadas, bem como a cisão fundante da sociabilidade capitalista ocidental. Na Pós-modernidade102 a estrutura da dissociação apresenta nova face. Com a desintegração da família nuclear, as mulheres passam a ser igualmente responsáveis pela profissão e pela família. Essa situação se tornou visível a partir das favelas do dito Terceiro Mundo – e hoje alcança escala mundial –, aonde as mulheres são precariamente responsáveis tanto pelo dinheiro como pelo viver, educando os filhos com a ajuda de parentes e vizinhas do mesmo sexo. Apesar de o homem já não mais assumir sozinho o sustento da família, não desapareceu a hierarquização dos gêneros.103 Com o aumento vertiginoso da atividade feminina remunerada, a dissociação prossegue mesmo no interior da esfera pública: as mulheres são sempre as mais responsabilizadas pelos filhos e pelo “trabalho” doméstico, e no trabalho remunerado são mais mal pagas, sendo raro encontrá-las em posições públicas de direção, etc. Há, assim,

“Se me refiro à pós-modernidade, para mim o que está em causa não é uma definição exacta mas, sim, um conceito que designa tendências dominantes do pós-guerra, como a dissolução de estruturas e contextos de vida tradicionais, assim como os processos de individualização que a acompanham, e que por sua vez estão interligados com fortes tendências de pluralização e também com uma multiplicidade de formas „multicultural‟.” (SCHOLZ, p. 14, 2005). 103 SCHOLZ, ROSWITHA. A teoria da dissociação sexual e a teoria crítica de Adorno. Lisboa: Obeco, 2004b. Disponível em: <http://obeco.planetaclix.pt/roswitha-scholz9.htm>. Acesso em: 10 jan. 2010. 102

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certa continuidade com as atribuições sexuais modernas, que continuam a fazer-se sentir mesmo no pós-fordismo.104 Carmen Bachiller105 faz uma descrição dessa atual condição feminina bastante ilustrativa do que é colocado por Scholz: Pero si en la época victoriana la “inactividad” era garantía de la feminidad, en la actualidad la capacidad de solventar la domesticidad sin que se note se entiende como parte de la actividad desenfrenada de la “mujer moderna”, una “superwoman” que no sólo tiene éxito profesional sino que continúa respondiendo a los imperativos de la feminidad en todas sus formas: es ama de casa, madre, cuida de su aspecto y es sexualmente complaciente con su pareja.

Assim, anos após a publicação das primeiras definições sobre a “meta-estrutura do valor-dissociação”, Scholz acredita que é preciso levar em consideração algumas coisas, como o fenômeno atual do “asselvajamento do patriarcado produtor de mercadorias”, visto que na crise estrutural do sistema capitalista, as mulheres são responsabilizadas não só pela reprodução, mas em igual medida pelo ganha-pão, mantendo sua subvalorização.106 A teoria de Scholz não se torna irrelevante com as transformações atuais pósmodernas, mas, antes, assume uma posição manifestada por Adorno107, para o qual de um lado está o essencial – as leis do movimento da sociedade –, e de outro, a aparência, cabendo à sociologia conceitualizar teoricamente os desvios entre essência e aparência. Depreende-se daí que a dissociação-valor é um princípio da forma da totalidade social, agora como antes: “[...] as recentes modificações empíricas da relação de gênero têm de ser entendidas a partir dos mecanismos e estruturas da própria dissociação-valor.”108 Conclui-se que “[...] a questão da mulher é tudo menos uma questão exclusivamente feminina [...]”.109 Na problemática atual da sociedade em crise (ecológica, social e econômica), encontra-se pois a expressão dessa questão: A crise social e ecológica do mundo é produto dos “potenciais de destruição do sensível” presentes na forma do valor; tais potenciais, por sua vez, resultam do mecanismo SCHOLZ, Roswitha. Primeira parte: sobre o conceito de valor e de valor-dissociação. Lisboa: Obeco, 2000. Disponível em: <http://obeco.planetaclix.pt/roswitha-scholz6.htm>. Acesso em: 05 maio 2009. 105 BACHILLER, Carmen Romero. “De diferencias, jerarquizaciones excluyentes, y materiales de ló cultural. Una aproximación a La precariedad desde el feminismo y La teoria queer”. Cuadernos de Relaciones Laborales, Madri, vol. 21, n. 1, p. 50, 2003. 106 SCHOLZ, Roswitha. Primeira parte: sobre o conceito de valor e de valor-dissociação. Lisboa: Obeco, 2000. Disponível em: <http://obeco.planetaclix.pt/roswitha-scholz6.htm>. Acesso em: 05 maio 2009. 107 SCHOLZ, Roswitha. A teoria da dissociação sexual e a teoria crítica de Adorno. Lisboa: Obeco, 2004b. Disponível em: <http://obeco.planetaclix.pt/roswitha-scholz9.htm>. Acesso em: 10 jan. 2010. 108 Ibid., p. 5. 109 SCHOLZ, Roswitha. “O valor é o homem. Teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos”. Revista Novos Estudos. São Paulo, n. 45, p. 35, julho 1996. 104

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patriarcal de cisões que, histórica e estruturalmente, se encontra na base de toda esta relação.110

EXPLORANDO AS TENSÕES De início cabe fazer breves considerações acerca dos referenciais teóricos de ambas autoras e suas consequências teórico/epistemológicas. De certo modo, pode-se afirmar que Helena Hirata utiliza o que Roswitha Scholz denomina “marxismo vulgar”, ou “Marx exotérico”, ou seja, aquela parte da teoria marxiana que foi posteriormente desenvolvida por inúmeros marxistas (e apropriada massivamente pela esquerda). Esse marxismo gira em torno da categoria positivada trabalho, a qual possui centralidade para os demais desenvolvimentos teóricos. Isto gera uma série de consequências: para incluir a esfera doméstica na análise marxista, a autora adota um conceito ampliado de trabalho, capaz de articular as duas esferas. No entanto, essa ampliação acarreta a perda teórica de elementos associadas por Marx ao conceito de trabalho, como o valor e o fetichismo111 – conceitos só dificilmente aplicáveis de forma satisfatória à esfera privada. Assim, quando Hirata e Kergoat 112 colocam que a divisão sexual do trabalho é hierárquica pois valores distintos são atribuídos aos “trabalhos” masculino e feminino, elas alegam que utiliza-se aí o termo valor apenas em seu Ibid. Segundo o glossário de Robert Kurz (1991), trata-se de “Conceito que se origina na crítica da religião do século XVIII, sendo considerado uma característica essencial de religiões „primitivas‟. Fundamentava-se nas observações de colonizadores portugueses na África e servia para designar uma crença que imagina em objectos mortos uma alma e forças sobrenaturais. Marx referiu esse conceito ironicamente à moderna sociedade produtora de mercadorias, que se sujeita a um fetichismo análogo na forma do dinheiro e de seu movimento de exploração em empresas. Assim, o conceito tornou-se corriqueiro na critica da lógica da mercadoria, apesar de ser, a rigor, demasiadamente geral. Pois no fundo, Marx não quer ressaltar o facto de que a objectos em geral podem ser atribuídas forças sobrenaturais que nada tem a ver com sua existência natural, mas sim caracterizar um estado social em que a sociedade não tem consciência de si mesma, não penetra nem organiza directamente na prática sua própria forma de socialização, mas sim tem que „representála‟ simbolicamente em um objecto externo. Esse objecto (que também pode ser animado) assume então um significado sobrenatural que não é idêntico a sua forma externa, mas que aparece através desta. Em virtude desse significado adquire ele, apesar de sua banalidade material, poder sobre todos os membros dessa sociedade.[...] O dinheiro, como uma das muitas formas do fetichismo, existe em todas essas sociedades, mas ainda não possui a função geral de representar a socialização inconsciente, que adopta outras formas. Somente na modernidade assume o dinheiro definitivamente essa função. Por isso, pode ser designado como totemismo objectivado e secularizado da modernidade. [...] Somente em conexão com sua crítica do fetiche mercadoria e de sua forma de manifestação, como dinheiro, pode-se compreender por que para Marx a modernidade ainda faz parte da „pré-história da humanidade‟.” 112 HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. A Divisão sexual do trabalho revisitada. In: HIRATA, Helena; MARUANI, Margaret (Orgs.). As Novas fronteiras da desigualdade: homens e mulheres no mercado de trabalho. São Paulo: Editora Senac, 2003. cap. 7, p. 111-123. 110 111

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sentido antropológico, ou seja, designando uma importância socialmente atribuída de modo desigual aos trabalhos de homens e mulheres.113 Ao circunscrever o termo “valor” à sua face antropológica, a autora descarta assim a possibilidade de se estar utilizando do mesmo referencial de Roswitha Scholz. Para Hirata, em última instância, seria esta valorização desigual que causa (nas palavras das autoras, “induz”) a hierarquia social presente nas relações sociais de sexo, instaurando a opressão da mulher. Ao mesmo tempo, não fica claro por que e de onde vem tal valorização desigual. A centralidade do trabalho na teoria desenvolvida por Hirata demonstra a sua ênfase numa explicação materialista e é explicitada na sua hipótese, já vista, acerca do trabalho doméstico, segundo a qual “A divisão sexual do trabalho está no âmago do poder que os homens exercem sobre as mulheres.”114 Em contrapartida, Roswitha Scholz, tendo em vista superar as heranças teóricas iluministas, rompe com a divisão base material/ideologia ao se posicionar no interior do pósmarxismo – no sentido colocado por Robert Kurz, qual seja, de reter alguns aspectos e acrescentar outros ao marxismo. Partindo do que Kurz chama de “Marx esotérico” ou “outro Marx”, Scholz coloca a necessidade de problematizar a categoria “trabalho” de modo a relacioná-la à conceitos como valor, abstração e fetiche, negativando-a. Scholz não assume o compromisso de uma explicação materialista. Em decorrência, a autora não utiliza o termo (trabalho) para dar visibilidade às atividades realizadas pelas mulheres, como o faz Hirata. Como foi visto, ela acredita que a dimensão analítica do espaço privado “feminino” não pode ser apreendida através dos instrumentos analíticos criados por Marx. Por que então o elemento feminino e tudo que é a ele relacionado é inferiorizado? A resposta está na leitura feita pela autora das representações do masculino e do feminino ao longo da construção da Modernidade Ocidental, marcada pelo desprezo do sensível, difuso e incalculável, que, como foi visto, por não serem absorvidos na forma abstrata do valor, foram delegados às mulheres. É neste processo que a dissociação se desenvolve e se consolida, dando lugar às esferas cindidas.

Nas palavras das autoras: “Esse problema do „valor‟ do trabalho – termo empregado aqui no sentido antropológico e ético, não no sentido econômico – atravessa toda a nossa reflexão: ele induz a uma hierarquia social.” (HIRATA; KERGOAT, 2003, p. 113). 114 Ibid., p. 114. 113

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É importante ressaltar que, embora utilize os termos público e privado, assim como Hirata e Kergoat, a autora não utiliza sistemas duais de explicação. O valor-dissociação é, nas palavras da autora, um princípio da forma da totalidade social, ou seja, uma relação social estrutural que permeia toda a sociedade e na qual os níveis psico-social e simbólico-cultural são tão constituintes quanto o nível material. O princípio do valor-dissociação não se resume à cisão entre esferas, mas, antes, está presente mesmo no interior de cada uma, como pode-se notar na afirmação de Scholz de que, com a entrada massiva das mulheres no mercado de trabalho, a dissociação prossegue mesmo no interior da esfera pública. A partir dos dados obtidos por Bila Sorj115, e apresentados na introdução deste artigo, poderíamos dizer que a dissociação também prossegue no interior do ambiente doméstico uma vez que o mínimo envolvimento masculino que ai ocorre se dá tendo como critério a presença na esfera pública, como a atividade de ir e buscar as crianças, etc. Ao considerar o movimento tautológico do capital e do trabalho abstrato como um princípio masculino, que, ao se consolidar historicamente, levou ao confinamento da mulher, Roswitha Scholz opera, em outros termos e categorias, a junção de opressão (“material”) e dominação (“simbólica”). Voltando a Hirata e Kergoat, pode-se dizer que elas também possuem reservas com relação às explicações que recorrem aos esquemas duais. Isto fica claro no seguinte trecho: A divisão sexual do trabalho, no começo, tinha o status de articulação de duas esferas, como indica o subtítulo Estruturas familiares e sistemas produtivos, de Sexo do trabalho [...]. Mas essa noção de articulação se mostrou rapidamente insuficiente: os dois princípios – separação e hierarquia – se encontram em toda parte e se aplicam sempre no mesmo sentido; era necessário passar a um segundo nível de análise: a conceituação dessa relação social recorrente entre o grupo dos homens e o das mulheres.116

Ao meu ver, é através do princípio teórico da coextensividade que as autoras superam tal dualismo, ao enxergar as relações de classe e as relações de sexo como contínuas. Entretanto, tal continuidade se dá atrelada à ampliação do conceito de trabalho, de modo a permitir que se fale em divisão sexual do “trabalho”.

SORJ, Bila. Trabalho remunerado e trabalho não-remunerado. In: VENTURI, Gustavo; RECAMÁN, Marisol; OLIVEIRA, Suely de. (Orgs.). A mulher brasileira nos espaços público e privado. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004. p. 107-120. 116 KERGOAT, Danièle. Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo. In: HIRATA, Helena; et al. (Orgs.). Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009. p. 70. 115

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CONCLUSÃO No final do século XX, com a crise dos paradigmas das Ciências Sociais, no meio acadêmico passam a ser questionados a razão cartesiana e os dualismos binários empregados nas análises e epistemologias. Nesse sentido, as duas construções teóricas aqui vistas, contrastadas e debatidas, enfrentam este desafio, propondo novas formas de articular gênero e classe, que prescindam de análises do tipo capitalismo-patriarcado; isto é, elas dão um salto qualitativo quando colocam a existência de relações de classe nas relações de gênero, e viceversa (embora o façam através de outras categorias analíticas). Assim, não se trata mais de escolher entre feminismo ou marxismo, patriarcado ou capitalismo, exploração ou opressão; foram criados novos termos que põem fim a essas escolhas unilaterais. No que concerne ao “trabalho doméstico” – preocupação central neste trabalho –, a trajetória percorrida aponta para algumas questões. É visível que o termo adquiriu ampla aceitação pública: para além do círculo feminista, ele passou a fazer parte do nosso vocabulário cotidiano, talvez como fruto da insistência feminista em qualificar como “trabalho” as atividades femininas realizadas no âmbito doméstico. O termo, portanto, solapou, ao menos no senso comum, aquela gama de terminações como “trabalho reprodutivo”, “trabalho de reprodução”, “atividade doméstica”, etc., e foi incorporado ao nosso dia a dia. Entretanto, uma interpretação crítica das estatísticas nacionais parece indicar que não ocorreu a valorização esperada no plano prático (e que impulsionou a defesa do termo). Segundo Cristina Bruschini117, dos anos noventa até o ano de dois mil e cinco, verificou-se grande crescimento do número de mulheres na População Economicamente Ativa (PEA)118: entre 1993 e 2005, a taxa de atividade feminina – isto é, a proporção de mulheres economicamente ativas (ocupadas e desocupadas) sobre o total de mulheres –, passou de 47% para 53%. Embora as mulheres estejam longe de atingir as taxas masculinas de atividade econômica, que chegam a mais de 70%, nota-se que houve um grande avanço. Porém, para as mulheres, a vivência do trabalho ainda implica a articulação entre “trabalho” produtivo e BRUSCHINI, Cristina. “Trabalho e gênero no Brasil nos últimos dez anos”. Cadernos de Pesquisa. [S.l.], v.37, n. 132, p. 537-572, set./dez. 2007. 118 “[...]fazem parte da População Economicamente Ativa, os Ocupados (trabalhando regularmente) e os Desocupados, assim considerados os que não trabalhavam, mas tomaram alguma providência para encontrar trabalho.” (Fundação Carlos Chagas). 117

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reprodutivo. Segundo Bruschini, a PNAD de 2002 mostra que quase 90% das mulheres consultadas realizavam afazeres domésticos, contra 45% dos homens. O número médio de horas semanas dedicadas a esta atividade foi, para os homens, de 10 horas, enquanto que, para as mulheres, correspondia a 27 horas. Esse quadro parece indicar que houve resultados contraditórios frente às intenções por trás do uso do termo (“trabalho‟ doméstico”), pois não ocorreu a valorização que se esperava ocorrer e que, presumivelmente, elevaria o status dessas atividades de modo que elas passariam a ser uma responsabilidade distribuída igualmente entre homens e mulheres. Isso pode ser notado também no status do emprego doméstico: segundo Bruschini, a inserção das mulheres no mercado de trabalho brasileiro tem sido marcada pela precariedade, pois os “serviços domésticos”, ou seja, o emprego doméstico remunerado, é o nicho ocupacional feminino por excelência, no qual, em 2005, mais de 90% dos trabalhadores eram mulheres; além disso este é um setor que emprega mais de 6,2 milhões de mulheres, o que corresponde a 17% da força de trabalho feminina. É um tipo de ocupação “considerada precária em razão das longas jornadas de trabalho [...], pelo baixo índice de posse de carteira de trabalho (apenas 25% delas) e pelos baixos rendimentos auferidos (96% ganham até dois salários mínimos).”119 A situação das mulheres brasileiras, com base nas estatísticas oficiais, de certo modo valoriza a posição defendida por Roswitha Scholz, uma vez que o uso do termo trabalho para designar as atividades domésticas não atingiu o seu objetivo político, que seria desmistificar o estereótipo da dona de casa ociosa. Sem negar o pioneirismo de Helena Hirata e Danièle Kergoat, é nesse sentido que podemos afirmar que Scholz utiliza com eficácia seu método de pesquisa científica pois, segundo Bourdieu, O que conta, na realidade é a construção do objeto, e a eficácia de um método de pensar nunca se manifesta tão bem como na sua capacidade de constituir cientificamente objetos socialmente insignificantes em objetos científicos ou, o que é o mesmo, na sua capacidade de reconstruir cientificamente os grandes objetos socialmente importantes, apreendendo-os de um ângulo imprevisto [...].120

BRUSCHINI, Cristina. “Trabalho e gênero no Brasil nos últimos dez anos”. Cadernos de Pesquisa. [S.l.], v.37, n. 132, p. 561, set./dez. 2007. 120 BOURDIEU, Pierra. Introdução a uma sociologia científica. In: ______. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 20. 119

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Assim, como uma conclusão de caráter provisório, pode-se afirmar que Roswitha Scholz reconstrói o “trabalho doméstico” – um grande objeto das teorias feministas – de um ponto de vista imprevisto, a partir de um referencial teórico até então nunca aplicado a este objeto, e que com sucesso consegue se desvincular da prática frequente que é o uso de termos originalmente referentes ao trabalho (produtivo) para explicar a construção das identidades femininas e a dinâmica do lar. Há então consideráveis rupturas no que se refere à práxis feminista. Nesse sentido, Robert Kurz, fazendo referência à Teoria do valor-dissociação de Scholz, coloca que: Só para além da divisão estrutural entre uma „lógica do dinheiro‟, de um lado, e uma „falta de lógica‟ da vida doméstica, da dedicação pessoal e da emotividade, de outro, se poderia conseguir uma relação emancipatória entre homens e mulheres. Ao contrário, um feminismo que se limite à exigência de „direitos iguais‟ no interior do modo de produção dominante terá necessariamente de ficar impotente perante a forma cindida da vida social. Sempre caiu em ouvidos moucos o simples apelo a que os homens participassem em igual medida das atividades e condutas cindidas no seio da vida pessoal e familiar. A emancipação feminina não é medida pela mudança dos homens no âmbito privado, mas pela mudança das mulheres no âmbito público. 121

É preciso destacar, ainda, os limites deste trabalho. As conclusões apresentadas são provisórias, visto que a bibliografia utilizada de Roswitha Scholz foi especialmente limitada – apenas cinco artigos – dada a escassa publicação da autora em língua portuguesa bem como em língua inglesa, visto que a sua produção teórica permanece sendo publicada principalmente em alemão.

Ademais, a maioria dos artigos aos quais tive acesso são

traduções imprecisas e publicadas na internet. Dito isto, fica em aberto a possibilidade de novas pesquisas a partir de uma bibliografia mais vasta, que permita maior aprofundamento. Outro limite deste trabalho, ao meu ver, está na seguinte questão: a divisão públicoprivado enquanto recurso analítico, possui centralidade para se pensar acerca de todas as mulheres? Enquanto processo histórico, afeta igualmente a todas as mulheres, as tendo relegado igualmente à domesticidade? Sueli Carneiro122 critica as concepções do feminismo clássico que universalizam os valores de uma cultura particular (ocidental), invisibilizando as experiências historicamente diferenciadas das mulheres negras. Nesse sentido, ela coloca os seguintes questionamentos, que considero de demasiada importância para este trabalho: KURZ, Robert. Virtudes Femininas: a crise do feminismo e a gestão pós-moderna. Lisboa: Obeco, 2000. p. 02. Disponível em: < http://obeco.planetaclix.pt/rkurz42.htm >. Acesso em: 16 set. 2010. 122 CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. LOLA Press, nº 16, novembro, 2001. p. 01. 121

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Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou historicamente a proteção paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos falando? Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres, provavelmente majoritário, que nunca reconheceram em si mesmas esse mito, porque nunca fomos tratadas como frágeis. Fazemos parte de um contingente de mulheres que trabalharam durante séculos como escravas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras, quituteiras, prostitutas... Mulheres que não entenderam nada quando as feministas disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalhar!123

Assim, é dada a necessidade de colocar que as construções teóricas são geográfica e historicamente situadas, e no caso em questão, provêm claramente de um contexto europeu, muito distinto da nossa realidade latino-americana pós-colonial, multirracial e pluricultural.

123

Ibid., p. 1.

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O SPLEEN DA CIDADE SITIADA Esquema de “Tableaux Parisiens”, “Révolte” e “La Mort”

Cláudio R. Duarte

“Une oasis d‟horreur dans un désert d‟ennui!” (Baudelaire, Le voyage)

Quadros parisienses

Em que medida o tempo histórico e a cidade moderna são elementos internalizados pela lírica de Charles Baudelaire? Apesar de bastante conhecida, essa relação foi pouco demonstrada em funcionamento nos ciclos de Fleurs du Mal (1ª ed. 1855; 2ª ed. 1861), isto é, estudada não apenas em poemas isolados mas na sequência lógica de seus poemas. Ainda hoje é de se espantar, após um verdadeiro caminhão de estudos, o desinteresse da crítica em formular essa lógica de apresentação e esse tipo de questionamento “terra-a-terra”. E isso quanto mais fica evidente que essa relação, proclamada desde o título de um dos ciclos fundamentais – “Tableaux Parisiens” –, é visceral, perpassando as estruturas e os temas da lírica baudelaireana. A estrutura do ciclo não é difícil de delinear: trata-se de mostrar Paris em vinte quatro horas, segundo o fluxo de memórias suscitadas por seus lugares vividos. Nos limites deste ensaio, podemos apenas apontar os contornos desse desenho, lendo em detalhe só alguns de seus poemas. O poema inicial, “Paysage” (publicado em novembro de 1857), é a construção irônica de uma “égloga” (v.1) ou de um “Idílio”, aliás, dito “infantil” (“enfantin”, v. 20). Após o fim destruidor do primeiro ciclo (“Spleen et Idéal”), temos aqui a perspectiva típica do vencedor: o sujeito burguês moderno.

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De início, então, Paris surge como a eterna ordem do trabalho abstrato: as oficinas que cantam e tagarelam, as chaminés, os campanários (torres com sinos): Je verrai l‟atelier qui chante et qui bavarde; Les tuyaux, les clochers, ces mâts de la cité, Et les grands ciels qui font rêver d‟éternité.1

O sujeito burguês se fecha em casa para construir, na noite, seus “féeriques palais” (“feéricos palácios”, v. 16), que, aliás, retornarão mais adiante em “Rêve parisien”. O interior do lar burguês aparece como um véu estendido entre o corpo e os choques da cidade – ou melhor, as suas rebeliões. Nos versos do final, portanto, é a Paris real que prorrompe a fachada como: “L‟Émeute, tempêtant vainement à ma vitre/ Ne fera pas lever mon front de mon pupitre” (“O Motim, golpeando em vão minha vidraça/ Não fará erguer minha cabeça de minha mesa, vv. 21-2). Como apontou Benjamin, as maiúsculas em Baudelaire indicam alegorias, e, como mostrou Dolf Oehler, se trata aqui precisamente da história política recalcada da cidade depois do massacre de 18482. Algo que é aventado pelo comentário instrutivo de Crépet e Blin: “pode-se admitir que esses versos fazem alusão às desordens de 1848 ou ao Coup d’État de 2 de dezembro” (FdM, 443)... mas eles preferem dar razão a A. Ferran que vê em l’Émeute que bate na vidraça “as tempestades do Inverno”, às quais o poeta sonhador fechou “as portas e as janelas” (v. 15)! Dessa maneira, o poema é arrancado da pólis – literalmente despolitizado – passando a ser uma mera peça idílica, justamente o que o poema está criticando. Ademais, isso num poeta surnaturaliste, engajado no “protesto contra a natureza”. Baudelaire joga ironicamente, aqui, com a tradição poética clássica e romântica do Idílio natural. O lar burguês conjugado à natureza aparece como engodo, falsa autonomia do pensamento e do sujeito, fechado em uma “tiède atmosphère” (“tépida atmosfera”, v. 26), em meio ao inverno que chega trazendo o tédio de suas “neiges monotones” (“neves monótonas”, v. 14). Logo no início do poema, nomeia-se o lugar dessa perspectiva ideológica: ela nasce do

1

2

“Paisagem”: “Eu verei a oficina que canta e que tagarela; /As chaminés, os campanários, esses mastros da cidade,/ E os grandes céus que fazem sonhar a eternidade.” (vv. 6-8). Para as citações: BAUDELAIRE, Charles. Les Fleurs du Mal. (Édition critique établie par Jacques Crépet et Georges Blin). Paris: José Corti, 1950. Doravante abreviado como FdM, seguido eventualmente do número da página. As traduções, sempre literais, são minhas. Cf. OEHLER, Dolf. O velho mundo desce aos infernos. (Auto-análise da modernidade após o trauma de julho de 1848 em Paris) [1988]. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

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alto (isto é, da distância em relação ao inferno urbano) – a partir do céu e das estrelas. É a perspectiva fria e natural dos “astrologues” (v. 2). Já no segundo poema da série, “Le soleil”, apenas o sol transfigura as coisas mais vis de Paris: Quand, ainsi qu‟un poète, il descend dans les villes, Il ennoblit le sort des choses les plus viles Et s‟introduit en roi, sans bruit et sans valets, Dans tous les hôpitaux et dans touts les palais.3

A sutileza aqui é sugerir que as coisas mais “viles” (vis) são encontradas “dans les villes” (nas cidades) tanto no alto (palácios) como no andar de baixo da escala social, entre os doentes e os feridos (nos hospitais). Veremos melhor adiante qual o significado velado desses palácios e desses hospitais. Doravante, são os subterrâneos da cidade que virão à tona no ciclo: a beleza raquítica e simpática da mulher excluída (“A une mendiante rousse”); a lembrança do Cisne revolucionário (“Le Cygne”), segundo a análise impecável de Oehler; a fantasmagoria dos sete velhos, que se sucedem num eterno retorno do mesmo, como índice do reino abstrato da mercadoria e da história decaída no mito infernal (“Les sept vieillards”); as velhinhas frágeis, heróicas, esquecidas em meio ao “caos” urbano (“Les petites vieilles”). Já “Les aveugles”, um poema dos mais complexos desse ciclo, pode ser lido como uma reflexão sobre “a capitulação geral pós-1851”4: o poeta iguala-se aos cegos cidadãos, companheiros de miséria – porém, mais bestificado que eles, pergunta-se o que eles procuram no “Céu” (= Poder?). Assim, seus olhares “(...) restent levés/ Au ciel; on ne les voit jamais vers les pavés” (“permanecem erguidos/ Ao céu; não se os vê jamais dirigidos ao calçamento”) – outra referência velada aos “magiques pavés” das barricadas de 48 (tal como lembrados num verso do epílogo esboçado para a segunda edição da obra, FdM, 216)5. Depois que a revolução malograda passa (“A une passante”, novamente segundo a maravilhosa decifração de Oehler), resta a maldição eterna do trabalho de “Le Squelette

“O sol”: “Quando, tal qual um poeta, ele desce nas cidades,/ Ele enobrece a sorte das coisas as mais vis/ E se introduz como rei, sem ruído e sem serviçais,/ Em todos os hospitais e em todos os palácios”, vv. 17-20. 4 Conforme uma interpretação de Dolf Oehler, muito bem desenvolvida por: ALVARENGA, Raphael F. “Sentimento da revolução”, Sinal de Menos, nº 3, 2009, p. 95. 5 Cf. o poema traduzido nesta edição de Sinal de Menos, p. 143. 3

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Laboureur” (1859); poema que, lido por seu contexto, parece ecoar a recuperação econômica do Segundo Império e a reprodução das relações de dominação e exploração. 6 Chegamos então a “Le Crépuscule du Soir” (publicado em 01 de fevereiro de 1852), poema central desse ciclo, que vale a pena estudar em detalhe. LE CRÉPUSCULE DU SOIR Voici le soir charmant, ami du criminel; Il vient comme un complice, à pas de loup; le ciel Se ferme lentement comme une grande alcôve, Et l‟homme impatient se change en bête fauve. [4] O soir, aimable soir, désiré par celui Dont les bras, sans mentir, peuvent dire: Aujourd‟hui Nous avons travaillé! – C‟est le soir qui soulage Les esprits que dévore une douleur sauvage, Le savant obstiné dont le front s‟alourdit, Et l‟ouvrier courbé qui regagne son lit. Cependant des démons malsains dans l‟atmosphère S‟éveillent lourdement, comme des gens d‟affaire, Et cognent en volant les volets et l‟auvent. [13] A travers les lueurs que tourmente le vent La Prostitution s‟allume dans les rues; Comme une fourmilière elle ouvre ses issues; Partout elle se fraye un occulte chemin, Ainsi que l‟ennemi qui tente un coup de main; Elle remue au sein de la cité de fange Comme un ver qui dérobe à l‟Homme ce qu‟il mange. On entend çà et là les cuisines siffler, [21] Les théâtres glapir, les orchestres ronfler; Les tables d‟hôte, dont le jeu fait les délices, S‟emplissent de catins et d‟escrocs, leurs complices, Et les voleurs, qui n‟ont ni trêve ni merci, Vont bientôt commencer leur travail, eux aussi, Et forcer doucement les portes et les caisses [27] Pour vivre quelques jours et vêtir leurs maîtresses. Recueille-toi, mon âme, en ce grave moment, Et ferme ton oreille à ce rugissement. C‟est l‟heure où les douleurs des malades s‟aigrissent! La sombre Nuit les prend à la gorge; ils finissent Leur destinée et vont vers le gouffre commun; L‟hôpital se remplit de leurs soupirs. – Plus d‟un [34] Ne viendra plus chercher la soupe parfumée, Au coin du feu, le soir, auprès d‟une âme aimée.

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“Dites, quelle moisson étrange,/ Forçats arrachés au charnier/ Tirez-vous, et de quel fermier/ Avez-vous à remplir la grange?”; “O Esqueleto Lavrador”: “Dizei-me, que colheita estranha/ Miseráveis arrancados do ossuário/ Vós tirais, e de qual fazendeiro/ Deveis deixar o celeiro cheio?”

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Encore la plupart n‟ont-ils jamais connu La douceur du foyer et n‟ont jamais vécu! 7

[37]

O que logo salta à vista aqui, nas duas primeiras estrofes formadas por rimas emparelhadas, é a contraposição, aparentemente moralista, entre trabalho e crime. Ao mesmo tempo, esses termos refletem-se e se unificam quando “o homem impaciente torna-se besta feroz” (v. 4), ou quando os “demônios malsãos da atmosfera” despertam como graves “homens de negócio” (v. 12). Na sequência da segunda estrofe, o antagonismo se amplia para Homem x Prostituição (bloqueando a interversão dos contrários). As maiúsculas em Baudelaire, como já dito, são a indicação da alegoria histórica: certamente não se trata de uma mera descrição de putas e escroques na noite parisiense, contrapostos moralmente ao Homem honesto, tema, aliás, que Balzac e os artistas do período haviam amiúde trabalhado. Apesar do tema da prostituição ser um dos nós da questão social e feminina francesa no período8, o conteúdo do poema remete a algo muito mais particular e essencial. Em uma carta à mãe (27/03/1852) sobre os “Dois Crepúsculos”, Baudelaire diz duvidar se ela conseguiria compreender esses versos inteiramente: “não há qualquer impertinência neles. Mas eles são muito especialmente parisienses, e duvido que eles possam

“O Crepúsculo Vespertino”: “Eis a noite encantadora, amiga do criminoso;/ Ela vem como um cúmplice, a passo de lobo; o céu;/ Se fecha lentamente como uma grande alcova. / E o homem impaciente torna-se besta fera.// Oh noite, amável noite, desejada por aquele/ Cujos braços, sem mentir, podem dizer: Hoje/ Ganhamos nosso pão! – É a noite que alivia/ Os espíritos aos quais devora uma dor selvagem,/ O sábio obstinado cuja fronte se entorpece,/ E o trabalhador curvado que regressa a seu leito./ Entretanto, demônios malsãos na atmosfera/ Despertam gravemente, como homens de negócio,/ E batem a voar pelo alpendre e as janelas./ Através dos clarões que o vendaval flagela / A Prostituição se acende nas ruas;/ Como um formigueiro ela abre suas saídas; / Por toda parte abre um oculto caminho,/ Tal como o inimigo que tenta um assalto [coup de main]; / Ela move-se no seio da cidade de lama/ Como um verme que rouba ao Homem aquilo que come./ Escutam-se aqui e ali as cozinhas a silvar, / Os teatros a ganir, as orquestras a roncar;/ As mesas de hotel em que o jogo faz as delícias/ Enchem-se de putas e escroques, seus cúmplices, / E os ladrões, que não têm trégua nem perdão/ Cedo vão começar seu trabalho, eles também,/ E forçar docemente as portas e os cofres/ Para viver alguns dias e vestir suas amantes.// Recolhe-te, minha alma, nesse grave momento, /E tapa teus ouvidos a esse rugido./ Essa é a hora em que as dores dos doentes exasperam-se!/ A sombria Noite os toma pela garganta; eles concluem/ Seu destino e vão para o abismo comum;/ O hospital se enche de seus suspiros. – Mais de um/ Não virá mais buscar a sopa perfumada, / Junto ao fogo, ao entardecer, ao pé de uma alma amada. // Ainda a maior parte jamais conheceu / A doçura do lar e jamais viveu!” 8 No bom resumo de David Harvey: “Legalmente considerada uma menor sob o Código Napoleônico, era difícil, senão impossível, para uma mulher criar seu próprio modo de vida, econômica ou socialmente, sem algum tipo de proteção do pai, marido, família, amante, cáften, instituições (como conventos e escolas) ou empregador. Que essa „proteção‟ estava aberta a toda espécie de abuso (social, econômico, sexual) era muito evidente (...). A prostituição era extremamente difundida – 34 mil mulheres eram estimadas exercer tal atividade em Paris em 1850 – e tratada com a total hipocrisia costumeira da burguesia” (Paris, Capital of Modernity. London: Verso, 2003, p. 179-82). 7

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ser compreendidos fora dos meios pelos quais e sobre os quais eles foram escritos” (FdM, p. 463). A chave apontada pelo próprio poeta parece inequívoca: trata-se da representação daquilo que Marx, n‟O Dezoito de Brumário, denominou la Bohème – as composições, os conluios e as metamorfoses de classe pelas quais ela tem passado na história recente. O operador social dessas metamorfoses é tanto o poder abstrato do equivalente geral como a ditadura política de Napoleão. La Prostitution é a metáfora do empobrecimento, da degradação e da mercantilização total da vida francesa9 e, mais do que isso, das trevas que caem e trazem consigo Luís Napoleão à França – a segunda grande estrofe do poema engolfa tudo! (vv. 11-28) – transformada do dia para a noite em uma “grande alcova” (v.3), instalada num enorme bordel de interesses privados – os das bestas-feras empresariais, com financistas e especuladores urbanos à ponta. Numa carta a Proudhon, em agosto de 1848, Baudelaire o aconselha a ficar atento “às bestas ferozes da propriedade”.10 Desde a Monarquia de Julho, “a passo de lobo”, como nos diz Marx, “reproduzia-se em todas as esferas, da Corte ao botequim, a mesma prostituição, a mesma fraude desavergonhada, a mesma sede de

Rua das Virtudes, famoso centro de prostituição; ruas estreitas e insalubres da Paris pré-haussmanniana Fotos de Marville da década de 1850 (in: HARVEY, op.cit., p. 41 e 92).

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Cf. a leitura pontual desse poema por HARVEY, op. cit., p. 259-60. BAUDELAIRE, Charles. Correspondance, 1832-1860. (Ed. Claude Pichois). Paris: Gallimard, 1973, vol. I, p. 152 apud OEHLER, D. O velho mundo desce aos infernos, op. cit., p. 33. Napoleão III é também “um homem que decide durante o dia para executar à noite” (MARX, Der achzente Brumaire des Louis Bonaparte, apud BENJAMIN, Passagens, 2007, p. 404).

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riqueza, não pela produção, mas pela escamoteação da riqueza alheia já existente”. 11 É por isso que a Prostituição desce como um clarão e um vendaval que, num só golpe, toma as ruas como um formigueiro, abrindo acessos ocultos (vv. 14-15) – também “tal qual o inimigo que tenta um coup de main” (v. 18, g.m.) – os termos não poderiam ser talvez mais claros para indicar o Golpe de 02 de Dezembro e a camarilha-lúmpen de Luís Napoleão. Ressalte-se ainda a precisão do registro político (que nos levaria a uma leitura menos banal de “L‟Ennemi” e de “L‟Héautontimourouménos”12): os trabalhadores desejam “le soir charmant” – desejam, pelo voto democrático, “a noite encantadora” (vv. 5 e 1, g.m.) O fato é que o coup de main de Fevereiro de 48 se converterá, segundo Marx, no coup de tête de Dezembro de 185113 – por isso talvez os “demônios malsãos na atmosfera” (Demônios que vinham em maiúscula na versão de 1855) saem batendo em revoada pelas janelas e os telhados (v.13) – a cúpula do Estado. Eles são parte do zoológico que aparece no poema introdutório, “Au lecteur”: “(...) un million d‟helminthes/ Dans nos cerveaux ribote un peuple de Démons” (vv. 21-2), que, como mostrou Oehler, traduz a luta de classes na linguagem cifrada da bestialização, invertendo a retórica burguesa hegemônica que demonizava e bestializava o proletariado e as “classes perigosas”. Assim o poema apresenta o seguinte esquema: as forças malsãs do alto x as forças de baixo, i.é, na base, o “trabalhador curvado” na noite, em sua cama, enquanto o sábio obstinado adormece em casa (vv. 9-10). A Prostituição domina o centro da “cidade de lama” (v. 19), o que relembra o solo encharcado de “L‟Ennemi” (FdM, 15-6). Tal como neste, o verme inimigo rói, ou melhor, rouba o alimento das entranhas dos Homens. (Verme também com letra maiúscula na versão de 55). Impõe-se aqui o sentido materialista da metáfora da dominação e da exploração de classe. Se lido simplesmente como poema sobre a prostituição ele não perderia a sua coerência? (Afinal, deveríamos nos perguntar: que prostituição é essa que rouba o que os homens comem, tal como os vermes?).

MARX, Karl. Die Klassenkämpfe in Frankreich 1848-1850, p. 14-5, grifo meu. Lembremos do desfecho de L‟Ennemi: “– O douleur! ô douleur! Le Temps mange la vie,/Et l‟obscur Ennemi qui nous ronge le cœur/Du sang que nous perdons croît et se fortifie! » (L‟Ennemi). O inimigo é o Segundo Império. Este poema parece dialogar com o “L‟Héautontimourouménos: “(...) est dans mas voix, la criarde!/ C‟est tout mon sang, ce poison noir!/Je suis le sinistre miroir /Où la mégère se regarde.» Esse Outro familiar, duplicado no interior da voz do Eu lírico, aparece então como um vampiro – o significante do Segundo Império de “L‟Ennemi” e “Le Vampire” – de seu próprio coração: “Je suis de mon cœur le vampire,/– Un de ces grands abandonnés /Au rire éternel condamnés, /Et qui ne peuvent plus sourire! » 13 MARX, Karl. Der achtzehnte Brumaire des Louis Bonaparte [1852] in: Marx-Engels Werke, Band 8. Berlin: Dietz, 1972, p. 118. 11

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O que se segue na segunda estrofe é a descrição da vida noturna de jogo e prostituição na cidade. Porém, os seus lugares não são tipicamente

os lugares burgueses

(cozinhas/restaurantes, teatros, orquestras)?14 Tudo aí paradoxalmente silva, gane e ronca ferozmente (o que nos reporta de novo aos versos de “Au lecteur”: “Mais parmi les chacals, les panthères, les lices/ (...) Dans la ménagerie infâme de nos vices”, vv. 29 e 32). Aqui, aliás, há um padrão formal subentendido: alguns desses dísticos, apesar da rima emparelhada, agora se tornam algo

dissonantes ao

unificarem oposições. Assim, p. ex.: demônios

malsãos/homens de negócio (vv. 11-2), mesas de jogo e delícias/prostitutas e escroques (vv. 23-4), ladrões/trabalho (vv. 25-6). Na forma paradoxal desses versos temos a mímese das relações sociais contemporâneas, vale dizer, a conciliação de contrários realizada por Napoleão III e o Segundo Império. Nesse ponto, o poema parece destacar e diferenciar os ladrões – que não têm trégua nem perdão (da polícia? ou são eles que não os dão?): eles também “trabalham”, mas “para viver alguns dias e vestir suas amantes.” (v. 28). Napoleão III também teve a sua amante, mas permaneceu dezoito anos no poder. Ao fim, a alma do poeta toma distância desse grande “rugissement”. Rugido de quem? Certamente o das feras voadoras – um barulho oposto aos “suspiros” (v. 34) dos doentes hospitalizados ou daqueles que nada possuem na cidade (e que, portanto, se diferenciam da “Bohème barulhenta, infame e ávida de saques”, nomeada por Marx). O momento é “grave”. A “sombria Noite” ressurge e os “toma pela garganta” (v.32). Conta-se que a justiça procurava os insurretos de 1848 até mesmo entre os feridos nos hospitais, para entregá-los aos tribunais de guerra.15 Além disso, pegar alguém pela garganta é silenciar, censurar, torturar – eis então a Noite figurando o estado de sítio napoleônico! – desde o início, aliás: “voici le soir charmant, ami du criminel” (v.1). Será mesmo disso que se trata aqui? Com efeito, hospitalizados e homens sem lar estão numa condição simbólica muito similar ao do expatriamento em massa promovido pelo estado de exceção. São os que nunca mais voltarão para casa (a sopa, a esposa), após o dia de trabalho. Em todo caso, estamos diante da mesma metáfora básica do “A prostituição se matizava em uma ampla gama de atividades, dos salões de baile das classes baixas às operas e teatros da classe superior, e fundia-se na profissão de „amante.‟” (HARVEY, op. cit., p. 183.) 15 Cf. Oehler, O velho mundo desce aos infernos, op. cit., p. 392. Algo relembrado pelo poeta em “A Senhorita Bisturi”: “Olha, este agora é K., o que denunciava ao governo os insurrectos a quem tratava em seu hospital. Era o tempo das rebeliões” (“Pequenos poemas em prosa” in: Baudelaire, Charles. Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006, p. 335, trad.: Aurélio Buarque de Holanda). 14

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fracasso histórico da revolução de junho de 48: “eles concluem/ Seu destino e vão para o abismo comum” (vv. 32-3, g.m.). E a mesma dor (“selvagem” ou “exasperante”) atinge os trabalhadores e os hospitalizados. O final desolador (vv. 37-8) parece querer lembrar a maioria expropriada e assassinada: nem ter conhecido um lar nem mesmo ter (sobre)vivido para isso. O poeta pressente aqui os ditames da “vida nua”, vida exterminável impunemente.16 Uma leitura do “pequeno poema em prosa” homônimo reforça tais leituras: aqui, o Crepúsculo da Noite é tanto o “indício de um sabá”, a “imitação das harmonias do inferno”, contendo um “sinistro ulular do negro hospício empoleirado na montanha” (possível referência ao Estado ditatorial com seu apoio de classe), quanto é o repouso dos “pobres espíritos extenuados do labor do dia”. Aparentemente “refrescante”, “doce e terno” ou contendo as estrelas como “fogo de artifício da deusa Liberdade!” (somente se for a do Comércio ilimitado!), o Crepúsculo traz consigo a “opressão vitoriosa da noite”. Por isso, aqui também, ele é uma “gaze transparente e sombria”, um “negro presente” ou um “luto fechado” sob o qual se rememora um momento perdido, em que “transparece o delicioso passado”.17 Um passado em que o possível parecia caber dentro da realidade cotidiana. Na seqüência de poemas dos Quadros Parisienses, temos “Le jeu”, que, de certo modo, adentra na “funèbre gaieté” (v.18) do vício, do dinheiro e do meretrício do poema anterior. “Danse macabre” conclui a trinca com a imagética da Morte – ao mesmo tempo uma coquete, uma bailarina, uma meretriz (“gouge”) e um esqueleto (vv. 4, 41, 45). A dança macabra, misturando horror e volúpia, se apodera da cidade e do mundo tipicamente burguês – que cheira à “la mort”, com seus “Antinoüs flétris, dandys à face glabre/ Cadavres vernissés, lovelaces chenus” (“Antínoos fenecidos, dândis de face glabra,/Cadáveres envernizados, domjuans encanecidos”, vv. 48-50). Numa carta ao editor, Baudelaire indica o sentido alegórico da dança, reforçando a conexão entre a ordem (o exército e a igreja) e a prostituição, como anteriormente propusemos: “Primitivamente uma bela Gouge [goiva, meretriz] é apenas uma bela mulher; posteriormente, a goiva é a cortesã que segue o exército, na época em que o soldado, não menos que o padre, não marcha sem uma retaguarda de cortesãs. Havia mesmo regulamentos que autorizavam Cf. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua, I [1995]. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003, passim. 17 BAUDELAIRE, “Crepúsculo vespertino”. Pequenos poemas em prosa, op. cit., p. 303-4, trad. modif. No poema projetado para Epílogo dessa obra, Baudelaire retoma Paris como “Hospital, lupanar, purgatório, inferno, prisão” e “enorme meretriz” (ibid., vv. 3 e 8). 16

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essa volúpia ambulante. Ora, a Morte não é a Meretriz que segue em todos os lugares o Grande Exército universal, e ela não é uma cortesã cujos abraços são positivamente irresistíveis?” (FdM, 468).

A seguir, “L‟amour du mensonge” (“O amor à mentira”) trata do fascínio pela beleza da dama parisiense (provavelmente Marie Daubrun) – o amor à aparência ainda nesse mesmo mundo traiçoeiro da noite, com suas orquestras (o “chant des instruments”, v. 2) e espetáculos teatrais (a “masque ou décor”, “máscara ou adorno/cenário”, no v.24), que os olhos melancólicos do poeta (v. 17) se permitem contemplar. Os poemas que seguem (XCIX e C) são de caráter biográfico e relembram a casa da infância, a mãe e a ama Mariette. Em “Brumes e pluies” (“Brumas e chuvas”), temos uma imagem dissonante do lar do poeta déclassé contraposta à segurança do lar burguês de “Paysage”. O lugar precário do poeta é, como nos poemas da série “Spleen”, a escuridão, a neve, o inverno, os quais atiçam o “cœur plein de choses funèbres” (v. 9), apenas atenuado pela presença da companheira, que faz adormecer “la douleur sur um lit hasardeaux” (“a dor sobre uma cama qualquer/ao acaso”, v. 14). Passemos agora ao final do ciclo. Em “Rêve parisien”, a paisagem se supranaturaliza através do sonho. Na primeira parte, reencontraremos o traço feérico de “Paysage” e “Le soleil”. Não se trata de positivá-lo, como geralmente se faz, mas de vê-lo da perspectiva do “ideal esplinético” construído pela obra. A paisagem parisiense ganha aqui a “enivrante monotonie” (v. 11) do factício, do material duro e inorgânico, cercado e ensopado pelas águas. Assim se sucedem nos versos: metal, mármore, ouro, uma Babel de colunatas e arcadas, fontes, cascatas, cataratas, muralhas, tanques, pedras, fontes e espelhos de água, abismos de diamante, túnel de pedrarias, oceano domesticado... Tal paisagem exclui a luz do sol, o orgânico e a vida (o vegetal, o animal, o próprio homem), em uma arquitetura que perdeu a escala humana (“C‟était un palais infini”, v.14). Mundo opaco e sombrio em que as coisas brilham com “un feu personnel” (“um fogo próprio”, v. 48). No sonho “de ce terrible paysage” (v. 1), afirma-se o espetáculo (v. 7) final: Et sur ces mouvantes merveilles Planait (terrible noveauté!) Tout pour l‟oeil, rien pour les oreilles! Un silence d‟éternité.18

18

“E sobre essas maravilhas moventes/Pairava (terrível novidade!)/ Tudo para o olho, nada para os ouvidos!/ Um silêncio de eternidade”, vv. 50-2).

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Esse poema parece destoar do ciclo, pois sempre é lido por seu valor de face, como fantasia puramente afirmativa. Ora, lido por seu contexto, estamos diante dos predicados contraditórios da riqueza social sob a forma alienada da mercadoria: sedução terrível, novidade arcaica, brilho ofuscante, espetáculo emudecedor, tudo sob a tela de fundo sombria do predomínio do capital e do estado de sítio. É uma paisagem (pelo contexto: Paris), ou como disse Benjamin, uma “força produtiva”, paralisada no tempo; ou, antes, caída no sono eterno. Nenhum poema de Baudelaire parece se aproximar tanto (talvez de modo inconsciente) da experiência das Passagens e das Exposições Universais. Um mundo invertido em que o “tesouro” cai das “urnas” do “firmamento”, vertendo em “gouffres de diamant” (“abismos de diamantes”, vv. 33-6). Architecte de mes féeries, Je faisais, à ma volonté Sous un tunnel de pierreries Passer un océan dompté 19

Esse “oceano domesticado” (ou “domado”) que passa por um “túnel de pedrarias” nos sugere a multidão embasbacada diante das fascinantes vitrines. Parece se encenar aqui também o que Benjamin denominou “empatia com o inorgânico” na obra de Baudelaire: “As exposições universais foram a escola superior onde as massas, afastadas do consumo, aprenderam a sentir empatia pelo valor de troca. „Olhar tudo, não tocar nada‟”. 20 Sintomaticamente, o poema é dedicado a C. Guys, o pintor da “moda”, “da multidão”, do “fausto das cenas oficiais, das pompas e solenidades nacionais”, “apaixonado pelo espaço”, tal como o flâneur capaz de “fixar residência no numeroso, no ondulante (...)”.21 Nesse sonho “pastoral” da modernidade (nos termos de Marshall Berman) esta aparece como um sonho enfeitiçado. O flâneur embriagado pela massa/oceano, segundo Benjamin, “identifica-se com a mercadoria” e assume o seu ponto de vista.22 Contudo, no fim do poema, o sonho é desnudado como pesadelo redobrado. A segunda parte apresenta o “Arquiteto de meus feitiços, / Eu fazia, ao meu capricho/ Sob um túnel de pedrarias,/Passar um oceano domesticado” (vv. 37-40). 20 BENJAMIN, Passagens. São Paulo/Belo Horizonte: Imprensa Oficial/Ed. UFMG, 2007, p. 844. Desenvolvo aqui alguns esboços desse autor: “Em „Rêve parisien‟, as forças produtivas parecem paralisadas” (...); “A fantasmagoria de „Rêve parisien‟ lembra a das exposições universais onde a burguesia grita ao sistema da propriedade e da produção: „Oh! Pára enfim, és tão formoso”; “O flâneur e a massa: o „Rêve parisien‟ de Baudelaire poderia ser muito instrutivo a esse respeito”, ibid., p. 400-1 e 471. 21 BAUDELAIRE, “O pintor da vida moderna” in: __. Poesia e Prosa, op. cit., p. 866-8, 857, g.m. 22 BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 51-56, 82. 19

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despertar do poeta em seu horroroso casebre – mas ironicamente não menos terrível que o seu sonho. Lá fora, de maneira similar ao sonho, o sol do meio-dia “versait des ténèbres/ Sur le triste monde engourdi” (“vertia trevas/ sobre o triste mundo entorpecido”, vv. 59-60). Note-se como tais versos dizem o oposto de “Paysage” e de “Le soleil”. O último poema do ciclo, “Le Crépuscule du Matin” (1843/52), confirma o topos da caducidade da metrópole, comparecendo quase a cada verso (rameiras, mendigos, mulheres em parto = proletárias; moribundos nos hospícios; libertinos). Novamente, nenhum sinal do idílio burguês de “Paysage” ou do sol transfigurador de “Le soleil”. Benjamin 23 observou que ele se inicia lembrando as casernas que ocupavam o centro da cidade sitiada por Napoleão III – La diane chantait dans les cours des casernes Et le vent du matin soufflait sur les lanternes.

– e também que, ao fim, o vento matinal dissolve a bruma mítica. O olhar do poeta desce ao chão social. São os esqueletos mobilizados de sempre que representam Paris, sob o estranho fundo da aurora em traje rosa e verde – a cor da exceção de Dezembro de 1851: L‟aurore grelottante en robe rose et verte S‟avançait lentement sur la Seine déserte, Et le sombre Paris, en se frottant les yeux Empoignait ses outils, vieillard laborieux.24

A virada dialética nos ciclos Revolta e A Morte “Elle rit à la Mort et nargue la Débauche” (Baudelaire, Allégorie) Para concluir, abstraindo-nos dos ciclos “Le Vin” e “Fleurs du Mal” (este, a meu ver o mais complexo da obra), faremos algumas notas sobre os dois ciclos finais. É aqui, mais precisamente, que o “poeta maldito, marcado pela Revolução e seu fracasso”, “apodera-se da dualidade e do dilaceramento e toma partido” contra a burguesia e o mundo burguês.25 A

BENJAMIN, Passagens, op. cit., p. 400. “Crepúsculo da manhã”: “O toque de alvorada cantava pelos pátios das casernas/ E o vento matinal soprava nas lanternas” (...)/ A aurora tiritante em traje rosa e verde/Avançava lentamente sobre o Sena deserto, / E a sombria Paris, esfregando os olhos,/ Empunhava suas ferramentas, velha laboriosa.” 25 LEFEBVRE, Henri. Introdução à modernidade [1962]. São Paulo: Paz e Terra, 1969, p. 203. 23

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“estética antiburguesa” torna-se potencialmente estética anticapitalista, levando a pensar a morte não mais do corpo e do desejo ou a das classes isoladas, mas a do sistema social como totalidade. A verdadeira viagem é uma experiência crítica do abismo, com “força desagregadora”, “não restauradora”, para onde “todas as formas de vida” “deslizam” e “desaparecem”.26 É o que surge, especialmente, como lembraram Benjamin e Oehler, na segunda parte de “Abel et Caïn”:

Ah! race d‟Abel, ta charogne Engraissera le sol fumant! Race de Caïn, ta besogne N'est pas faite suffisamment; Race d‟Abel, voici ta honte: Le fer est vaincu par l‟épieu! Race de Caïn, au ciel monte, Et sur la terre jette Dieu!27

A raça proletária, descendente de Caim, não tem que se orgulhar de seu suplício Race de Caïn, ton supplice Aura-t-il jamais une fin?

O suplício por certo é o trabalho: “Nunca ele terá um fim?” (v.8). Aqui a roda do suplício histórico potencialmente se quebra. Para isso, ele tem de recusar, como em “Le reniement de Saint Pierre”, o mundo “où l‟action n‟est pas la soeur du rêve” e só pode esperar que: “Puisséje user du glaive et périr par le glaive!” (Possa eu usar a espada e perecer pela espada!”, vv. 3132). É assim ainda que em “Les Litanies de Satan” a morte é dialetizada (cumprindo o anunciado em poemas como “Obsession” e “L‟irrémédiable”): O toi que de la Mort, ta vieille et forte amante, Engendras l‟Esperance, – une folle charmante! 28

A dialética da experiência da profundeza e do novo foi percebida numa visada formalista por: POULET, Georges. La poésie éclatée: Baudelaire / Rimbaud. Paris: PUF, 1980, p. 22-28. 27 “Abel e Caim”: “Ah! Raça de Abel, tua carcaça / Adubará o solo fumegante! / Raça de Caim, tua tarefa / Não terminou ainda; / Raça de Abel, eis aqui tua vergonha:/ A espada é vencida pelo chuço! / Raça de Caim, sobe ao céu / E joga Deus por terra!” 28 “Litanias de Satã”: “Oh tu que da Morte, tua velha e fiel amante,/ Engendraste a Esperança, – uma louca fascinante!”, vv.13-4. 26

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Para aqueles que foram, com a guerra de extermínio, mandados para o inferno, Deus torna-se “Le Dieu jaloux”, que esconde “les pierres précieuses” (v. 20), e Satã torna-se o “Bâton des exilés, lampe des inventeurs, Confesseur des pendus et des conspirateurs” (“Bastão dos exilados, luz dos inventores,/ Confessor dos enforcados e dos conspiradores”, vv. 40-41). É assim que, segundo Oehler, a morte se torna um nervo dialético para certa geração de artistas pós-48: “As obras da última fase de Heine, a lírica de Baudelaire, inclusive seus poemas em prosa (...) e, num certo sentido, também os romances de Flaubert podem todos ser lidos como „apoteoses da morte‟ (Herzen). Neles a morte aparece como refúgio diante de uma realidade que se tornou insuportável, como sua negação, como aquilo que a destruirá definitivamente, mas também como sua própria essência, que se manifesta inconfundivelmente no sentimento do tédio”.29

Se a morte então é uma cifra da negação e da luta anticapitalista (tornada “luta de morte” contra o estado de exceção sistêmico), ganharíamos mais, talvez, lendo “La mort des pauvres” com olhos ateus e não-conformistas: C‟est la Mort qui console, hélas! et qui fait vivre; C‟est le but de la vie, et c‟est le seul espoir Qui, comme un élixir, nous monte et nous enivre, Et nous donne le cœur de marcher jusqu‟au soir; À travers la tempête, et la neige, et le givre, C‟est la clarté vibrante à notre horizon noir C‟est l‟auberge fameuse inscrite sur le livre, Où l'on pourra manger, et dormir, et s‟asseoir 30

O mesmo valeria para “La mort des artistes”, em que o artista usa “sua alma em sutis complôs” (v. 5) e “a Morte” aparece também como “uma esperança, estranho e sombrio Capitólio!”, que, “planant comme un soleil nouveau,/ Fera s‟épanouir les fleurs de leur cerveau!” (“pairando como um sol novo/ Fará desabrochar as flores de seu cérebro!”, v.14). Nessa chave, o texto é um misto de ambigüidade e precisão: sob um novo sol, as novas flores da esperança serão extraídas da morte. Por fim, é isso que retorna nas estrofes finais, em tudo ambíguas, de “Le voyage”, depois da passagem pelo ritmo cíclico de desejo e fastio do cotidiano do Segundo Império (Oehler): “um oásis de horror num deserto de tédio!” (v. 112). A dominação parece surgir OEHLER, O velho mundo desce aos infernos, op. cit., p. 95. “É a morte que consola, ai! E que faz viver; / É a meta da vida, e é a única esperança/ Que, como um elixir, nos sustenta e nos embriaga,/ e nos dá o coração para marchar até a noite; // Em meio à tempestade, à neve e à geada,/ É a claridade vibrante em nosso horizonte negro;/ É o albergue famoso inscrito sobre o livro, /Onde se poderá comer e dormir e se sentar”.

29

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cifrada nesses versos finais como o “céu” (o poder) e o “mar” (o oceano-multidão ou o balanço pendular odioso dos seres, o mesmo de “Obsession” e “Rêve parisien”) – ambos equiparados no poema a uma “tinta negra” e opostos à luz e ao fogo, que pulsam no coração e no cérebro de um sujeito coletivo (“nós”), situado no país do tédio: Ô Mort, vieux capitaine, il est temps! levons l‟ancre! Ce pays nous ennuie, ô Mort! Appareillons! Si le ciel et la mer sont noirs comme de l‟encre, Nos cœurs que tu connais sont remplis de rayons!

[137]

Verse-nous ton poison pour qu‟il nous réconforte! Nous voulons, tant ce feu nous brûle le cerveau, Plonger au fond du gouffre, Enfer ou Ciel, qu‟importe? Au fond de l‟Inconnu pour trouver du nouveau!31

Se em Baudelaire “o novo aparenta-se à morte”, à “negatividade real da situação social” moderna, como nos diz Adorno, por outro lado, a morte como pulsão (“Zarpemos!”) aqui se contrapõe ao “envilecimento do sempre-igual”.32 O destino: “Inferno ou Céu?” – uma falsa questão: “que importa?” Au fond de l‟Inconnu pour trouver du nouveau!

A metáfora do mergulho no abismo ganha então o sentido ateu enfático do inteiramente outro.

“Oh morte, velha capitã, já é tempo! Levantemos âncora/ Esse país nos entendia, oh Morte! Zarpemos!/ Se o céu e o mar são negros como a tinta/ Nossos corações que tu conheces são plenos de raios!// Verte-nos teu veneno para que nos reconforte!/ Queremos, tal o cérebro nos arde em fogo,/ Mergulhar no fundo do abismo, Inferno ou Céu, que importa?/ Ao fundo do Desconhecido para encontrar o novo!” (vv. 137-44) 32 ADORNO, Theodor W. Ästhetische Theorie [1969], Gesammelte Schriften, Band 7. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 1970, p. 40, trad.: Teoria estética. Lisboa: Ed. 70, 1993, p. 34. 31

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ESBOÇO DE UM EPÍLOGO PARA A SEGUNDA EDIÇÃO DAS “FLORES DO MAL”

Charles Baudelaire

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Charles Baudelaire

Ébauche d’un épilogue pour la deuxième édition des « Fleurs du Mal »

Esboço de um epílogo para a segunda edição das “Flores do mal”

Tranquille comme un sage et doux comme un maudit, ........................................................... ..... J‟ai dit: Je t‟aime, ô ma très belle, ô ma charmante... Que de fois... Tes débauches sans soif et tes amours sans âme, Ton goût de l‟infini Qui partout, dans le mal lui-même, se proclame,

Calmo como um sábio e doce como um maldito, ............................................ ......... eu te digo: Eu te amo, oh minha belíssima, oh minha encantadora.... Quantas vezes... Tua luxúria sem sede e teus amores sem alma, Teu gosto do infinito, Presente em tudo, até no próprio mal,

Tes bombes, tes poignards, tes victoires, tes fêtes, Tes faubourgs mélancoliques, Tes hôtels garnis, Tes jardins pleins de soupirs et d‟intrigues, Tes temples vomissant la prière en musique, Tes désespoirs d‟enfant, tes jeux de vieille folle, Tes découragements ;

Tuas bombas, teus punhais, tuas vitórias, tuas festas, Teus subúrbios melancólicos, Tuas pensões mobiliadas, Teus jardins cheios de suspiros e intrigas, Teus templos vomitando a prece musicada, Teus desesperos de criança, teus jogos de velha louca, Teus desalentos;

Et tes feux d‟artifice, éruptions de joie, Qui font rire le Ciel, muet et ténébreux.

E teus fogos de artifício, erupções de alegria, Que fazem rir o Céu, mudo e tenebroso.

Ton vice vénérable étalé dans la soie, Et ta vertu risible, au regard malheureux, Douce, s‟extasiant au luxe qu‟il déploie...

Teu venerável vício exposto sobre a seda, E tua virtude ridícula, de olhar infeliz, Doce, extasiando-se diante do luxo por ele desdobrado...

Tes principes sauvés et tes lois conspuées, Tes monuments hautains où s‟accrochent les brumes. Tes dômes de métal qu‟enflamme le soleil, Tes reines de Théâtre aux voix enchanteresses, Tes tocsins, tes canons, orchestre assourdissant, Tes magiques pavés dressés en forteresses,

Teus princípios salvos, tuas leis conspurcadas, Teus monumentos altivos onde as brumas se agarram. Tuas cúpulas de metal que o sol inflama, Tuas rainhas do teatro com vozes encantadoras, Teus sinos, teus canhões, orquestra ensurdecedora, Teus calçamentos mágicos , erigidos em barricadas

Tes petits orateurs, aux enflures baroques, Prêchant l‟amour, et puis tes égouts pleins de sang, S‟engouffrant dans l‟Enfer comme des Orénoques, Tes sages, tes bouffons neufs aux vieilles défroques Anges revêtus d‟or, de pourpre et d‟hyacinthe, Ô vous! soyez témoins que j‟ai fait mon devoir Comme un parfait chimiste et comme une âme sainte.

Teus pequenos oradores, com empolações barrocas, Pregando o amor, e depois, teus esgotos cheios de sangue, Se engolfando no Inferno como Orenocos, Teus anjos, teus bufões novos com velhos andrajos, Anjos vestidos de ouro, de púrpura e de jacinto, Oh vós! sede testemunha de que eu fiz o meu dever Como um químico perfeito e como uma alma de santo.

Car j‟ai de chaque chose extrait la quintessence,

Pois de cada coisa extraí a quintessência,

Tu m‟as donné ta boue et j‟en ai fait de l‟or.

Tu me deste tua lama e eu a transformei em ouro.

(Charles Baudelaire. Les Fleurs du mal et autres poèmes. Paris: Garnier-Flammarion, 1964, p. 213-4). Tradução de Cláudio R. Duarte

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SINAL de MENOS ISSN 1984-8730 Edição: Cláudio R. Duarte (São Paulo) Daniel Cunha (Porto Alegre) Felipe Drago (Porto Alegre) Joelton Nascimento (Cuiabá) Raphael F. Alvarenga (São Paulo) Rodrigo C. Castro (São Paulo)

Contribuições: A revista aceita contribuições e comentários

críticos,

que

serão

avaliados quanto ao conteúdo, estilo e adequação à linha editorial. Os artigos devem ser enviados para [email protected].

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